Peru versus Bolívia, VII

Francisco Requena foi, sem o querer, cruel, na concisão golpeante dos trechos anteriormente extratados, que por si sós renteiam, senão desarraigam, todas as pretensões peruanas a leste do Ucayali, onde terminavam as Missões de Maynas anexadas ao Peru pela Cédula Real de 15 de julho de 1802.

Repitamo-los ainda uma vez. Decoremo-los, destacando-os:

1º) Aos que pretendiam estender o bispado aquém daquele rio, “les faltó inteligencia de los países que querian comprender en la nueva diócesis”.

2º) Os que planejavam unir, sob uma só jurisdição, as terras de Maynas e as de Apollobamba, não sabiam, “por falta de geografia, la inmensa extensión que daban a aquel obispado”.

3º) Se porventura se efetuasse tão absurdo projeto, ao prelado ser-lhe-ia “imposible que las pudiesse todas visitar”.

Ora, recordando que as ordenanças, então em vigor, consoante acordam todos os historiadores, estabeleciam a constituição territorial sob a norma exclusiva de “fixar as áreas dos novos distritos administrativos pelas demarcações eclesiásticas correspondentes”, conclui-se que o território de Maynas, adquirido pelo Peru, era o de seu bispado, rigorosamente definido, no avançamento máximo para o oriente, pelas linhas naturais do Ucayali e do Javari, conforme as desenhou e esclareceu o próprio inspirador da carta régia precitada.

Poderíamos terminar aqui. As frases do máximo benfeitor da República peruana e as nossas afirmativas mais rigorosas, conchavam-se.

Mas insistamos ainda. Aquela carta régia – mirífico documento que já entregou de fato à venturosa República do Pacífico dous terços do Equador – tem a resistência das fantasmagorias garantidas pela própria intangibilidade. Assim, poderíamos mostrar que desde o nascedouro a condenou uma das figuras mais austeras da cultura peruana, o lúcido d. Ypolito Unanue, antigo Presidente do Conselho, e autor de um mapa de seu país, que traçou um 1804, sem absolutamente cogitar dos limites que ela indica. Depois se lhe contraporia a autoridade formidável de Alexandre Humboldt, com a sua “Carta Geral da Columbia”, de 1824, onde as linhas da singularíssima Cédula não se retratam. Em seguida – o que é mais surpreendente “el mapa físico y político del Alto y Bajo Perú”, oficial, publicado pelo Governo da República de 1826, ermo totalmente de quaisquer traços reveladores da zona que ela marca. Subsecutivamente, a sepultou um Tratado, um pacto soleníssimo, o de 1829, entre o Peru e a Nova Granada… E ela renasce, e ressuscita, e desenlapa-se, incoercível, intangível, impalpável, a espantar, intermitentemente, a política sul-americana, com as suas estranhas visagens de recalcitrante espectro colonial.

Traçaram-se-lhe, ou escreveram-se-lhe, por cima, outros desenhos de cartas, outros dizeres de ulteriores convenções; porém raspam-se estas frases e estes desenhos, e revivem-se-lhe, indeléveis como estigmas, os dizeres no emperrado castelhano de há cem anos. Lembra um desses velhos palimpsestos medievais, cujos primitivos caracteres, cobertos por outros, ulteriores, dos escribas, hoje se desvendam na raspadura das letras mais recentes.

Felizmente para a atual litispendência bem é que ela reviva. Não repudiaremos, neste passo, a diplomacia do Império que a reconheceu, favorecendo ao Peru. Queremo-la, íntegra, sem que se lhe desloque uma vírgula, sem que se lhe mude uma letra, a remascar e a remoer todas as afirmativas, na torturante gagueira de suas redundâncias infindáveis.

Esta carta régia, agitada, imprudentemente, como a prova capital dos direitos do Peru, contraproduz. É desastrosa para a República, que se proclama herdeira de um regímen condenado e extinto. É a prova preexcelente dos direitos da Bolívia.

O que ela nos diz, nos seus termos acabrunhadoramente repetidos, e nos diz o ministro, que a sugeriu e engenhou, em frases inequívocas, é que a região jacente a leste do Ucayali não devia repartir-se, não podia repartir-se, e não se repartiu, entre as jurisdições de Cuzco e de Puno e a de Maynas. As primeiras imobilizaram-se à margem esquerda do Inambari, até onde as estendeu a carta régia de 1796; a segunda permaneceu nitidamente lindada pelo Ucayali, onde a fixou a de 1802. O quadro demarcador do Vice-reinado peruano, em 1810, cerrava-se numa inteiriça e inextensível moldura. Pelo levante acabava nas extremas dos partidos, demarcados até às frações de léguas, desde o de Azangaro, ao sul, ao de Carabaya, ao norte, onde se alonga o thalweg de Inambari.

E no largo trato que vai deste último às divisas naturais do Ucayali e Javari, correm sucessivamente, as linhas setentrionais do partido de Paucartambo, pelo leito de Marcapata até à confluência Tono-Pinipini, e as de Urubamba que seguem pelo rio do mesmo nome até a foz do Tambo, onde começa o Ucayali.

Não há fugir-se a este traçado traduzindo, graficamente, os mais sérios documentos da demarcação territorial, que prevaleceu até 1810. Não se conhecem outros. As Ordenanças de Intendentes de 1782 e 1803, as cartas régias de 1796 e 1802, são os únicos, e os mais sérios, e os mais firmes e os mais compreensíveis elementos em que se esteiam as pretensões peruanas.

Mas não lhes abrem as portas da Amazônia.

*

Fora disto resta o duvidoso e o aflitivamente torturante das célebres provas cartográficas. Temo-las por adiáforas; no geral, suspeitas; as mais das vezes, incompletas; quase sempre, traiçoeiras; sempre disparatadas.

O cartógrafo profissional, afeito a percorrer a maravilha milhares de milhas, e miriâmetros, montando comodamente um lápis bem aparado e destro, velocíssimo e ágil no transpor oceanos e no romper, em décimos de segundos, continentes inteiros, perde, exausto ao fim dessas imaginosas viagens, em que não moveu um passo, as próprias noções universais da forma e das distâncias.

Há deploráveis desvios de justeza e boa medida em todos estes Atlas homúnculos, que em toda a parte aparecem, carregando cada um o seu pequeno mundo muito bem feito e quase sempre errado.

Falta-lhes, em geral, a intimidade da Terra. Nunca sentiram em torno, entre as vicissitudes das explorações longínquas, o império formidável do desconhecido, a ressaltar nas perspectivas assombradoras das paragens ermadas e nunca percorridas. E, sobretudo – por lhes inspirar mais respeitoso carinho a face do planeta, que irreverentemente garatujam – não avaliam que, não raro, a zona mais restrita, por onde lhes passa o lápis forro e endiabrado, é o deserto interminável, que o explorador sucumbido, não lhe bastando o norte vacilante da bússola, só pôde dominar amarrando-se, cada noite, com os raios refletidos do sextante, às âncoras das estrelas…

Daí, em grande parte, o arrojo com que pompeiam os seus riscos rebeldes e heresias gráficas. Na grande maioria, estes hábeis caricaturistas de rios e de montanhas só se tornam inócuos quando se atêm à cópia, ou ao decalque mecânico das linhas e dos erros de seus antecessores. Se a fantasia se lhes desaperta, a revolver terras e mares, assiste-se à inversão do Gênese. Restaura-se a imagem perturbadora do caos…

É preciso escolhê-los cautelosamente, quando se não pode evitá-los.

Com estes resguardos, nos longos raciocínios anteriores, reportamo-nos apenas aos geógrafos que perlustraram aquelas regiões. Os demais, deixamo-los. Entre os antigos, citando à ventura, Sanson d’Abbeville (1659) e as suas cordilheiras tiradas a cordel; Guillaume De L’Isle (1701), et quelques autres messieurs de L’Academie, com as províncias do rio da Prata a entrarem por Goiás adentro, ou o seu rio Purus que não acaba mais; um certo I. B. Nolin (1704), e o seu Paraguai a terminar, curiosamente, no porto de Santos; o mágico Homaniam Aeredes, que atirou o Paraíba sobre o Tocantins, fazendo que este abandonasse o leito, mudando-se para a calha estreitíssima do Guamá; o tateante Conrado Mamnert (1803), que nos seria favorável, porque pintou as missões de Moxos, estranhas ao Peru, e abrangendo os pampas do Sacramento; e dezenas de outros, até ao crédulo D’Anville, com os seus fantásticos plateros – certo constituiriam esplêndidos recursos para espraiar-se urna erudição inútil. Preferimos, a bem da gravidade do assunto, o digno André Baleato, malgrado os seus deslizes; os irmãos Ulloas; o singelo Alós; o magnífico Requena. Entre os modernos, é de todo em todo opinável a valia que possam ter os dois ditosos La Pies (Mr. La Pie, Geographe du Roy, et Mr. La Pie Fils, Geographe du Dauphin), que em 1829, do mesmo modo que estenderam o Peru até o Madeira, estenderam São Paulo até quase ao Uruguai e esticaram o Uruguai até ao Iguaçu; e o interessante A. Brué, que ainda em 1843 não ouvira esta terrível palavra – Bolívia – e punha um ansioso ponto de interrogação diante do rio Madeira, e copiava André Baleato, lançando o Beni no Ucayali. Não os citamos; como não citamos Arrowsmith (1839), o qual, entretanto, desenhou a linha de Santo Ildefonso feita limítrofe, exclusiva, entre o Brasil e a Bolívia; nem Kiepert (1849), que lhe reproduziu a mesma demarcação mais racional; nem um sem-número de outros, favoráveis ou desfavoráveis, que se nos deparariam com o só esforço material da pesquisa; entre os quais teríamos de alinhar o sr. Estanislao Zeballos, atual Ministro das Relações Exteriores da República Argentina, que ao traçar, em 1894, em Washington, um mapa dos territórios adquiridos pelo Brasil, incluiu, de um modo claro, iniludível, em nítidos traços contínuos, toda a atual zona litigiosa no território boliviano[ 44 ]

Uns e outros, a despeito do renome que tiveram, e tenham, e mereçam, não valem o mais modesto geógrafo que haja percorrido aqueles lugares.

Por exemplo, Gibbon. Enfileirem-se de um lado todos os Ebdens, Delarochettes, Dufours, Arrowsmiths, Shliebens, Greanleaves, Lapies, Brués – e suplantá-los-á, no definir a geografia boliviana, aquele abnegado Tenente Lardner Gibbon, que fez o que nenhum deles fez: percorreu o país, e, com pleno conhecimento de causa, estudando as terras, conversando as gentes, traçou o mapa da Bolívia e as raias de sua demarcação política, em 1853.

Entretanto, não relutamos em garantir que nenhum advogado peruano será capaz de citar o digno oficial da U. S. Navy, que foi o único geógrafo a contornar em parte a atual zona litigiosa, logo depois do Tratado de 1851, construindo um mapa, único entre todos os da Bolívia, que se modelou sob as observações próprias, sem ser copiado de outros.

Gibbon entrou na Bolívia em 1852, por La Paz; seguiu para o sul, a alcançar Oruro; infletiu para leste até Cochabamba; ganhou a ourela do Paracta; desceu o Chiparé; prosseguiu pelo Mamoré abaixo até a confluência do Itenez; subiu ao arrepio deste, a buscar o forte do Príncipe da Beira; voltou; e volveu ao som do Madeira até ao Amazonas. A sua carta resultou das observações realizadas neste itinerário dilatadissimo; e estas foram tão cuidadosas que lhe permitiram, além da planta, traçar vários perfis do imenso território, graças aos elementos hipsométricos reunidos. [ 45 ]

É um documento precioso, onde não se reflete apenas a responsabilidade do geógrafo, mas também a do militar, a quem se deferira o encargo de estudar um país novo, e apresentar, oficialmente, um relatório ao Governo de Washington. É natural afirmar-se que Lardner Gibbon não se limitou aos máximos cuidados nas operações astronômicas e topográficas, senão também que teve as maiores cautelas no estabelecer os limites políticos da Bolívia, com a mais inteira segurança.

Ora, a sua demarcação, apresentada em caráter oficial ao governo norte-americano – por onde, naturalmente, este se guiaria em todas as suas relações com aquela república – reproduz, admiravelmente, as linhas gerais, limítrofes, que apontamos e são hoje requeridas pela Bolívia. A boundary line, desenhada entre ela, o Peru e Brasil, é clara: a partir da margem norte oriental do lago Titicaca, nas cercanias de Guiacho, vai, por um meridiano, procurar o thalweg do Inambari; segue-o; entra no Marcapata, prosseguindo. Por outro lado, no levante, depois de acompanhar o Itenez, o Mamoré e o Madeira, estaca na foz do Beni, e desta última estira-se, retilínea, para o poente, segundo um paralelo, a interferir o Purus na latitude aproximada de 10° 30′.

Notam-se, desde logo, lacunas inevitáveis neste deslindamento geral. Mas o seu significado inegável, fundamental no presente litígio, é este: no conceito do geógrafo, que tudo nos denuncia timbroso em não apresentar ao Governo de seu país informações falsas, ou vacilantes, a linha leste-oeste, do Madeira para o ocidente, em toda a Amazônia do sul, separava, exclusivamente, as terras brasileiras das Bolivianas.

A carta de Gibbon pode falsear em pormenores, bastando notar-se que desenha o Madre de Dios feito um prolongamento do Purus; mas, evidentemente, não se compreende que assistindo ele durante tanto tempo naquelas terras, e tendo como companheiro de excursão o distinto peruano Padre Bovo de Revello, por seu turno um explorador infatigável, se abalançasse a traçar aquela linha limítrofe, preeminente entre as demais de sua carta, sem exato e maduro conhecimento do assunto. Além disso, como já o vimos, reproduziu-lhe este conceito, mais tarde, em 1863, d. M. Paz Soldan, pró-homem da geografia peruana. E ambos ativeram-se ao confirmar as declarações uniformes, numerosíssimas, de todos os nossos geógrafos e cronistas, quer dos tempos da colônia, quer dos primeiros dias da Independência, para os quais, sem destoar de um nome, a capitania ou província de Mato Grosso, estendendo-se para o norte até pouco além da cachoeira de Santo Antônio, confinava no ocidente, de uma maneira exclusiva, com os Governos de Chiquitos e de Moxos.

Ora, entre todos aqueles nossos geógrafos, que ali viveram percorrendo todas as paragens, dois únicos são bastantes a demonstrar-se que a opinião brasileira atual, consistindo em considerar boliviano todo o território à margem esquerda do Madeira até as raias setentrionais de Mato Grosso, é antiquíssima, e não desponta agora, mal-arranjada, para justificar os Tratados de 1867 e o de Petrópolis, de 1903.

Reportemo-nos apenas aos oficiais de engenheiros Ricardo Franco de Almeida Serra e Luís d’Alincourt.

O primeiro a um tempo astrônomo experimentado e militar a que nenhum batia parelhas na retitude e no heroísmo, assistiu em Mato Grosso durante mais de dois decênios, desde 1781. Conhecia a terra. Defendera-a contra os espanhóis, através de atos memoráveis, que culminaram naquela extraordinária defesa do forte de Coimbra, onde com 40 homens repeliu os 800 de Lázaro de Rivera (1801).

Percorrera-a em vários rumos. E definiu as suas paragens ocidentais, naquela época, a confinarem com os domínios castelhanos, “pelos Governos do Paraguai, Chiquitos e Moxos”. [ 46 ] Isto é, para Ricardo Franco, antigo comissário das demarcações, a província de Moxos, confrontante, estendia-se para o norte até onde se estendia, neste rumo, o Mato Grosso.

O sargento-mor de engenheiros, Luís d’Alincourt, também ali viveu largo tempo, desde 1824, em comissão do Ministério da Guerra. São notáveis os seus estudos estatísticos e geográficos naquela província. Ora, em vários tópicos de seus trabalhos, quando lhe vem a ponto referir-se às suas divisas ocidentais, mostra-no-las a ladearem, invariavelmente, as províncias de Chiquitos e Moxos, pertencentes à República da Bolívia. Esclarece-as, por vezes, pormenorizadamente:

Quase todo o corpo do rio Mamoré existe nos domínio da Bolívia e somente as últimas 34 léguas, desde que se lhe une o Guaporé até à sua foz no Madeira (refere-se a confluência do Beni), é que são por nós navegadas, separando em toda aquela extensão a nossa província de Mato Grosso da de Moxos.

Ou então afirmativas mais amplas, a abrangerem quase toda atual zona litigiosa:

O rio Purus, que todo ele corre por domínios da Bolívia. [ 47 ]

Poderíamos prosseguir. Nesta intimidade com os nossos velhos patrícios, certo não nos faltariam elementos, quando tio fartos e em barda os encontramos nos anais e arquivos estrangeiros. Mas os casos apontados, adrede escolhidos em dois períodos imediatamente anteriores e subsequentes à quadra da Independência, são bastantes à demonstração de que o nosso parecer atual se enraíza, profundamente, na nossa própria história.

*

Voltando ao mapa de Gibbon, não maravilham as lacunas que nele existem, relativas à ignota região abarcante das cabeceiras do Juruá e do Purus, até ao Acre meridional. Aqueles lugares, convizinhos das raias peruanas, predestinavam-se aos últimos roteiros dos descobrimentos geográficos na América do Sul.

Entretanto, à volta e longe, desencadeavam-se largos movimentos povoadores, dominando as zonas desconhecidas. No extremo oriente os bolivianos desvendaram as terras do baixo Beni, onde, desde 1842, se erigira o Departamento do mesmo nome; e d. Augustin Palacios, um de seus prefeitos, completara, em 1846, os esforços dos portugueses e brasileiros na hidrografia completa do Madeira.

Outros grandes tributários, o Purus e o Javari, desde os tempos coloniais haviam sido percorridos em trechos dilatados.

Revelam-no as mais decisivas provas.

Consulte-se a carta geográfica do dr. Antônio Pires da Silva Pontes, astrônomo das reais demarcações, de 1784. Ver-se-á o traçado do Purus até perto de 6° de lat. S, com rigorismo tal que, sem grandes discrepâncias, pode ajustar-se aos levantamentos modernos; o que denuncia longos e pacientes esforços. [ 48 ]

Contemplando-se a planta que construíram, em 1787, os Capitães engenheiros José Joaquim Vitório da Costa e Pedro Alexandrino Pinto de Sousa, nota-se que o Javari se desenha até 5° 40′ lat. sul, ou até quase às suas cabeceiras, por maneira a justapor-se em quase todos os pontos às cartas modernas, feitas de 1863 a 1901.

Estes exemplos satisfazem. Prolongá-los seria fazer a longa e belíssima história, ainda inédita, da geografia brasileira na Amazônia.

Apresentamo-los para o só destaque deste conceito: enquanto as pesquisas geográficas irradiavam por toda a banda, na bacia do grande rio, paralisavam-se de todo nos lugares mais próximos do Ucayali e ao norte do Madre Dios.

Em 1864, um anos após publicar-se o livro de Paz Soldan, ainda reinavam, no tocante às nascentes do Juruá e do Purus, as ideias dúbias palidamente esboçadas em 1818 pelos missionários do Colégio de Santa Rosa de Ocopa, na planta das missões do Ucayali, publicada em 1833. [ 49 ]

Ali, o Purus, sob o nome de Cuja, mal se adivinha incorretamente, no levante. Os próprios missionários nunca o viram. Conforme o confessaram, e escreveram naquela carta, debuxaram-no según varias relaciones de los indios. E ele assim ficou até à viagem notável de William Chandless, que prolongou os trabalhos do engenheiro João Martins da Silva Coutinho e do abnegado Manoel Urbano, completados em 1905 por uma comissão mista brasileiro-peruana.

O mesmo quanto ao Madre de Dios. Malgrado as tentativas do pertinaz Padre Bovo de Revello, ele não perdera, ainda em 1848, o traçado misterioso do lendário Amaru-mayo dos Commentarios reales, de Garcilaso. A famosa exploração de Faustino Maldonado (1852) que não era um geógrafo, nem um comissionado do Peru, mas um prófugo viajante, ansioso por salvar-se em terras estrangeiras, fora nula, apesar da valia que hoje se lhe pretende emprestar. Antonio Raimondi, em 1879, no seu livro clássico, garante-nos ter sido ela completamente estéril:

No nos há dejado dado alguno…

E aditava, mais longe, que, entre todos os rios daquelas paragens, “el Madre de Dios, es todavía sin duda alguna aquel cuyo curso es menos conocido”. [ 50 ]

Por fim o Inambari, elemento essencial no presente litígio ainda em 1863, na poderosa opinião do maior geógrafo peruano, era:

…une rivière très considerable qui separe la province de Carabaye du territoire des barbares… et un afluent du Marañón dans lequel il va se jeter après une percours assez êtendu. [ 51 ]

Aí se observa, a ladear o pasmoso erro geográfico, a insistência naquela demarcação política certíssima:

Não multipliquemos os exemplos.

Ante os que se inserem, não maravilha resultasse imperfeito, naqueles lados, o belo trabalho de Gibbon. Mas as sombras geográficas, que o esforço do yankee mal poderia romper, isolado, não escurecem o critério, que firmou, conscientemente, de serem, o Inambari e o seu afluente Marcapata, os limites naturais e históricos da Bolívia com o Peru; e a linha de Santo Ildefonso, a divisória exclusiva entre a Bolívia e o Brasil.

Destas linhas, que poderíamos estender em muitas páginas, com o só auxílio do insuspeito livro de Antonio Raimondi, decorre outra conseqüência, robusta como um corolário ao fim de um teorema: a posse peruana nas cabeceiras do Juruá e do Purus, nula, de direito, antes de 1810, não se realizou, de fato, nos anos subsequentes até aos Tratados de 1851 e 1867. Enquanto a Bolívia prolongava a sua avançada histórica para o norte, e desbravava e povoava as terras que se desatam para o ocidente a começar da margem direita do Madeira, ao ponto de erigir-se, desde 1842, o Departamento do Beni a estirar-se para o Madre de Dios, transpondo-o, até ao Acre meridional – no extremo oeste, à parte a arremetida inútil de Maldonado, as explorações, feitas quase exclusivamente pelos missionários, reduziam-se, no seu máximo avançamento em busca dos territórios orientais, à grande expedição, do Conde Francisco de Castelnau (1843-1847), executada por ordem do Governo francês. [ 52 ]

*

Não se impõe longa explanação deste assunto, que está fora do litígio, tão rigorosamente inscrito na órbita fechada do uti possidetis de 1810.

Recordando-nos, porém, que há pouco tempo, no contravir a vários conceitos do professor John Moore, da Columbia University, um internacionalista, francamente devotado à causa peruana. Carlos Wiesse, professor da Faculdade de São Marcos – aventurou, entre outras afirmativas cambaleantes, que o médio e baixo Purus não estavam na posse efetiva do Brasil em 1822, aproveitemos o lance para destruir-lhe a objeção fragílima. [ 53 ]

Com efeito, contrastando com a paralisia das entradas geográficas no oriente peruano, naqueles tempos, a expansão brasileira no Amazonas (que se desenvolvera, no século XVIII, linearmente, até Tabatinga) definia-se, vigorosa, em movimentos laterais, que alargavam pelos maiores tributários ao sul do grande rio.

Sobram-nos a este respeito documentos acordes todos no patentearem desde 1780, os mais perseverantes esforços para o povoamento daquelas regiões. E no que toca ao Purus, o simples folhear as Revistas do nosso Instituto Histórico nos revelaria que ele estava em tanta maneira conhecido, explorado em parte de seu curso, percorrido no trecho inferior pelos extratores de drogas, e desafiando tanto o mais decidido ânimo de uma posse incondicional, e animus domini, que determinou uma das mais curiosas extravagâncias da derradeira fase do regímen colonial. De feito, o último governador do Rio Negro, Manuel Joaquim do Paço, em 1818, trancou-o. Proibiu que o sulcassem os pesquisadores de salsa e outras especiarias – “indo-se-lhe os olhos cegos de sua ambição atrás dos preciosos frutos”, conforme nos delata a palavra insuspeita de um cronista. [ 54 ]

Deste modo, muito ao revés do que aventurou o catedrático da Faculdade de São Marcos, o Purus não estava na mesma condição do médio e alto Mississipi, quando os disputavam os Estados Unidos e Espanha. E o mesmo sucedia com o Juruá e o Javari.

Imobilizada a geografia peruana nas bordas do Ucayali, os descobrimentos dos tributários austrais do Amazonas são uma glória privativa de geografia brasileira.

Abandonaríamos inteiramente o nosso assunto, mostrando-a.

Sirva-nos de remate – e prova fulminante – extratar apenas mais um dos trechos do livro daquele Antonio Raimondi, que se nacionalizou no Peru graças a trabalhos memoráveis, e se erige em máximo inspirador das linhas mais atrevidas das modernas pretensões peruanas.

Escrevia o historiador-geógrafo em 1879:

Casi no cabe duda alguna, que deben existir comunicadones entre el Ucayali y algún otro tributario del Amazonas situado mas al oriente; pues se tiene noticias de varios casos que en el siglo pasado aparecieron los brasileiros en el Ucayali, sin haber entrado por la boca de este rio. [ 55 ]

Assombrosa e rara antilogia: o Peru discute, reclama, exige; discute profusamente, reclama insistentemente, exige, quase ameaçadoramente, um território acerca do qual o seu grande geógrafo, o único de seus geógrafos capaz de continuar a tradição luminosa de Paz Soldan, ainda em 1879 só possuía notícias vagas, esmaecidas, a diluírem-se em conjecturas, por intermédio… dos brasileiros do século XVIII!

[ 44 ] ZEBALLOS, Estaníslao. Map Showing the Lands Granted by Spain to Portugal. Washington, 1894.
[ 45 ] Cf. o mapa que Lardner Gibbon, oficial da U. S. Navy, anexou ao seu Relatório, 1854.
[ 46 ] Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. t. IV, p. 156. Quanto à defesa do forte de Coimbra, que se fez gloriosamente, malgrado a tremenda intimativa de Rivera: el canon y la espada decidieron de la suerte de Coimbra! veja-se a mesma Revista, t. XIII, p. 47.
[ 47 ] Resultados dos Trabalhos na Província de Mato Grosso, etc. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (1877-1878). Vol. III, fasc. 1º
[ 48 ] Carta Geográfica de Projeção Ortogonal Esférica da Nova Lusitânia, Estado do Brasil, 1798.
[ 49 ] Misiones del Ucayali y Verdadero Curso de Êste Rio, en los Años de 1811, 1815, 1816, 1817, 1818, por los Padres Misioneros del Colegio de Propaganda Fide de Santa Rosa de Ocopa, 1833.
[ 50 ] El Perú. t. 3º, p. 297.
[ 51 ] Mateo Paz Soldan. Géograpbie du Pérou, p. 261.
[ 52 ] O sábio viajante foi também acompanhado, na sua excursão aos rios Santana, Tambo e Ucayali, pelo Capitao-de-Fragata D. Francisco Carrasco, comissionado do Governo do Peru. Ora, entre os incidentes do penoso itinerário, surgem a todo instante as mais amargas referências de Castelnau ao seu singularíssimo auxiliar. D. Francisco Carrasco foi para o tenaz explorador um empeço maior do que todos os pongos de Urubamba.
Castelnau denunciou-o nuamente:
Je fus alors convaincu qu’il n’avait jamais songé à executer le voyage; et qu’il êtait l’instigateur des difficultés que venaient nous arreter a chaque instant. (Expedition dans les partes centrales de l’Amerique du Sud. Tomo 4º, p. 296.)
[ 53 ] Comercio de Lima. Viernes, 20 Julio de 1906. Concepto del profesor Moore en la questión de frontera peruano-brasilena.
Carlos Wiesse, Catedrático de la Facultad Mayor de San Marcos.
[ 54 ] SOUSA, André Fernandes de. Notícias geográficas, etc. Revista do I.H.G.B., tomo X.
[ 55 ] El Perú. t. III, p. 108.
Como citar
CUNHA, Euclides da. Peru versus Bolívia. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/peru-versus-bolivia/. Acesso em: [data]. Texto-base: CUNHA, Euclides da. Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1.