Era preciso mostrar, à luz de documentos claros, que a Bolívia, embora intentem transmudá-la em Polônia sul-americana, construiu um destino mais elevado, que se não violará.
Quando se tornou República, nobilitando o nome do chefe preeminente das campanhas da liberdade, capitalizava esforços seculares. Avançara isolada, e fundamentalmente distinta das demais nações neo-espanholas, na conquista de sua autonomia. Nenhuns vínculos a ligaram de fato aos dous imponentes Vice-reinados, que a ladeavam, mas não a comprimiam. O peso morto, esmagador, destes sistemas retrógrados e marasmados, anulava-lhos a Audiência quase soberana, com a sua expansibilidade nativa admirável, repelindo-os. Era, com efeito, na frase de Bartolomeu Mitre, “un mundo, una raza, un organismo aparte”, que dentro de si mesmo efetuara a sua evolução, pelo caldeamento do sangue de outras gentes e equilíbrio de seus elementos constituintes. Caminhara por si; e esta marcha, conforme no-la descreveram solenes vozes antigas, através dos mais lúcidos ditames dos mais austeros ministros, foi para o norte, indefinidamente para o norte, com um determinismo inviolável, seguindo o itinerário marcado por um meridiano indistinto numa penumbra geográfica, que ela deveria romper, arrebatadamente, na esteira das vagas agitadas das invasões portuguesas. Em tal rumo, que a arrastava para a atual zona litigiosa, a metrópole aparelhara-a de excepcionais franquias. Armara-a para bater, a um tempo, a invasão e o deserto. E nesta empresa os seus mestiços destemerosos fundaram a rude nobiliarquia de um verdadeiro marquesado, nas fronteiras.
Ali, ela refinou os seus atributos nativos; e chegou à independência administrativa antes de chegar à República.
Não se iludem estes fatos. Nem maravilha que no desdobramento do período revolucionário, de 1809-1823, a Bolívia centralizasse por vezes as esperanças hispano-americanas.
Vinha de uma tremenda escola de batalhas. O General Mitre, num luminoso confronto, entre o Paraguai, rebento da civilização embrionária enxertada no tronco indígena pelo espírito jesuítico, e o Peru, onde se alentavam e se refaziam as forças realistas – descreve-a revestida de energia estóica para a resistência e para a morte, patenteando “uno de los espectáculos más heróicos de la revolución sud-americana.”
Devem ler-se todas as páginas do notável historiador militar. [ 29 ]
A antiga barrera dos domínios castelhanos tornou-se, nos dias mais sombrios da luta, a guarda incorruptível e indomável da liberdade sul-americana. Completou o seu destino histórico. Firmou uma continuidade perfeita na sua existência ativa e combatente.
Assim, esta continuidade de esforços, este incomparável destino, e aquele determinismo inflexível, que vimos desdobrar-se, e aquela diretriz superior, que rompeu, retilineamente, três séculos atumultuados, se não podem excluir ao menos em muitos pontos podem retificar os riscos às vezes inextricáveis dos cartógrafos, e os dizeres ambíguos, ou incompletos, dos antigos documentos.
De outro modo, não há interpretar-se, logicamente, o uti possidetis de 1810.
Realmente é até um truísmo o escrever-se que o princípio básico dos deslindamentos sul-americanos tem um elastério maior que o velhíssimo uti possidetis, ita possideatis da jurisprudência romana, que o transmitiu ao direito internacional. Engrandeceu no transitar das relações individuais para as dos povos. Quando a Colômbia o proclamou em 1819, instituindo a doutrina, aceita logo depois por todas as Repúblicas espanholas, de que as bases físicas de nacionalidades emergentes compreendessem as áreas demarcadas até 1810 pelas leis da metrópole, pôs-se de manifesto que a posse de fato, efetiva e tangível, não bastaria a firmar os deslindes entre elas. Impossibilitava o seu efeito exclusivo a própria geografia da época. Entre umas e outras jaziam enormes países desconhecidos. Assim, se lhe aditou o critério superior, consistindo no direito de possuir, ou melhor, na iminência da posse, demonstrada pelos antecedentes históricos, reveladores da capacidade para o domínio sobre as terras convizinhas.
E o uti possidetis americano, ou criollo, consoante a adjetivação pinturesca de Quijano Otero [ 30 ] – mercê do qual a Argentina se estendeu, indefinidamente, pela Patagônia em fora, até às mais altas latitudes austrais; e em virtude do qual, com o mesmo direito, adquirido através de lutas mais penosas, e inabalavelmente garantido pelos documentos insofismáveis, que extratamos, a Bolívia se avantajou, obediente a um roteiro secular, até ao Acre…
As linhas anteriores eram indispensáveis. Demonstram, à saciedade, a posse boliviana, virtual mas inalienável, sobre as paragens ignotas que lhe demoravam ao norte; e, ao mesmo passo, o afastamento da influência peruana, sobejas vezes expresso nos mais solenes documentos oriundos da metrópole.
Mas atalhemos. As páginas mais firmemente blindadas de fatos inegáveis não se forram, às vezes, ao subjetivismo dos que as leem. Não raro se argui de romancear imaginoso a argumentação mais séria. Querem-se datas certas, coordenadas impecáveis, números, muitos números, numerosos números, e medições, e desenhos incisivos, e dados, e elementos secamente tangíveis, massudamente concretos, acaçapadissimamente positivos…
Então, continuemos, o mais que pudermos adscritos às linhas invariáveis dos antigos mapas, e substituindo a pena pelas réguas, os transferidores e os compassos.
*
De feito, a questão assume, agora, aspectos asperamente geométricos.
A derradeira fase da jurisdição territorial dos domínios espanhóis retrata-se nas Ordenanças de Intendentes de 28 de janeiro de 1782 e 23 de setembro de 1803, que demarcaram novas unidades administrativas, modelando-as pelas raias dos bispados existentes. De acordo com elas mantiveram-se as Audiências divididas em Intendências, prefigurando os Departamentos atuais; e subdivididos, estes, em Partidos, representadas as antigas Províncias. Foi toda a mudança. A administração colonial rotulava-se com outras palavras. Pouco se alterou. A carta régia criadora reporta-se ainda às “sabias leyes de Indias”, cujas “prudentes y sabias reglas”, prescreve “se observen exactamente por los Intendentes”.
E, de fato, apenas as restringiu, ou ampliou, em pontos acessórios.
Mas para a geografia geral das possessões a sua importância foi sensível, e avulta, sobretudo, nos deslindamentos dos dous vice-reinados, que se modelaram pelas divisas particulares das respectivas Intendências, por maneira a esclarecer completamente o atual litígio.
Com efeito, desde então as Audiencias de los Reyes e de Charcas desenharam-se com a fisionomia geográfica que mantiveram, imutável, até 1810, data do uti possidetis – que se diz sugerido por Alexandre Humboldt.
Podem acompanhar-se os limites, preexistentes no princípio do século passado, contemplando-se qualquer mapa moderno.
O vice-reinado de Buenos Aires repartia-se nas Intendências de Buenos Aires, Assunção do Paraguai, São Miguel de Tucumã, Mendoza, Santa Cruz de la Sierra, La Paz, La Plata (arcebispado de Charcas) e Potosi, correspondendo cada uma às áreas dos respectivos bispados; além dos territórios de Moxos, Apollobamba, etc. O do Peru, nas de Lima, Tarma, Huamanga, Huancavelica, Arequipa, Cuzco e Puno, em que se tinham fracionado as suas cinco dioceses.
São nomes que vieram até aos nossos dias.
Vê-se, para logo, que a Audiência de Charcas entrava na constituição do primeiro com as quatro secções de Santa Cruz, La Paz, La Plata e Potosi, e as terras de Apollobamba e Moxos. A de Lima, ou de los Reyes, formava tudo o segundo. E compreende-se, de pronto, que a discriminação de limites de ambos se reduz, para o nosso caso, no apontar os que separavam os partidos mais setentrionais daquelas duas audiências.
Para isto não se faz mister seguir as várias fases do processo demarcador, que foi longo.
Nomearam-se a este fim, sucessivamente, dous notáveis, os visitadores gerais d. José Antonio Areche e d. Jorge Escobedo que, de acordo com os vice-reis, deslindaram o complicado assunto, até ao desfecho, em 1796, ao se desligarem do governo de Charcas as províncias de Lampa, Azangaro, Carabaya e outras, constituindo a Intendência de Puno desde então definitivamente incorporada ao Peru. Desta sorte a Bolívia perdeu, naquela banda, vastos territórios à margem ocidental do lago Titicaca, assim como a divisa secular da cordilheira de Vilcanota, que se desenhara desde o princípio de sua formação.
Não comentemos o caso. Consumou-se.
Mas para concertar-se juízo definitivo, considere-se, por momentos, o vice-reinado peruano pouco antes deste acréscimo de superfície; e determine-se, depois, a sua grandeza exata, ao anexar-se-lhe aquela nova intendência. E a marcha mais direta para verificar se de fato, como hoje se pretende, ele se estendia pela Amazônia em fora até às margens do Madeira. Porque a sua área nunca mais variou, ou cresceu, naqueles lados, até os nossos dias.
Demonstram-no muitos dados oficiais.
Pouco antes daquele desmembramento, no remate dos acidentados deslindes, após quatorze anos de estudos, o capitão-general que governou o Peru, de 1790 a 1795, d. Francisco Gil y Lemos, entregou, por obedecer à lei, ao seu sucessor, um relatório com o mapa de todos os seus domínios. A valia deste documento é intuitiva, não já pelo caráter legal, senão por aparecer ao cabo de prolongado pleito enfeixando-lhe as resoluções finais.
Subscrevia-o d. André Baleato, conhecido cosmógrafo da época. [ 31 ]
Temo-lo sob as vistas. Vemos, de um lance, a que se reduziam as terras peruanas, em 1795. E embora Gil y Lemos, na sua memória, advirta “que el reyno deli Perú ha perdido mucho de aquela grandeza local que tuvo”, e tenhamos assistido a sua decadência, quer mutilado pela criação do de Buenos Aires, quer retraindo-se ante a expansão vigorosa de Charcas – surpreendemo-nos. [ 32 ]
A área primitiva mal se lhe vislumbra na fita continental desatada de Tumbez (3° 20′ lat. S) até as costas de Atacama (21° 25′ lat. S), desenvolvendo-se por 423 léguas de vinte ao grau. A enorme extensão meridiana contrasta, notavelmente, com a largura em demasia estreita. Todo o Vice-reinado é uma irregular e longa faixa litorânea. Seguindo-se de perto o geógrafo oficial, pormenorizaram-se-lhe em vários pontos, ao longo dos paralelos, as expansões máximas para o centro das terras:
Por el paralelo de Arica desde la costa hasta lo más oriental de su partido tiene 18 leguas; por el de Pisco, hasta lo mas oriental de la intendencia de Cuzco, 120 leguas; por el de Barranca basta lo más oriental deI partido de Tarma, 44 leguas; por el de Sechura desde su enseada hasta lo más oriental del partido de Chachapoias, 131 leguas.
Partindo destas normais à costa, verdadeiras abscissas de uma longa ordenada de 423 léguas, Baleato deduziu-lhes a média de 79,5 léguas; e depois a superfície total do Peru = 33.628,5 léguas quadradas.
Jamais se avaliou com um tal requinte de exação a área de um país. O rigorismo geométrico aí se retrata em perpendiculares definidas; o aritmético se aguça nas arestas cortantes das vírgulas das decimais. O Vice-reinado é um debrum do Pacífico. Estira-se, longamente, de norte a sul, por dezoito graus de latitude; porém, alarga-se apenas de seis, no máximo, de longitude, para o oriente.
É positivo. É claríssimo. Contemplando aquele mapa, lendo aqueles números, medindo aquelas linhas, o sucessor de Gil y Lemos demarcava o perímetro imutável de seu governo. Viu-lhe, como lhe estamos vendo, como todos podem ver-lhe, os limites: ao norte o Vice-reinado de Nueva Granada, expandindo-se até cerca de 6° de lat. S; a leste o Pampa del Sacramento, inçado dos silvícolas bravos do Pajonal, até a ourela esquerda do Ucayali, e mais para o sul a serrania de Vilcanota; no extremo meridional, o deserto de Atacama e o Chile.
Era tudo. Para NE, a partir do fosso separador do Ucayali – precisamente onde se localizam hoje as paragens litigiosas – lê-se, num grande espaço em branco: Países incógnitos.
Países incógnitos, antigas terras no descubiertas, das vetustas cédulas reais, territórios que prolongavam os de Apollobamba e de Moxos, postos, de um modo gráfico, mensurável, visível, inteiramente fora da alçada do Governo peruano. Ou, mais explicitamente: em 1795 a Audiencia de Los Reyes não se ampliava, abarcando-os, até alcançar os domínios portugueses.
Realmente, a sua intendência mais avançada em semelhante rumo, a de Cuzco – que hoje se intenta espichar até o Madeira – ficava consideravelmente distante deste rio. Qualquer carta revela que só poderia prolongá-la até ali o partido norte-oriental de Paucartambo; e este cerrava-se em raias inextensíveis e fixas. Demarcara-o, desde 1782, legalmente, o Visitador Jorge Escobedo:
…tiene de largo 26 leguas Norte-Sur sobre 5 a 7 de ancho… confina por el nordeste com los Andes (Vilcanota) o montañas de indios infieles… [ 33 ]
Deste modo, em que pese aos erros da carta de Baleato – onde, por exemplo, o Beni se desenha como tributário do Ucayali – a sua expressão geral é segura: o Vice-reinado, ou a Audiência de Lima, em 1795, no seu internamento máximo para o levante, estacava nas barrancas esquerdas do Ucayali e, mais para o sul, nas cumeadas de Vilcanota.
Estabelecida esta base segura, prossigamos.
A Cédula Real de 1º de fevereiro de 1796 modificou estes limites, agregando ao Peru a Intendência de Puno. O Vice-reinado cresceu, expandindo-se para o oriente.
Vejamos até onde foi.
O lance é capital e dominante, porque, definida esta expansão, se define o seu último avance para o oriente. Os seus limites naqueles lados naquele ano, são os próprios limites atuais. Nenhum outro ato, ou lei, ou ordenança, ou tratado, os alterou até aos nossos dias. Descrevê-los em 1796 é o mesmo que os descrever em 1810, e agora.
Descrevamo-los; apelando o mais secamente que pudermos para elementos fixos, infrangíveis, numéricos e geométricos.
A circunscrição, que a Cédula de 1796 integrou no território peruano, compunha-se de cinco partidos – Chucuito, Puno, Lampa, Azangaro e Carabaya – rigorosamente demarcados. O Vice-reinado ampliou-se pela justaposição de um bloco territorial definido. Destes partidos, os quatro primeiros, e mais meridionais, acarretaram-lhe uma dilatação para o levante, que não ultrapassou o diâmetro maior do lago Titicaca, entre os paralelos de 14° 30′ e 16° 30′. Não interessam, portanto, ao litígio vertente. Resta o mais setentrional, de Carabaya, confinante com as terras de Apollobamba, e, por isto, o único por onde poderia entrar e avançar nos vales do Madre de Dios, do Beni e do Madeira a influência peruana.
Mas não entrou, nem avançou. O Partido de Carabaya, da Intendência de Puno, a exemplo do de Paucartambo, da de Cuzco, encerrava-se todo em linhas limítrofes absolutamente inalteráveis.
Delimitara-o, desde 1782, por ordem da metrópole, e de inteiro acordo com o Vice-rei do Peru, o visitador geral Jorge Escobedo:
Tiene de largo 40 leguas (dous graus) norte-sud, y en parte 50 (dous graus e meio) de ancho… confina por el Este con la provincia de Larecaja (Charcas); por el nordeste y norte con las tierras de indios infieles, de que las separa el famoso rio Inambari. [ 34 ]
Assim surgiu a linha divisória, lúcida e nobremente reclamada, hoje, pela Bolívia.
Considere-se um mapa qualquer. Resulta esta evidência: a anexação daquelas terras teve o efeito único de substituir a vetusta divisa arcifínia de Vilcanota, por outra, igualmente natural e tangível, mais para leste – a do thalweg do Inambari. Nas barreiras esquerdas deste, quedou para sempre o Vice-reinado, ou a Audiencia de los Reyes, no seu máximo alargamento para o levante. As terras não descobertas, terras bravias de infieles, formadores da atual zona disputada, ficavam fora das suas raias, a estirarem-se para NE, a partir da margem direita daquele rio. Os esclarecimentos a este respeito apinham-se, incontáveis; e o reproduzi-los, sobre fatigante, implicaria póstuma injustiça à clareza e à retitude do Visitador Escobedo. Ademais reforçam-nos todos os mapas do tempo, feitos pelos que perlustraram o país. O já anotado, de Figueroa, é francamente confirmativo. O de d. Joaquim Atós, figura o Partido de Carabaya não só circunscrito por uma linha divisória fechada, como abrangido em todo o quadrante de N . E. pelos territórios de Moxos e Apollobamba. [ 35 ] O de Pablo Orycain, elucidado por um breve texto, no qual se refere à opulenta província “con sus bajos y demás quebradas llenas de lavaderos de oro”, mostra-no-la a confinar con los chunchos, e localiza os profugos selvagens nas misiones de Apollobamba, além do Inambari, totalmente estranhas, portanto, ao Vice-reinado, cujas barreiras lá se riscam, em destaque vivo, com visibilíssimos traços amarelos. [ 36 ]
Elas assim permaneceram até 1810, e – sublinhemos uma afirmativa segura – até 1851, data em que se fixaram os nossos limites definitivos com o Peru. Não há engenhar-se o mais ligeiro argumento em contrário.
O Partido do Carabaya – único que permitiria ao Peru estender-se aos vales do Madre de Dios, propriamente dito, do Beni e do Madeira – persistiu sempre com aquela área, e com aquelas raias imutáveis, até aos nossos tempos, nitidamente lindado ao oriente pelo Inambari. As provas a este respeito fervilham. Mas por abreviar, e frisar mais uma vez o traço de elevada imparcialidade, em que vai versando-se este assunto, apresentemos uma apenas, genuinamente peruana, que por si só supre por muitas. Reclamemos, ainda uma vez, o auxilio de D. Mateo Paz Soldan, o mestre tradicional da fisiografia da República vizinha. E abrindo o seu livro, o seu magnífico livro em boa hora impresso em Paris, à custa do Governo de sua terra, leiamos, aprendamos:
La province de Carabaye a environ 50 lieus (dous graus e meio) de l’Est a Oeste… est bornée au Nord et au Nord-Est par le territotre des indiens barbares, appelés Crangues et Sumachuanes et d’autres dont la separa la fameuse reviere Ynanvari… a l’Est par celle de Larecaje, de le Republique le Bolivie. [ 37 ]
Preciosíssimo excerto, este. De sorte que em 1863, oitenta anos depois de primeira Ordenança de Intendentes, doze anos depois do Tratado de limites de 1851, do Brasil com o Peru, e quatro anos apenas antes do da Bolívia com o Brasil – o grande geógrafo, glória da cultura peruana, decalcava os dizeres de Jorge Escobedo… Jamais uma verdade se impôs com tamanho império. Há, até ali, surpreendentes laivos de plágio. Paz Soldan tinha, por força, sobre a mesa e aberto, o relatório do Visitador-Geral, de 1782… Não prossigamos.
Seja como for, naquelas linhas, deletreadas em todas as escolas do Peru, se renteiam todas as pretensões peruanas visando as terras do Madre de Dios, do Beni e do Madeira.
Não dão pega à mais ligeira dúvida.
De feito, como iludir-se o significado de tais palavras, que se renovam através de quase um século, e o de linhas tão indeléveis, e a sugestão gráfica a entrar-nos, fulgurantemente, pelos olhos – destes mapas e destes relatórios, traçados por ordem da metrópole, subscritos pelos Visitadores, com a referenda dos Vice-Reis, reproduzidos em nossos dias pela maior autoridade peruana em tais assuntos, e discriminando e estereotipando, de modo tão evidente, a distribuição legal e geográfica daquelas terras?
As deduções são inabaláveis: em nenhum dos partidos das duas intendências, de Puno e de Cuzco, do extremo nordeste do Vice-reinado ou Audiência de Lima, inscritos em divisas que não mais se alteraram até hoje, se incluíram os territórios ainda não de todo conhecidos e descobertos, que com o nome vago de Apollobamba, ou qualquer outro, se desenrolavam pelos vales meridionais da Amazônia. Em 1776 o Vice-reinado, cuja capacidade política para o domínio tanto diminuíra, não se estendia, nem visava estender-se, até às margens do Madeira.
*
Ora, aquela situação prolongou-se aos nossos dias.
Naquele tempo o Vice-reinado de Nova Granada – incubando, ainda latentes, o Equador, a Colômbia e a Venezuela – dilatava-se para o sul pelo Ucayali acima até a foz do Pachitéa, onde desde muito se erigira o aldeamento de São Miguel de Conibos, fundado pela missão dos Maynas, do bispado de Quito.
Não acompanharemos os grandes missionários entre os quais se vêem os tipos esculturais do estóico P. Richter, ou daquele incomparável Samuel Fritz, que foi o precursor de La Condamine e primeiro geógrafo do Amazonas.
Para o nosso propósito, baste notar-se que desde 1750 as missões de Maynas dilataram em tanta maneira o Governo de Nova Granada, ao longo do Ucayali, que o do Peru não teve, como ficou repetidamente demonstrado, a ingerência mais breve nos deslindes internacionais com as terras portuguesas. Estava de lado, de fora. Entre estas e ele, a partir da margem direita daquele rio, projetavam-se para leste os terrenos de Apollobamba, que, consoante a frase valiosa do Ministro mais ilustre do Conselho das Índias, Pedro Campomanes, se extremavam, de um lado, com o território de Moxos e de outro com as missões do grande tributário do Amazonas.
Se dan las manos con las de mojos y las que administran los franciscanos sobre el rio Ucayali. [ 38 ]
Assim se limitavam, exclusivamente, naqueles lados e naqueles tempos, com os domínios portugueses, a Audiência de Quito, pelo Governo de Maynas, e a de Charcas, pelo de Moxos – delineando-se a divisória Madeira-Javari na penumbra geográfica das paragens desconhecidas. E do mesmo modo que o Governador de Moxos e Apollobamba, somente pela circunstância de ser rayano, foi nomeado comissário da terceira partida, destinada á demarcação em todo o trato que vai do Guaporé ao Javari, o engenheiro Francisco Requena, que era o chefe da quarta, encarregada do mesmo trabalho desde a foz do Javari até ao Orenoco, somente em virtude deste cargo se revestiu do de governador-geral de Maynas, sujeito ao Capitão-General de Nova Granada, d. Silvestre Albarea.
Não há patentear-se, de modo mais sintético, que somente as duas jurisdições, de Quito e de Charcas, se extremavam naquela época com o Brasil em todo o âmbito da bacia amazônica que vai do Madeira à foz do Javari; a primeira, ao longo deste até às cabeceiras; a segunda, destas, ou pouco a jusante, até à semidistância do Tratado de 1777.
Mas esta situação mudou em 1802.
Urna Cédula Real de 15 de julho daquele ano, inspirada por Francisco Requena, desmembrou a província de Maynas do Vice-reinado granadino, anexando-a ao Peru, e submetendo as missões ao arcebispado de Lima.
Poderia mostrar-se que a famosa Cédula – último titulo territorial do Peru – era inviável.
Malignou-a para sempre a parcialidade, ou a má-fé, comprovada, de Requena, que a informou pondo-a a talho de uma lei preventiva e moralizadora, da Recopilación:
(Que no se cumplan las cédulas eu que hubiere obrepción o subrepción.) [ 39 ]
Em torno dela há uma literatura político-geográfica em que explodem os mais violentos panfletos. Nenhum dos velhos ditames coloniais foi ainda mais discutido, ateando mais agitadas controvérsias.
Mas não desvendemos a gênese que a invalida. Vamos além: admitamos, com Antonio Raimondi – o europeu mais peruano que ainda se viu na América – a sua legitimidade e todos os seus efeitos. E mostremos, mesmo maniatados nesta hipótese, sobradamente gratuita, que a carta régia tão ampliadora da influência do Peru, ao ponto de estirá-la sobre dois terços do Equador, [ 40 ] não a estendeu de um metro sequer para o levante, a partir das margens direitas do Ucayali e do Javari.
A suma da Cédula Real de 1802 é esta:
He resuelto agregar al Virreynato de Lima el Gobierno y Commandancia General de Maynas no sólo por el rio Marañón abajo hasta las fronteras de las colonias portuguesas, sino también por todos los demás rios que entran al mismo Marañón por sus márgenes meridional y septentrional, que son: Morona, Pastaza, Ucayali, Nopo, Yavary, Putumayo, Yapurá, y otros menos considerables, hasta el paraje en que estos mismos rios por sus saltos y raudales inaccesibles no puedan ser navegables… [ 41 ]
Aí está um documento admirável no mostrar que as divisórias peruanas, naqueles lados, são – exclusivamente – as linhas naturais do Javari, até perto de seus manadeiros, e o Ucayali até à confluência do Tambo e o Urubamba (10° 55′ latitude sul), onde ele perde o nome: divisas lucidamente reclamadas, hoje, pela Bolívia.
Com efeito, ante demarcação tão expressa, justificam-se em toda a linha os negociadores peruanos, que pactuaram, em 1851, com o Brasil, a fronteira arcifínia de todo o Javari, sem cogitarem da semidistância do Madeira; e, ao mesmo passo, os comissários, brasileiro e peruano, Barão de Tefé e Guilherme Black, que confirmaram, praticamente, aquele critério, implantando, em 1874, o marco divisório definitivo nas cabeceiras do mesmo rio, até onde, conforme declaram, “os obstáculos eram tantos que não permitiam ir além”, ou seja, traduzindo-se a velha Cédula Real, “hasta el paraje en que este mismo rio por sus saltos y raudales inaccesibles no pudo más ser navegable…”
Realmente, não há turvar-se a limpidez da Cédula Real de 1802. Esclarece-a, além disto, o mapa desenhado pelo próprio Francisco Requena, em 1779. [ 42 ] As terras, que se aditaram ao Vice-reinado de Lima, vêem-se, ali, circunscritas por uma curva fechada, nítida e contínua, perlongando a margem esquerda do Javari, e deixando-a, numa deflexão para o SO, a interferir o Ucayali perto da latitude acima escrita.
Os deslindes, sugeridos pelos visitadores gerais, desde 1782, grafados por André Baleato, em 1796, subscritos pelo Virrey Gil y Lemos, sancionados pela metrópole, persistiam, em 1802, inalteráveis, no tocante àquela zona. Os terrenos, ainda não de todo descobertos, de Apollobamba, continuaram fora do influxo peruano, sob o domínio iminente da Audiência de Charcas.
E quando ainda restassem dúvidas a este respeito, destruí-las-ia aquele mesmo Francisco Requena, que tanto atrapalhou a geografia hispano-americana e deu, de graça, ao Peru, o título primordial de suas mais ousadas pretensões.
O lance é inopinado: ao mais solerte advogado da República vizinha, certo, ainda não se lhe antolhou a conjectura de que o máximo dador de seus territórios setentrionais – o homem a quem o Peru deve uma estátua na foz do Pachitéa! – pudesse erigir-se em juiz, o mais insuspeito dos juízes, neste caso, no proibir-lhe a marcha para o oriente, precisamente, na zona que hoje se debate.
Revelemos a inesperada atitude. Requena, em 1799, vingara a posição superior de membro do Conselho das Índias, onde o seu parecer preponderava sempre no tocante às coisas da América; e nas “salas” daquela assembleia soberana apresentou o informe, que foi o molde da Cédula de 1802.
Ora, sobretudo no trecho do longo arrazoado, em que discute o estabelecimento da prelazia das missões, naquelas terras, o ministro, com a enorme autoridade advinda do seu título de engenheiro, sobre todos sabedor dos países que percorrera e explorara, estabeleceu que a diocese (e portanto as terras a anexarem-se ao Peru, que as Ordenanças marcavam “pelas áreas dos bispados”) não deveria e não poderia ultrapassar o Ucayali, para o levante.
Criticando vários projetos, formulados no sentido de fixar-se a zona de influência da nova jurisdição eclesiástica, declarou que aos seus autores, se lhes sobravam zelos, “les faltaba inteligencia de los Paises”. E ao considerar as terras hoje litigiosas, que o Peru intenta abranger, como se fosse possível estirar também por aqueles lados a maravilhosa Cédula, disse:
El que representa unir bajo de una mitra las misiones de Apollobamba con las de Maynas, y todas que entre estas dos hay intermedias, situadas por las montanas no supo desde luego, por falta de geografia; la imnensa extensión que daba a este Obispado; y que el Prelado era imposible las pudiese visitar. [ 43 ]
Este parecer, que pela primeira vez se revive, é notavelmente expressivo, sobretudo quando se considera que o princípio básico da constituição territorial, explícito nas Ordenanças de Intendentes, “consistia no firmar as áreas das novas seções administrativas pelas dos bispados respectivos”, axioma da administração colonial espanhola, que nenhum escritor peruano será capaz de contestar.
Assim, pela sentença do próprio autor intelectual da Cédula de 15 de julho de 1802, ficaram inteiramente fora da zona agregada ao Peru, com o Governo do Maynas, as terras extensíssimas que, a partir da margem direita do Ucayali, abrangem as cabeceiras do Juruá, do Purus e todo o Acre meridional, até ao Madeira.
Sobre elas pairava, de fato, a extremar o rumo de um itinerário histórico admirável, o domínio iminente e eminente da Bolívia.
Los ejércitos del Rey habían derrotado a los patriotas en el alto Perú (Bolivia) pero no habían conseguido domar el espíritu público…
A pesar de tantos y tan severos contrastes, no se pasó un solo día sin que se pelease y se muriese en aquella región mediterránea…
…La insurrección en Bolivia cundía a la menor señal…
São extratos ao acaso. Há centenas de outros idênticos.
(Historia de San Martín.)
[ 30 ] QUIJANO OTERO, José María. Memoria Histórica sobre Límites. Bogotá, 1900.
[ 31 ] BALEATO, Andrés. Plano Geral del Reyno del Perú en la América Meridional. / Hecho por orden del Exmo. Sr. Virrey D. Fr. Gil y Lemos / 1706.
[ 32 ] Memorial de los Virreyes que han gobernado el Perú, t. IV, p. 2.
[ 33 ] Archivo de Indias. Est. 112, cap. 7, leg. 16. O mesmo revela o mapa coevo (1871) de José Ramos Figueiroa, secretário dos Visitadores-Gerais.
[ 34 ] Archivo de Indias. Est. 112, cap. 7, leg. 16.
[ 35 ] ATÓS, Joaquim. Demonstración Geográfica de las Provincias que Abrazan Cada Intendencia de la Parte del Perú.
[ 36 ] Las Provincias del Callao. 1876.
[ 37 ] Geographie du Perou. Paris, 1863, p. 201.
[ 38 ] Carta, anteriormente citada, de D. Pedro Campomanes a D. José Galvés.
[ 39 ] Recopilación de Leys. Tit. 1º, e 2º. Ley XXII. Veja-se, a este propósito, La Integridad Territorial del Ecuador, do Padre Enrique Vacas Gallindo, pp. 176 e seguintes.
[ 40 ] Área total ocupada o pretendida por el Perú = 503 430 km². Quiero decir más de las terceras partes de la República de Ecuador cuya tierra firme quedaría reducida a 204 000 km². (TEODORO WOLF, Geografía y Geología del Ecuador, 1892.)
[ 41 ] Archivo de Indias. Est. 115, e. 6, 1.23.
[ 42 ] Mapa para acompañar a la descripción del nuevo obispado que se proyecta en Maynas. Construído por don Francisco Requena, yngeniero ordinario gobernador de Maynas y primer comisario de límites. 1779.
[ 43 ] Informe que hizo al Consejo d. Francisco Requena, sobre el arreglo temporal de las Misiones de Maynas. Arch. Indias. Est. 115, c. 6, 1.23.
CUNHA, Euclides da. Peru versus Bolívia. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/peru-versus-bolivia/. Acesso em: [data]. Texto-base: CUNHA, Euclides da. Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1.