Dessa vez quem fala sou eu

Aconteceu em agosto: casos e causos das Semanas Euclidianas

Gato Félix. Ilustração: Luiz Carlos Capellano

Algumas pessoas têm o dom da palavra, outras gostam muito de falar, mas o amigo do Euclides… ele tinha o dom  de só ele falar e não deixar espaço para mais ninguém.

Para ele,  tudo o que se referisse a Euclides era absoluto, todas as suas palavras verdades incontestáveis, tratava-se do maior escritor  da via Láctea, por enquanto.

Em uma determinada ocasião, um estudioso da obra euclidiana, desavisado da presença do amigo e de seus sentimentos pelo escritor, aventurou-se numa palestra da qual ele deve estar até hoje arrependido.

Naquela sofrida tarde de quinta-feira, com um calor abrasador e um insistente sono provocado por um pernoite no Cristo na véspera, não havia naquela sala cheia quem se sentisse confortável, quiçá maratonista disposto a ouvir palestra. Porém, o amigo do Euclides estava em grande excitação, antes da palestra iniciar caminhava de um lado para o outro, igual pai na maternidade esperando o filho nascer e esse não nasce nunca.

Na verdade, o que ele esperava acontecer era o nascimento de uma grande confusão, tendo ele como o centro das atenções, claro.

Havia algumas pessoas de fora que foram até o local assistir a apresentação do estudioso trazendo novidades em suas pesquisas, tornando-se assim o expoente do momento. Para ser sincera, não me lembro do tema que deveria ser abordado e, acho que nenhum dos presentes deva se lembrar também, dado ao rumo que as coisas tomaram.

Os primeiros dez minutos marcaram um marasmo total, a apresentação transcorria bem, sem nenhuma intercorrência, todos cochilavam e os que não cochilavam, procuravam acompanhar o raciocínio do pesquisador. Foi aí que numa atitude quixotesca o amigo do Euclides levantou-se entrecortando a fala do apresentador, deu vida àquela tarde e a todos os que já não acreditavam em vida, após uma noite no Cristo esperando o sol nascer.

Num salto, com olhos arregalados, pôs-se à frente do palestrante aos brados:

– Pode parar! Euclides não disse isso, nem o diria ou faria, era um homem de atitudes retas.

Ao que, assustado e muito surpreso com tamanha reação, respondeu o desavisado:

– O que é isso cavalheiro, eu não conclui meu raciocínio, poderei explicar-lhe tudo logo a seguir.

Tentou retomar o raciocínio e a condução dos trabalhos, num momento onde quem há pouco estava sonolento já estava desperto e promovendo um grande burburinho na sala.

Retomou a palavra e não teve jeito, não conseguia avançar em sua exposição, pois exatos três minutos depois, houve nova interrupção, à qual o expositor convidado respondeu:

– Senhor, por favor, deixe-me terminar, aí lhe dou o direito à fala e poderá posicionar-se contrário a meus argumentos.

– Que argumento, que nada! O senhor e todos os outros são um engodo! Respondeu D. Quixote lutando contra o moinho da intelectualidade.

Já não se esperava mais concluir frases, quiçá pensamentos. O amigo de Euclides parecia o Capitão Nascimento gritando “Pede pra sair, pede pra sair”, e a palestra uma cena do filme Tropa de Elite.

Não é preciso dizer que a esta altura, os jovens davam vivas e olés a cada interrupção, a cada desaforo trocado, pois o elegante apresentador também desceu dos saltos e aquilo virou uma gritaria generalizada, foi quando surgiram novos elementos na discussão.

Todo D. Quixote tem seu Sancho Pança, com o amigo do ilustre não era diferente. Em todos os lugares em que ele estava, essa sombra o acompanhava e se pronunciava em sua defesa e, não se sabe ao certo porque levantou-se e fez tal questionamento:

– Durante a ditadura militar, esse homem que defende esse vulto da nacionalidade estava aqui o defendendo e lutando por seus ideais republicanos e onde os senhores estavam? Perguntou voltando-se para o público, que visivelmente demonstrava maior simpatia pelo pobre expositor que não expusera nada, ao que foi ouvido dos maratonistas sem maiores argumentos.

– Ihhhh, a gente nem tinha nascido.

Não tinham mesmo… E, com essa verdade inconteste fez-se uma trégua. Porém, contrariando todas as regras de boa educação, bom senso e respeito, a coisa recomeçou; já deveria ser o 14º round quando do meio do público levantou-se uma jovem senhora recém saída da vida religiosa, atordoada com tantas expressões e atitudes mundanas, protestou:

– Por favor, senhor, deixe o pesquisador terminar sua fala, vim de muito longe para ouvi-lo e o senhor não permite. Tenha a bondade…

– Bondade coisa nenhuma, ele não sabe de nada, ele não sabe a verdade, ele não fala mais nada. Bradava  o Quixote alucinado.

– Pois então, dessa vez quem fala, sou eu… Falarei uma verdade irrefutável, para que todos aqui nunca se esqueçam. E voltando-se para o alucinado, a jovem senhora recém ingressa na vida  mundana,  perdendo toda a compostura completou:

– O senhor só quer aparecer; da próxima vez que pintar os cabelos, não se esqueça de pintar os bigodes e também as sobrancelhas.

– !!!

Éhhhh… Tudo isso aconteceu em apenas algumas horas de uma tarde de agosto…

SILVA, Rachel Aparecida Bueno da. Dessa vez quem fala sou eu. In: Aconteceu em agosto: casos e causos das Semanas Euclidianas. pref. de Fausto Salvadori Filho. São Paulo: Casa do Novo Autor, 2012. pp. 36-8. E-book. Disponível em: https://euclidesite.com.br/aconteceu-em-agosto. Acesso em: [data]. Reprodução permitida somente para fins educacionais e desde que citada a fonte.