Castro Alves e seu tempo

Conferência realizada em S. Paulo,
no Clube Acadêmico XI de Agosto

Meus jovens compatriotas. ­— No cativante ofício que me dirigistes convidando-me a realizar esta conferência sobre Castro Alves, trai-se a feição preeminente do vosso culto pelo poeta.“Insigne e extraordinário condoreiro da Bahia”, dissestes; e transfigurastes, na fórmula gloriosa de uma consagração, um título não raro irônico, ou derivado dos escrúpulos assombradiços da crítica literária ante o misticismo anômalo do cantor. Por isso mesmo deliberei acompanhar-vos neste rumo; não já por ajustar-me ao vosso nobilíssimo entusiasmo, senão também por facilitar, simplificando-a, a tarefa que me cometestes. Mas observei para logo que a facilidade prefigurada, como efeito do restringimento da tese, era ilusória.

O sonhador, contemplado na fisionomia particular que lhe imprimiu o seu lirismo revolucionário de propagandista fervente das ideias e sentimentos de seu tempo, apareceu-me maior do que abrangido na universalidade dos motivos determinantes das emoções estéticas.

À restrição da sua figura literária correspondeu um alargamento na história.

O fantasista imaginoso transmudou-se.

Revendo-o, vi o aparecimento, quase inesperado, de uma fase nova na evolução da nossa sociedade.

Mas, para isto, fechei os meus olhos modernos e evitei a traiçoeira ilusão da personalidade, que está no projetar-se o nosso critério atual sobre as tendências, por vezes tão outras, das gentes que passaram.

Fui, deste modo, muito ao arrepio das ideias correntes, fortalecidas ainda há pouco por Guilherme Ferrero, na sua tentativa de deslocar para o estudo da humanidade o princípio das causas atuais, que o gênio de Lyell instituiu para explicar-se o desenvolvimento evolutivo da terra. E não me arrependo de o ter feito. Tenho que é impossível conjugar-se a simplicidade das leis físicas com o intrincadíssimo dos fatos morais, submetendo-se à mesma norma de pesquisas o maior e mais simples dos inorganismos e o maior e mais complexo dos organismos. Isto pode determinar curiosas surpresas: por exemplo, a reabilitação de Tibério… Nada mais, porém, além deste triunfo literário; tão flagrantemente ilógico é o transplante de um método inspirado em causas que se eternizam na passividade da matéria, para o perpetuum mobile do sentimento, ou do espírito, sempre a mudar, ou a renascer, sempre mais novo à medida que avulta em séculos, e sempre a transformar-se, ao ponto de se inverterem os impulsos mais enérgicos que presidiram os seus diferentes estádios.

Não preciso mostrar-vo-lo. À parte o quadro do nosso regímen industrial, ou artístico, bastaria referir-me às mudanças profundas da própria ordem moral, que Th. Buckle supôs tão imutável no meio do desenvolvimento das inteligências. E recordar-vos, percorrendo a escala dos móveis de nossos atos, quão díspares eles são, hoje, do que foram: desde as manifestações mais gloriosas das nossas energias às mais tocantes da nossa bondade; — desde o nosso heroísmo, que era ontem a forma mais fácil da coragem a desprender-se da larva da atividade militar, e agora se aparelha a lutas menos ruidosas e mais sérias, até a nossa piedade, que nasceu do íntimo sentimento da nossa fraqueza e vai-se transformando no aspecto mais encantador da nossa força.

Não me delongarei, porém. Tenho um fim neste exórdio imperfeito: prevenir-vos que entre o avaliar os homens e as cousas do passado, como objetos artísticos, através do nosso temperamento, e o vê-los, tanto quanto possível, forros das nossas tendências diversas, prefiro o último caso. Entre o considerá-los, como um geólogo, aplicando as suas regrinhas estratigráficas, indiferentemente, a uma velhíssima camada siluriana e a um estrato recente, prefiro — já que está em moda a canhestra filosofia do adaptarem-se as normas das ciências inferiores às superiores — considerá-los como o astrônomo, respeitando todas as conseqüências da distância e dos meios interpostos. Assim, quando observamos o sol, sabemos que ele não está no ponto em que o vemos: deslocam-no-lo muitas circunstâncias intermédias. O próprio raio vertical de uma estrela no zênite, que as elimina, é falso: chega-nos no desvio em que se compõe a velocidade do grande observatório telúrico com a da luz. Destarte, a própria visão material nos é errônea. Envolve-nos uma ilusão tangível. E todo o trabalho das observações mais simples está em eliminarem-se as aparências enganadoras da realidade, por maneira que, ao fim de longos cálculos, possamos ver o que os nossos olhos não mostraram.

Acontece o mesmo contemplando-se o passado. A nossa visão interior alongando-se no tempo, como a exterior ao desatar-se no espaço, é sempre falsa quando se atém só ao que divisa e não atende aos erros oriundos menos do objeto observado que da nossa posição e do meio que nos circula.

Ora, o grande poeta, motivo essencial desta assembleia, apesar da diminuta distância que no-lo separa, mais do que nenhum outro retrata, na sua nomeada variável, o contraste dos dous critérios históricos rapidamente bosquejados.

De fato, o seu renome é excepcional e curiosíssimo: todos nós o admiramos até aos vinte e poucos anos; depois o esquecemos. Esquecemo-lo, ou repudiamo-lo. É uma glória que intermite no ritmo das gerações sucessivas. Tem este traço expressivo: adormenta-se, ou restringe-se, no breve curso da nossa vida individual, e prolonga-se sem fim, restaurada de ano a ano, sempre maior, nascendo, ressurgindo e avultando, no nascer, no ressurgir e no avultar na própria sociedade. É como a luz, perpetuamente moça. Não dura a vida de um homem, e é eterna. Exige almas ardentes e a intrepidez varonil da quadra triunfal, em que andamos pela vida na garbosa atitude de quem oferece o molde de sua própria estátua, como obscuros e antecipados grandes homens, vivendo no futuro, para onde nos leva o arrebatamento de todas as esperanças. Não a comporta a alma esmorecida dos velhos, ou o juízo retilíneo do homem feito. Quando não a sentimos mais, imaginamos que ela se extinguiu, como se a noite fosse o apagamento do sol; e não fôramos nós que mergulhássemos, como a terra, na nossa própria sombra, inscientes dos resplandores que na mesma hora estão caindo sobre as outras zonas e sobre as novas gentes. Desta maneira ela vai passando, feita a herança sagrada das juventudes que se acabam; e, perenemente imóvel no oriente da vida nacional, a refulgir nos mesmos cérebros juvenis, nos mesmos olhos recém-abertos à existência, nos mesmos sonhos ardentes dos homens de uma mesma idade, é, de fato, imortal, porque diante dela se verifica uma espécie de imobilidade no tempo…

São compreensíveis os contrastes. De um lado, na quadra em que toda a irreflexão desponta do muito refletirmos o que nos cerca — está uma larga expansibilidade de sentimento, e, de par com ela, uma simpatia avassaladora, que corrigem em grande parte os desvios da nossa inexperiência, ampliando-nos a vida, ao ponto de podermos compreender, sem que careçamos discuti-las, as sínteses maravilhosas dos sonhadores. De outro, a nossa inteligência, mais e mais sobrecarregada das impressões que nos rodeiam de perto e chumbando-nos cada vez mais à base objetiva das cousas. Turva-se-nos, então, a limpidez espiritual para espelharmos as figuras anômalas desses predestinados, que não podem ser como nós somos, na imensa complexidade que os transforma, por vezes, em índices abreviados de uma época. O nosso culto decai. Distinguimos-lhes defeitos que não notáramos. Vemo-los diminuídos, e temos a ilusão de que eles vão passando e desaparecendo… o vulgaríssimo engano de quem, num trem de ferro, sente-se parado e vê fugirem, disparadas, desaparecendo, as grandes árvores que se aprumam, enraizadas e imóveis, à margem do caminho. Porque não é o poeta que se apequena e passa; é a nossa vida que se desencanta. Estonteia-nos nessa quadra a pior das nossas ilusões: a ilusão de que somos melhores, mais lúcidos, mais práticos, mais sábios. Os quadros da existência já não nos dominam. Dominamo-los nós. Submetemo-los a uma crítica permanente e cerrada, com as máximas exigências daquilo que chamamos, garbosamente, a nossa personalidade. Sentimo-nos emancipados. Principiamos a construir a ficção de um nome. E não percebemos que algumas vezes, nessa pletora da individualidade, se nos reduz o tipo social, até desaparecer encouchado e comprimido no âmbito estreitíssimo do nosso euzinho, que imaginamos enorme. E lá nos vamos, impando os nossos triunfos e as nossas convicções muito firmes, muito enrilhadas, muito duras, envaidando-se de calçarem os pobres coturnos rasos de uma meia ciência pretensiosa.

Então esse Castro Alves, o “condoreiro”, que nos arrebatou aos maiores lances da nossa fantasia, surge-nos monstruoso, paradoxal, quimérico…

É que nos andamos tão jungidos às tendências adquiridas, que não logramos mais sequer balancear os efeitos das simples diferenças de datas para vermos a imagem do poeta corrigindo o nosso descortino das causas perturbadoras que no-la desviam. E, desdobrando o nosso critério atual sobre um tempo de que nos separam os quarenta anos mais intensos de nossa história, sobressalteiam-nos, por força, grandes desapontamentos.

É compreensível. A sua fantasia exagerada contrasta demais com o mundo em que vivemos. Na esteira infernal, que o Navio Negreiro abriu sobre o abismo, com a singradura fantástica,

…abrindo as velas,
Ao quente arfar das virações marinhas,

navegam hoje os pacíficos transatlânticos, onde se apinham os emigrantes tranquilos, que reclamamos para as lavouras do Oeste. O recife imenso de pedra, “que rasga o peito do mar”, está em boa hora submetido aos cálculos e aos desenhos rigorosos de alguns provectos engenheiros a projetarem os melhoramentos do porto de Pernambuco…

E a própria cachoeira de Paulo Afonso

…a cachoeira! o abismo!
A briga colossal dos elementos!
(…)
Aguentando o ranger (espanto! assombro!)
O rio inteiro, que lhe cai ao ombro!

…a cachoeira de Paulo Afonso em breve terá a sua potência formidável aritmeticamente reduzida a não sei quantos milhares de cavalos vapor; e se transformará em luz para aclarar as cidades; em movimento, abreviando as distâncias, avizinhando os povos e acordando o deserto com os silvos das locomotivas; em fluxo vital para os territórios renascidos, transfundindo-se na inervação vibrátil dos telégrafos; em força inteligente, fazendo descansar um pouco mais o braço proletário; e fazendo-nos sentir o espetáculo de uma mecânica ideal, de efeitos a se estenderem pelos mais íntimos recessos da sociedade, no másculo lirismo da humanização de uma cega energia da natureza…

Vede, por aí, como se contrabatem os estímulos modernos e aquele misticismo maravilhoso.

Além disto, o aparecimento de Castro Alves, certo oportuno, como o de todo grande homem, é, em grande parte, inexplicável. Ele não teve precursores na sua maneira predominante. Os grandes pensamentos, sociais ou políticos, que agitou não lhe advieram, como em geral sucede, de longas ou bem acentuadas correntes nos agrupamentos que o rodeavam. Pertenciam, plenamente generalizados, à sua época. Nasciam do patrimônio comum das conquistas morais da humanidade. A sua grandeza está nisto: ele os viu antes e melhor do que os seus contemporâneos. Compreende-se que o estranhassem. Sem dúvida, devera ser anômalo, e, ao parecer, desorado, o vidente que surgia, de improviso, num estonteamento de miragens, e a proclamar uma nascença ainda remota, ou a descrever a era nova, que poucos adivinhavam, numa linguagem onde, naturalmente, os mais belos lances de seu lirismo incomparável teriam de golpear-se do abstruso e do impressionismo transcendental das profecias…

A este propósito lembram-me alguns conceitos que se exaram numa das conferências de Renan. Li-os cheio de espanto. O adorável pensador pareceu-me, ao primeiro lance, desviado do seu inalterável senso não comum, do seu ceticismo suavíssimo e da sua ironia tranquila. A seu parecer, dizia sem rodeios aos que o escutavam, uma raça dá os seus melhores frutos quando desperta de uma dilatada sonolência. As mais belas revelações intelectuais têm sempre um enorme lastro de inconsciência, ou, como acentuava, de vastos reservatórios de ignorância.

E ia por diante na aventurosa tese tão chocante, ou contravinda, às mais vulgares noções da continuidade do progresso, afirmando temer pela humanidade no dia em que a luz atravessasse todas as suas camadas. Por que — inquiria — de onde viriam, então, os sentimentos instintivos, o heroísmo, que é tão essencialmente hereditário, o amor nobre das cousas, que nada tem com os nossos juízos, e todos esses pensamentos inconscientes de si próprios, que estão em nós sem nós e formam a melhor parte do apanágio de uma nacionalidade inteira? Por derradeiro — rematava —, de onde viria o gênio, que é quase sempre o resultado de um longo sono anterior das raças?

É, como vedes, paradoxal e inaceitável.

Entretanto, defrontados o nosso poeta e a sociedade de seu tempo, e vendo-o aparecer quando ela, de feito, se afigura despertar de um demorado sono, afeiçoamo-nos, irresistivelmente, à metafísica imaginosa do notável pensador.

É o que nos demonstrará, de maneira evidente, um breve lance de vistas sobre o passado.

*

Com efeito, não sei de nenhuma raça que, como a nossa, despertasse nestes tempos, depois de um mais profundo sono, aparelhando-se, à carreira, para alcançar a marcha progressista de outros povos.

Baste considerar-se que somos o único fato de uma nacionalidade feita por uma teoria política.

Fora longo desviar-me patenteando os elementos originários da afirmativa. Não há prodígios de síntese que nos digam, em poucas palavras, o contraposto da nossa formação étnica, ainda incompleta e em pleno caldeamento de três fatores diversos, e a unidade política estendida em vastíssimas terras, numa inversão flagrante da ordem lógica dos fatos, fazendo que a evolução social passasse adiante da evolução biológica.

Aparecemos quando se cerrava o período medievo, lançando-se os fundamentos reconstruintes de outras sociedades; naquela ocasião tínhamos três cores e falávamos três línguas, definíamos três estádios evolutivos. Destarte, sem o mesmo tirocínio secular, prendemo-nos à rota de outras gentes mais experimentadas; e sofremos para logo as conseqüências da temeridade. Sem uma idade antiga, nem média, fomos compartir as primícias da idade moderna; o efeito foi que as nossas idades antiga, média e moderna confundiram-se, interserindo-se dentro das mesmas datas. Há um livro que é simples historiúncula desse drama obscuro. A luta de 1897, nos sertões baianos, a despeito de sua data recente, foi um refluxo do passado; o choque da nossa pré-história e da nossa modernidade; uma sociedade a abrir-se nas linhas de menor resistência, e mostrando, em plena luz, as suas camadas profundas irrompendo devastadoramente, a exemplo das massas candentes de diábase que irrompem e se derramam por vezes sobre os terrenos modernos, extinguindo a vida e incinerando os primores da flora exuberante.

E foi em nossos dias… Calcule-se como estariam ainda mais desquitados entre si, em 1822, os três grandes agrupamentos…

No entanto, fizemos uma Constituição política; isto é, fizemos o que é sempre uma resultante histórica de componentes seculares, acumuladas no evoluir das idéias e dos costumes; o que é um passo para o futuro, garantido pela força conservadora do passado; o que é essencialmente tradicional; e o que menos se faz do que se descobre no conciliar de novas aspirações e novas necessidades com os esforços, nunca perdidos, das gerações que nos precedem. Tanto importa dizer que fizemos uma teoria com materiais estranhos, a ressaltar do esforço artístico, ou subjetivo, de uma minoria de eruditos. E assim nascemos sob o hibridismo da monarquia constitucional representativa — quase abstratamente, ou patenteando, pelo menos, o maior exemplo de política experimental tateante que se conhece.

No entanto, realizamos duas conquistas capazes por si sós de constituírem o programa de uma nacionalidade. Fizemos a Abolição e a República. Mas, ainda neste lance, o historiador futuro não encontrará pontos determinantes que lhe bastem ao diagrama de uma evolução.

Realmente, o ideal democrático, bem que o favorecesse a falta de tradições dinásticas, jazeu largo tempo com o único e longínquo ponto de partida da Inconfidência mineira, alimentando-se da lembrança dolorosa do heroísmo inútil de meia dúzia de poetas e de um soldado. Em 1822 sopeou-o, assim como à ideia abolicionista, apesar da lucidez genial de José Bonifácio, o pensamento preponderante da autonomia política; e no decênio que vai até 1831, nos tumultos que o sulcaram, nota-se mais o antagonismo nativista que o entrebater das correntes republicana e monárquica contrapostas.

Como quer que fosse, o liberalismo triunfante no 7 de Abril perdeu as honras da vitória. Entre ele e os reacionários absolutistas, vencidos e desnorteados pela renúncia do primeiro Imperador, interpôs-se um partido que não lutara e chamava-se, curiosamente, liberal-monarquista. Fortalecia-o o caráter neutral entre adversários ainda combalidos do recontro; e harmonizando as conquistas dos triunfadores da véspera com as tendências conservadoras dos vencidos, pôde repelir-lhes por igual os objetivos extremados, anulando, do mesmo passo, com a república prematura o absolutismo revivente. E institui-se a Regência. Não a condenemos. Ela foi o único regulador capaz de uniformizar tantas energias revoltas de tendências disparatadas. A figura de Diogo Feijó, que a domina, sobranceia todo o nosso passado. [ 1 ] Tem linhas esculturais, que ainda não se reproduziram em nossos homens públicos. Que outros admirem os marechais dominadores de rebeldias dentro do círculo de aço dos batalhões fiéis; eu prefiro admirar aquele padre estupendo que com as mãos inermes quebrava as espadas dos regimentos sublevados. Ninguém mais do que ele nobilitou a lei, restaurou a autoridade e dignificou o governo. Mas, embatendo na sua alma antiga, quebrou-se, totalmente, a vaga de uma revolução. E ele fez o remanso largo do segundo Império…

Na realidade, daí por diante, num período de trinta anos, é escusado perquirir-se o curso da corrente republicana, ou da abolicionista, nos abalos sociais que houve: no extremo sul, a luta separatista desenrolou-se durante dez anos, toda ela local, diante da impassibilidade do resto do país; no extremo norte, as selvatiquezas da “cabanagem” nada mais foram que um sintoma da heterogeneidade étnica há pouco referida. Um outro refluxo do passado. Ao “cabano” sucederiam, no correr dos tempos: o “balaio” no Maranhão; o “cangaceiro” em Pernambuco; o “chimango” no Ceará; nomes diversos de uma diátese social única, que chegaria até hoje projetando nas claridades da República o perfil apavorante do “jagunço”.

Nos demais tumultos, o exame torna-se até contraproducente: nos de 42, em S. Paulo e Minas, e nos de 48, em Pernambuco, os rebeldes, timbrosos em conclamar a adesão ao trono, arremetem com as tropas imperiais saudando a realeza.

Assim fomos, até que se infiltrasse de todo em nosso organismo político o marasmo monárquico, desenhando-se a época “sem fisionomia, sem emoções e sem crenças” a que se referiu Salles Torres-Homem, na qual esteve tão adormecido o sentimento nacional que não despertou o próprio brio apisoado quando a civilização nos atirou o insolente ultimatum do bill de Aberdeen e nos rodeou de um verdadeiro cordão sanitário, mandando que os cruzeiros ingleses rondassem as nossas costas, numa azáfama inquieta de patrulhas à roda de um ajuntamento ilícito.

Por fim, se conciliaram as únicas tendências políticas definidas, que agiram em tão largo período, resumindo-se nas divergências desvaliosas dos dous partidos constitucionais — ocupando todo o horizonte político o Marquês do Paraná, simbolizando a plenitude do Império…

Mas o grande estadista separou duas épocas. A própria data, 1859, da sua saída do Governo é expressiva. É a média entre 1831 e 1888-1889. O império e a oligarquia escravocrata, em que ele se esteara, imprudentemente, iriam gastar, apeando-se de seu fastígio, o mesmo número de anos que haviam despendido para adquiri-lo.

Porque em 1860 houve o primeiro estalo naquela estrutura artificial. O ideal democrático apareceu, de golpe rejuvenescido, depois de um curso subterrâneo e misterioso. Nas eleições daquele ano o partido liberal levantou três nomes, que se completavam na variabilidade de seus destinos: Francisco Otaviano, um mulato ateniense, romântico e idealista, cantava a volta triunfal das utopias; Teófilo Otoni, impulsivo e rude, seria o detonador das expansões populares adormidas; e, maior do que ambos, Saldanha Marinho destinava-se a um longo itinerário. Eram os batedores da era nova que chegava. O ideal irradiava. Nas Câmaras, um novo partido, com o nome sugestivo de “progressista”, entalhava a ortodoxia monárquica, a despeito do caráter sacratíssimo que lhe dava a santíssima trindade conservadora de Eusébio de Queirós, Itaboraí e Uruguai. Na imprensa, a Actualidade, de Pedro Luís, Flávio Farnese e desse Lafaiete Rodrigues Pereira, que ainda refulge no cimo de uma velhice majestosa, agitava um ultraliberalismo visando corolários extremos. No próprio Senado, Nabuco — um nome que é um patrimônio nacional — aproveitava a cerimônia inaugural da estátua de D. Pedro I para afirmar que ela traduzia antes a paga de serviços prestados do que a glorificação de um reinado. E na ordem estética, até então ocupada pela grandeza castiça e impecável de Gonçalves Dias, ou pela musa espartilhada de Maciel Monteiro, passaram, abalando-a, num longo ruído de terremoto longínquo, os alexandrinos da Mentira de bronze… Por fim, nas praças, o espírito público desatava-se em rebeldias desde muito deslembradas, a propósito dos mínimos incidentes.

Foi o que sucedeu em 1863, por ocasião dos tumultos originados pelos salvados da barca Prince of Wales, e subsecutivas represálias da fragata inglesa Forth.

Amotinou-se a multidão no Rio. Tomou-lhe a frente Teófilo Otoni. Um protesto violento arrebentou junto do trono: e o Ministério daquele Marquês de Olinda, que era, de fato, uma espécie de vice-imperador, o “ministério dos velhos”, num triste apagamento de sombras, as últimas sombras do passado, extinguiu-se, sulcado pela palavra de fogo de um tribuno…

*

Ora, por aquele mesmo tempo, no mesmo ano, uma voz mais alta, mais nova e mais dominadora se alevantou ao norte. E tinha um ritmo, como o têm todas as forças criadoras da natureza. As energias sociais emergentes, nos vários aspectos que iam da ideia republicana ao sentimento abolicionista, desvendavam-se, afinal, como soem sempre aparecer as grandes aspirações sociais: imaginosas e vastas, a nascerem do vago e do impreciso das utopias — que recordam na ordem espiritual o vago e o amorfo das nebulosas de onde nascem os mundos — vibrando nas rimas soberanas de um poeta. A revivescência do espírito nacional completava-se, consoante a norma lobrigada pela intuição do filósofo: depois de um longo, de um profundo sono. Aparecia o homem que mais que todos lhe imprimiria o impulso inicial das emoções estéticas, sempre indispensáveis aos grandes acometimentos. Porque naquela palavra nova, por um milagre de síntese que a nossa afetividade às vezes efetua, suplantando as maiores generalizações científicas, conchavaram-se, de súbito, as grandes esperanças do futuro e os graves compromissos do passado. Refundiram-se os elos partidos e esparsos das nossas tradições: o cantor do Livro e a América seria o mesmo idealista das Vozes d’África, que eram a própria voz de uma raça inteira [ 2 ] condenada, ressurgindo e ressoando nestes tempos, depois de três longos séculos silenciosos…

Não nos retardemos em palavras dilatórias armadas a mostrarem que nenhum dos nossos poetas foi, tanto quanto Castro Alves, ainda mais oportuno, nascendo com o renascimento da sua terra. Os sucessos sumariados dizem-no-lo por si mesmos. Está nesta circunstância a sua maior grandeza.

O que apelidamos grande homem é sempre alguém que tem a ventura de transfigurar a fraqueza individual, compondo-a com as forças infinitas da humanidade; e não sei de quem, como ele, entre nós, naquele tempo, tanto se identificasse com o sentimento coletivo, revivente, estimulando-o e aformoseando-o.

Se prolongássemos a pálida resenha histórica anteriormente delineada, veríamos que aquele decênio de 1860-1870, em que tivemos até o diversivo espetaculoso de uma guerra externa, foi, entre todos, o mais decisivo para os nossos destinos. E quando chegássemos ao ministério do Visconde do Rio Branco, que lhe prolongou as novas tendências renascidas até 1875 e, virtualmente, até quase a estes dias, constituindo-se o mais longo e fecundo dos governos parciais do império, não nos maravilharíamos que o lúcido estadista houvesse de ser, a um tempo, demolidor e reconstrutor: de um lado, dirigindo o primeiro assalto contra a escravidão; entalhando, fundo, a ortodoxia católica e eliminando a justiça reacionária do código russo de 1841; de outro lado, normalizando as atividades; aviventando o desenvolvimento econômico; nivelando-nos à ciência contemporânea com a reforma das escolas; golpeando o deserto com as estradas de ferro de penetração e dando à unificação de nossas idéias, tão enfraquecida pelo espalharem-se em território vastíssimo, a base prática dos telégrafos, que irradiaram pelas províncias, enfeixando-se no Rio de Janeiro, onde, em 1874, o primeiro cabo submarino, atravessando o Atlântico, nos permitiu contar os mesmos minutos que a civilização.

Porém, desviar-nos-íamos sobremaneira firmando o travamento complicado, que prende às fantasias, tão na aparência subjetivas, de um poeta essas admiráveis transformações, que se lhe figuram tão estranhas ou contrapostas.

Nem direi de sua influência na plêiada de moços, seus contemporâneos, que ele transfigurou e dirigiu, libertando-a das prosaicas epopéias caboclas de Magalhães, ou Porto Alegre, do cândido erotismo do Amor e medo, ou do esplêndido romantismo exótico de Álvares de Azevedo e seus epígonos.

Prefiro, adstrito à observação pessoal, apontar-vos o seu influxo na minha geração, que está envelhecendo, já pelos anos, já porque nenhuma mocidade foi, como ela, tão brutalmente jogada de uma academia para os planos de fogo das trincheiras, sofrendo as conseqüências das loucuras de alguns velhos.

Falo por mim. Eu fui um obscuro e pertinaz estudante de matemática. Quer dizer: precisamente quando mais adorável se nos mostra o quadro desta vida, e o seu vigor desponta da mesma ansiedade de viver, tive que contemplar o universo vazio e parado — apagadas todas as luzes, extintos todos os ruídos, desaparecidas todas as cousas, desaparecida a própria matéria — de sorte que nessa abstração, a aproximar-nos do caos, permaneçam, como atrativos únicos, a forma, nos seus aspectos irredutíveis, e o número e sinais completamente inexpressivos. Pois bem; folheando, há pouco, os meus velhos cadernos de cálculo transcendente, onde se traçam as integrais secas e recurvas ao modo de caricaturas malfeitas, de esfinges, e onde o infinito, tão arrebatador no seu significado imaginoso, ou metafísico, se desenha, secamente, com um oito deitado, um número que se abate, desenhando, de uma maneira visível, a fraqueza da nossa inteligência, a girar e a regirar numa tortura de encarcerada, pelas voltas sem princípio e sem fim daquele triste símbolo decaído — deletreando aquelas páginas, salteiam-me singularíssimas surpresas.

Aqui, num breve espaço em branco, na trama dos riscos de uma cousa que se chama equações binômias, e nunca mais vemos na vida prática, fulgura, iluminando a folha toda:

República! vôo ousado
Do homem feito condor…

além, enleada de sigmas, de alfas e de gamas cabalísticos, divisa-se

A catapulta humana – a voz de Mirabeau!

mais longe, seguindo um ramo de parábola, no seu arremesso eterno para o infinito, estira-se

O trilho que Colombo abriu nas águas
Como um íris no pélago profundo!

Assim nos andávamos nós naqueles bons tempos: pela positividade em fora, e a tatear no sonho…

É que Castro Alves não era apenas o batedor avantajado dos pensamentos de seu tempo. Há no seu gênio muita cousa do gênio obscuro da nossa raça.

Aos que lhe denunciam nos versos a autoridade preponderante de Victor Hugo esquece-lhes sempre que ela existiu sobretudo por uma identidade de estímulos. Não foi o velho genial quem nos ensinou a metáfora, o estiramento das hipérboles, o vulcanismo da imagem e todos os exageros da palavra a espelharem, entre nós, uma impulsividade e um desencadeamento de paixões que são essencialmente nativos.

Somos uma raça em ser. Estamos ainda na instabilidade característica das combinações incompletas.

E nesses desequilíbrios inevitáveis, o que desponta na nossa palavra — irresistivelmente ampliada — parece-me, às vezes, ser o instinto, ou a intuição subconsciente, de uma grandeza futura incomparável.

Eu poderia recitar-vos um sem-conto de trovas sertanejas, onde as metáforas e as alegorias, e até as antíteses, se acumulam, alguma vez belíssimas, e detonam e fulguram, sempre a delatarem uma amplificação, o eterno aspirar por um engrandecimento e uma afetividade indefinidamente avassaladora e crescente.

E não já nas quadras, em que os bardos roceiros têm o estimulante dos desafios recíprocos, senão na trivialidade do falar comum, exprimindo os atos mais vulgares, desde o nosso caipira, que, ao procurar em qualquer cômodo exíguo um objeto, nos diz, num largo gesto, que está campeando, como se o rodeassem os sem-fins dos horizontes vastos; até ao cabra destabocado do norte, que, ao relatar o incidente costumeiro da dispersão de uma ponta de gado na caatinga, brada, estrepitosamente, que o boiadão estourou num despotismo ribombando no mundo

A par disto, o refluxo natural das apatias, inventando-se a modinha para embalar a tristeza e a preguiça dos matutos. Não vo-las descreverei, redizendo-me. Fora enlearmo-nos todos, sem efeito compensador, na trama inextricável das raízes gregas dos presuntuosos neologismos etnológicos. Exponho-vos o que coligi de observações diretas. Por uma felicidade rara, calcei, há muito, umas velozes “botas de sete léguas” que me tornaram arredio das cidades, perdido, esquivo e errante no meio dos nossos simples patrícios ignorados. Conheço-os de perto. Vi-os na quietitude de suas vidas primitivas. Vi-os na batalha. Atravessei com eles belos dias de lutas heroicas e sem glória nas campanhas formidáveis e obscuras do deserto. E sempre os vi num oscilar enorme, entre as suas tendências discordes, exageradas todas.

E quando releio o lírico suavíssimo da Volta da Primavera, da Adormecida, desse surpreendente poema de duas páginas, O hóspede, e dos Murmúrios da tarde, ou do Gondoleiro do Amor – que é o próprio vidente arrebatado da Ode ao Dous de Julho, das décimas que imortalizaram Pedro Ivo, da Deusa Incruenta, ou do Coup d’étrier, e vou, de um salto, das páginas por onde os versos vão derivando, docemente,

como as plantas que arrasta a correnteza,

para as rimas furiosas, que se entrebatem e estalam e estrepitam

com o estampido estupendo das queimadas!

estou em que Castro Alves foi também altamente representativo da nossa raça.

Por isso mesmo não teve medida, consoante nos ensinaria qualquer crítico reportado e sabedor…

E não podia tê-la, porque nunca se isolou de seu meio. De ordinário, quando se trata da vida exterior de Castro Alves, episodiam-se, longamente, os seus triunfos nos salões, ou nos teatros da época, onde lhe prefulgia a beleza varonil realçada pela glória nascente. Ou então a rivalidade boêmia com aquele extraordinário Tobias Barreto [ 3 ], que, sendo mestiço, se tornaria mais brasileiro do que o poeta baiano se a sua veemente alma tropical não resfriasse sob as duchas enregeladas de quatro ou cinco filosofias da Alemanha.

E agitam-se, a propósito, algumas anedotas inexpressivas e graciosas, em que es entrouxam as saias de Eugênia Câmara e a túnica da mulher de Putifar. Não nos percamos por aí.

Há outras mais acomodadas ao nosso intento. Conta-no-las o Dr. Regueira Costa — que para felicidade minha acertei de encontrar numa das escalas desta carreira errante, quando passei em Recife, e cujo belíssimo coração é todo ele um relicário guardando a memória saudosa do poeta, de quem foi extremosíssimo amigo. [ 4 ] A ele ouvi eu que Castro Alves não engenhava o melhor de suas apóstrofes revolucionárias na placidez de um gabinete de trabalho. Agia com todo o ardor de que é capaz um propagandista. [ 5 ] Assim, foi o presidente de uma das primeiras sociedades abolicionistas que houve no Brasil, reunindo, em 1866, na cidade do Recife, em torno do programa libertador, a maioria dos estudantes da Faculdade de Direito, onde se destacavam Augusto Guimarães, Plínio de Lima e um predestinado, Rui Barbosa.

As décimas fulminantes nem sempre as concebia no cauteloso encerro de certos demiurgos, que abalam tronos, desconjuntam sólios, aluem instituições, viram sociedades pelo avesso, alarmam a polícia e põem o Universo em polvorosa, manipulando os raios de seus pontos de admiração e o sombrio cariz de suas tempestades de sílabas, muito pacificamente engrimponados num tamborete alto, de bruços na secretária bem arrumada. Saltaram-lhe, muita vez, de improviso, num ângulo de esquina, num centro de praça, num camarote de teatro, ou no balcão de uma janela repentinamente aberta, enquadrando-lhe de improviso a formosa figura de girondino diante da multidão revolta e fascinada. E na grande maioria se perderam. Apaziguado o tumulto, os que lhas haviam escutado e aplaudido mal conservavam raros versos, os mais impressionantes, longamente esparsos com estilhas de granadas.

Observe-se, contudo, esta circunstância: recolhiam-se e rememoravam-se os mais vivos, digamos melhor, os mais gongóricos, ou “condoreiros”, vibrados com ímpeto tal que os estampasse para sempre na própria rudeza do espírito popular. Assim, no final de uma conferência republicana que houve, por volta de 1867, na capital de Pernambuco, quando o povo se espalhava, desparzido a patas de cavalo, o poeta procurou sobrestar as cargas policiais vibrando rimas violentas, que principiavam:

A praça, a praça é do povo
Como o céu é do condor!

Vede como aí o revolucionário sacrificou o lírico. Tais versos fá-los-ia um qualquer improvisador sertanejo, qualquer dos nossos caipiras, ou piraquara do litoral, ou capixaba espírito-santense, ou tabaréu baiano, ou guasca largado do Rio Grande, com o só excluir-se daquele condor, que nenhum deles viu, nem verá.

Entretanto, embora não se encontrem nos livros do poeta, ficaram.

Porque a ele não lhe bastava o haver deslocado para a sua pátria os elevados pensamentos políticos do tempo; senão que os apresentava com um fino tato de propagandista, por maneira a gravá-los, incisivamente, para sempre, na alma da multidão.

E aquele abnegar-se a si próprio, aquele abdicar de si todas as vantagens de um cômodo isolamento para ir sofrer de perto o contágio da índole ainda revolta, ou desequilibrada, da sua raça; aquele tornar-se, porque assim o digamos, intérprete, entre os maiores ideais de toda a cultura humana e a consciência nascente de seu país — contribuíram, notavelmente, a que se criasse a nota exagerativa dos versos formadores de seu maior renome, apagando-se, ou empalidecendo, a maioria de outras criações, porventura mais valiosas, de um lirismo admirável.

É que somos, ainda, sobre todos os outros, o povo das esplêndidas frases golpeantes, das imagens e dos símbolos. [ 6 ]

*

Não indaguemos se isto é um bem ou um mal. Talvez um mal.

Há um lance de grave substância, em que se irmanam o espírito apercebido das maiores generalizações e o senso mais comum e terra-a-terra. Nele se dão os braços o filósofo complicado e o burguês simplesmente cauteloso e solerte: Augusto Comte e Simão de Nântua. É o que nos diz que, nesta vida, em qualquer dos rumos percorridos, quer nas pesquisas da ciência, quer na contemplação artística, quer nos inumeráveis aspectos da ordem prática, devemos submeter a nossa imaginação à nossa observação, porém de modo que esta não anule aquela: isto é, que os fatos, reunidos pela ciência, não se agreguem numa pesada e árida erudição, e só nos tenham a valia que se derive de suas leis; que os modelos ou objetos do nosso descortino artístico não se submetam em tanto extremo à ordem material que nos extingam o sentimento profundo da natureza, apequenando-nos num raso realismo; e que as exigências utilitárias da vida prática, o ansiar pelo sucesso, a nobre vontade de vencer com os recursos que crescem, a subir, desde a riqueza até ao talento, não rematem fechando-nos o coração e exsicando-nos o espírito, deixando-no-los sem as fontes inspiradoras da afetividade e das nossas fantasias.

Nem místicos, nem empíricos…

Ora, das palavras anteriores pode inferir-se o conceito de que nos andamos ainda muito abeirados do misticismo, fora da mediana norteadora entre a existência especulativa e a existência ativa. A emoção espontânea ainda nos suplanta o juízo refletido. Somos uma raça romântica. Mas romântica no melhor sentido desta palavra proteiforme, que é definida de mil modos e ajusta-se às incontáveis nuanças do sentir humano, de sorte a passar-se dos lenços encharcados de lágrimas, de não sei quantos deliquescentes prantivos, para a ironia lampejante das páginas de Henrique Heine.

Romântica no significado heróico de uma crença exagerada em nossas faculdades criadoras, a despontar da consciência instintiva de nosso gênio, que nos arrebata sobre as barreiras da razão teórica, fazendo que falsifiquemos a realidade para torná-la maior, glorificando-a.

E, sendo assim, o que seria um mal, como forma definitiva do caráter, pode ser um bem na fase transitória que estamos ultimando.

Porque desta guiza nasceram e se embalaram nos primeiros dias todas as nações estáveis, com uma missão definida no destino geral da humanidade.

O romantismo, no sentido superiormente filosófico, traduzindo as máximas temeridades dos espíritos no afeiçoarem o próprio mundo exterior a um vasto subjetivismo — nasceu na Alemanha. Ora, a Alemanha é hoje o modelo impecável de uma nação prática e fecunda, utilitária e mais que todas aparelhada de lúcido discernimento dos melhores recursos que nos oferece a ordem objetiva: o seu comércio bate nesta hora nos mares o primado tradicional do comércio inglês; e a sua indústria, desde a rude indústria das minas à indústria química e às maravilhas da eletricidade, abriu à força, arrombando-as, as portas de todos os mercados.

Pois bem, esta Alemanha, que nos assusta mais com as suas usinas que com as suas casernas, nasceu de um sonho.

Há na história um homem que reduz Bismarck: é Fichte.

O rígido e ríspido chanceler, irrompendo, retardatário, nestes dias; com o seu tremendo tradicionalismo feudal e as suas fórmulas governamentais curtas, secas e rijas como pranchadas; e a sua irritante glorificação da força física; e a sua pasmosa curteza intelectual, tão restrita que nunca logrou resolver um só dos árduos problemas que se lhe antolharam sem o confiar à fortuna traiçoeira das batalhas — era diminuto demais para construir um povo.

Acima da unidade política germânica, desenhada, a tira-linhas e a régua, nas cartas do estado-maior prussiano, existe uma cousa mais alta — a unidade moral da Alemanha. E esta, certo, não a encontrareis nas sangueiras de Sadowa e de Sedan. Vem de mais longe. Desponta toda ela de uma expressão dúbia, cheia de mistérios, que se chamou “idealismo transcendente”, e era a elaboração imaginosa e estranha de uma filosofia natural sem a natureza, a harmonia do consciente e do inconsciente, o desatar-se indefinido dos espíritos ante a emoção vaga e maravilhosa do Infinito…

Por aqueles tempos aparecia um homem a propagar um exagero que negacearia o riso ao mais rombo crítico de agora: a soberania absoluta da arte. Era Friedrich von Schlegel. Para ele, a inspiração romântica era sem termos: nada poderia existir acima da fantasia arbitrária do poeta.

E foi à luz desse idealizar incomparável que se eliminou o pernicioso cosmopolitismo de um país até aquela quadra sem fisionomia, feito um acervo incoerente de ducados — orientando-se a correntes tradicionalistas e erigindo-se, com o patriotismo, um espírito nacional.

Não vo-lo direi como. Nem há quem no-lo explique bem.

Na própria matéria, tão mais simples, tão passiva às nossas experiências, tão a toda hora sujeita aos nossos arbítrios, por maneira que até no bronze podemos estampar para sempre um pouco da nossa alma, ou um traço imperecível dos nossos erros, na própria matéria nos sobressalteia o mistério. O mais frio, o mais arguto, o químico mais pertinaz, ao cabo de cinqüenta anos de laboratório, entre reativos e retortas, não nos explica o que ele chama força catalítica; nem nos diz por que motivo vários corpos, que permanecem sempre indiferentes uns aos outros, por mais que se misturem e sobre eles reajam todos os agentes físicos mais demorados e fixos — só se combinam, de pancada, explodindo, à passagem instantânea de um simples raio de luz…

Assim vai passando, talvez, pelas camadas humanas a irradiação miraculosa da alma dos poetas; assim passou, talvez, pelas camadas profundas da nossa gens complexa a idealização transfiguradora do nosso extraordinário sonhador.

*

Senhores. Temos mudado muito. Partiu-se nos últimos tempos o sequestro secular, que nos tornava apenas espectadores da civilização. A nossa política exterior conjugou-se com a internacional. O descortino dilatado de um estadista, depois de engrandecer-nos no espaço, engrandeceu-nos no tempo. Na última conferência de Haia o Velho Mundo escutou, surpreendido, uma palavra de excepcional altitude.

Pense que seremos em breve uma componente nova entre as forças cansadas da humanidade.

E, se isto suceder, se não for uma miragem esta visão do futuro; se chegarem, de fato, os novos tempos que se anunciam, em que nos tornaremos mais solidários com a evolução geral, dando-lhe o melhor da nossa afetividade originária e a fortaleza vivificante do nosso idealismo nativo ­— então a modestíssima “herma”, alevantada ao mais intrépido dos nossos pioneiros do ideal, germinará estátuas: há de avultar, maior, no rejuvenescimento da nossa terra, como avulta nas vossas almas de moços a figura escultural do poeta, que deveis admirar sempre, como hoje o admirais, quaisquer que sejam os vossos desapontamentos futuros inevitáveis, ou os rigorismos da vossa existência prática, porque esta admiração exige se conservem despertos todos os alentos que, em geral, se nos vão a pouco e pouco amortecendo no fundo do nosso espírito trabalhado; e é quase um meio de enganar-se o tempo e manter-se, longamente, a mocidade.

[ 1 ] Entre os monumentos glorificadores do passado, que vão erigindo-se em nossas praças, faltam, por uma coincidência curiosa, as estátuas de dois padres: a de Anchieta, que realizou, entre os seus maiores milagres, o de nos reconciliar com os jesuítas; e a de Diogo Feijó, que nos reconcilia com o regime monárquico, porque lhe deu a admirável missão histórica de garantir, por meio da unidade política, energicamente firmada, a unidade nacional que vacilava.
[ 2 ] A este propósito, considere-se que Antônio de Castro Alves, desde o início da adolescência teve a preocupação superior dos destinos da raça espoliada. Os primeiros versos, talvez, que escreveu e publicou no n° 1 do periódico acadêmico Primavera, de 19 de maio de 1863, têm um título expressivo: “A canção do africano”. O poeta dos escravos, que nascera em março de 1847, estava então à volta dos 16 anos.
[ 3 ] Nos seus Estudos pernambucanos, Alfredo de Carvalho revela vários casos desta feição acessória do poeta: “Quando ainda não estavam estremecidas as suas relações com Tobias Barreto, achando-se Castro Alves no teatro de Santa Isabel, onde ambos assistiam a um espetáculo em benefício do violinista Muniz Barreto, pediu um mote a Tobias, a propósito do talento musical do precoce maestro; e poucos momentos depois, assomava ele a um camarote, recitando o primoroso soneto:
Era no céu, a luz da lua errante… que era a glosa do mote dado, havia pouco, por Tobias Barreto:
No teu arco prendeste a Eternidade!
Mais interessante foi o improviso com que Castro Alves respondeu aos versos de Tobias, quando este, no mesmo teatro, procurando elevar o merecimento do artista, de cujo partido era chefe, se atirou contra o seu colega, dirigindo-lhe as insinuações ferinas contidas nos seguintes versos:
Sou grego, não me embriago
Nos banquetes de Friné

Apanhando a luva que se lhe lançara e em saudação a outra atriz (Eugênia Câmara) a quem daquele modo Tobias ofendia, Castro Alves não se demorou em responder-lhe, atirando-lhe em represália:
Sou hebreu, não beijo as plantas
Da mulher de Putifar…

aludindo à diva do poeta, que era casada com um ator da companhia.”
[ 4 ] O dr. João Batista Regueira Costa, que assiste na cidade do Recife, é, talvez, o último dos nossos velhos românticos. Conserva, intactas, numa velhice encantadora, muitas ilusões de uma juventude brilhante, extinta há quarenta anos. A afeição que lhe dedicava Castro Alves era fraternal e profunda. Delatam-na numerosíssimos lances das cartas do poeta, que extratamos quase ao acaso: …“Meu simpático amigo. Perguntas-me na tua última carta se estou ofendido contigo… Ninguém se fere no veludo… …Enfim escreve-me longamente. Em mim a preguiça é proverbial; mas em ti, magno criminalista, em ti, é absurda. Eu sou um lazaroni; tu és um Troplong. Sê, pois, trop long… Manda-me a Parisina e tudo o que tens escrito aí nessa boa terra das inspirações, do romantismo, dos meus sonhos da Bohemia, do meu país latino, das minhas loucuras e dos meus amores. Quero ler Byron e Lamartine na melodiosa toada de tuas estâncias…”
[ 5 ] Aos casos enunciados, podem aditar-se as décimas “que improvisou de uma das janelas da Rua do Imperador, no Recife, indignado pela atitude fraca da autoridade policial na questão Ambrosio Portugal, em que ele exclama:
A lei sustenta o popular direito.
Nós sustentamos o direito em pé…

(Estudos pernambucanos, de Alfredo de Carvalho).
[ 6 ] Relato, como exemplo, este incidente expressivo: há dois anos, num entardecer de julho, eu chegava, com os restos de uma comissão exploradora, à foz do Cavaljani, último esgalho do Purus, distante 3.200 quilômetros da confluência deste último no Amazonas; e tão perdido naquelas solidões empantanadas que nenhuma carta o revelava. Éramos nove apenas: eu, um auxiliar dedicadíssimo, o Dr. Arnaldo da Cunha, um sargento, um soldado e cinco representantes de todas as cores reunidos, ao acaso, em Manaus. E ali chegáramos absolutamente sucumbidos. A nossa comissão dispersara-se, coagida pelas circunstâncias: naufragáramos em caminho; e os salvados da catástrofe mal bastariam àquele reduzido grupo de temerários. De sorte que ao atingirmos aquela estância remota já nos íamos, há dias, num terrível quarto de ração, de restos de carne-seca e restos de farinha que eram o nosso desespero e a nossa única salvação, sem nenhum outro gênero atenuando-nos a dieta inaturável. Para maior desdita os empecilhos à marcha cresciam com o avançamento; maiores à medida que diminuíam os recursos. O rio, cada vez mais raso, quase estagnado nos estirões areentos, ou acachoando em corredeiras intermináveis, requeria trabalhos crescentes e verdadeiros sacrifícios. Já não se navegava: as duas pesadas canoas de itaúba iam num arrastamento a pulso, como se fossem por terra; e os remos, ou os varejões transformavam-se em alavancas, numerosíssimas vezes, para a travessia dos trechos mais difíceis. Ao descer das noites, os homens, que labutavam todo o dia, metidos na água, sem um trago de aguardente, ou de café, que lhes mitigasse aquele regime bruto, acampavam soturnamente. Mal se armavam as barracas. Na antemanhã seguinte, cambaleantes e trôpegos — porque as areias do rio navalhando-lhes a epiderme punham-lhes os pés em chagas —, retravavam, desesperadamente, a luta da subida do rio que não se acabava mais, tão extenso, tão monótono, tão sempre o mesmo, na invariabilidade de suas margens, que tínhamos a ilusão de nos andarmos numa viagem circular; abarracávamos; descampávamos; e ao fim de dez horas de castigo parecíamos voltar à mesma praia, de onde partíramos, numa penitência interminável e rude… Contrastando com esta desventura, a comissão peruana, que acompanhávamos, estava íntegra, bem abastecida, robusta. Não sofrera o transe de um naufrágio, eram vinte e três homens válidos, dirigidos por um chefe de excepcional valor. Assim, todas as noites, naquelas praias longínquas, havia este contraste: de um lado, um abarracamento minúsculo e mudo, todo afogado na treva; de outro, afastado apenas cinquenta metros, um acampamento iluminado e ruidoso, onde ressoavam os cantos dos desempenados cholos loretanos. A separação entre os dois era completa. As relações quase nulas: a altaneria castelhana, herdada pelos nossos galhardos vizinhos, surpreendia-se ante uma outra, mais heroica, do exíguo acampamento miserando, altivamente retraído na sua penúria e tenebroso em ultimar a sua empresa, como a efetuou, sem dever o mínimo, ou mais justificável auxílio ao estrangeiro que se lhe associara. Mas, ao chegar naquela tarde à foz do Cavaljani, considerei a empresa perdida. Palavras soltas, de irreprimível desânimo, e até apóstrofes mal contidas, de desesperados, fizeram-me compreender que, ao outro dia, só haveria um movimento, o da volta vertiginosa, rolando pelos estirões e cachoeiras que tanto nos custaram vencer, acabando-se os nossos esforços numa fuga. Os meus bravos companheiros rendiam-se aos reveses. Atravessei, em claro, a noite. Na manhã seguinte, procurei-os na tentativa impossível de os convencer de mais um sacrifício. Acocoravam-se à roda de uma fogueira meio extinta; e receberam-me sem se levantarem, com a imunidade de seu próprio infortúnio. Dois tiritavam de febre. Falei-lhes. A honra, o dever, a pátria e outras magníficas palavras ressoaram longamente, monotonamente. Inúteis. Permaneceram impassíveis. Quedei-me, inerte, em uma tristeza exasperada. E como a aumentá-la, notei, dali mesmo, voltando-me para a direita, que os peruanos se aprestavam à partida. Desarmavam-se as barracas; reconduziam-se para as ubás ligeiras os fardos retirados na véspera. Em pouco, os remos e as tanganas compridas, alteados pelos remeiros, fisgavam vivamente os ares… E atravessando pelos grupos agitados, um sargento — passo grave e solene, como se estivesse em uma praça pública, à frente de uma formatura — cortou perpendicularmente a praia, em rumo à canoa do chefe, tendo ao braço direito, perfilada, a bandeira peruana, que deveria içar-se à popa da embarcação. De fato, em chegando, hasteou-a. Passava um sudoeste rijo. O belo pavilhão vermelho e branco desenrolou-se logo, todo estirado, rufando… E acudiu-me a ideia de apontar aquele contraste aos companheiros abatidos. Mas ao voltar-me não os reconheci. Todos de pé. A simples imagem do estandarte estrangeiro, erguido triunfal, como a desafiá-los, galvanizara-os. Num lance, sem uma ordem, precipitaram-se os aprestos da partida. Em segundo, a nossa bandeira, que jazia, enrolada, em terra, aprumou-se por seu turno em uma das canoas, patenteando-nos aos olhos
As promessas divinas da esperança!
E partimos, retravando, desesperadamente, o duelo formidável com o deserto…
CUNHA, Euclides da. Castro Alves e seu tempo. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. São Paulo, 2019. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/conferencia-castro-alves-e-seu-tempo/. Acesso em: [data]. Texto digitalizado com base em: CUNHA, Euclides da. Castro Alves e seu tempo. org. introd. e notas de Cássio Schubsky, il. e pesquisa de Felipe Pereira Rissato. São Paulo; Lettera.doc; Associação dos Amigos da Faculdade de Direito da USP, 2009.