O Tratado de limites de 23 de outubro de 1851, entre a República do Peru e o Império do Brasil, foi, antes de tudo, uma troca de excepcionais favores.Ali se vendeu a pele do urso equatoriano…
O Império, admitindo a divisória pelo Javari, fortaleceu, com o seu grande prestígio, as pretensões peruanas, que se estendiam até aquele rio, tendo como só elemento de prova a controvertida Cédula de 1802, a que se contrapunham, vitoriosamente: o atlas de Restrepo (1827); a carta geral da Colômbia, de Humboldt (1825); e, saliente-se este argumento extraordinário, o Mapa físico y político do Peru, impresso em 1826 por ordem do governo daquele país. Poderíamos ir além: a que se contrapunha um Tratado, o de 1829, pactuado com a Confederação Colombiana e estabelecendo que os limites das terras austrais, do Equador, abrangiam as províncias de Jaens e de Maynas, isto é, eram “los mismos que tenian antes de su independencia los antigos Virreinatos de Nueva Granada y del Perú, según el uti possidetis de 1810”. [ 56 ]
Como quer que seja, as vantagens conseguidas pelo Peru foram enormes. Reduzimo-las, anteriormente, a números: apropriou-se de 503.430 quilômetros quadrados, ou sejam dois terços do Equador, conforme os cálculos de Teodoro Wolf. [ 57 ]
Em compensação a República submeteu-se ao Império na retrógrada tentativa deste para monopolizar a navegação amazônica, excluindo-a do comércio universal.
É uma história de ontem, que se não precisa rememorar, tão vibrante ela aí está, ao alcance de todos, nas páginas revoltadas de F. Maury e de Tavares Bastos. [ 58 ]
Registre-se este único incidente: enquanto os enviados extraordinários e ministros plenipotenciários brasileiros, mandados à Bolívia, ao Equador e à Colômbia, com o objetivo de firmarem, com estes países, o direito preeminente do Brasil à navegação de seus tributários amazônicos, não logravam sequer entabular as negociações, o Peru, sem opor o mais breve embaraço a este alastramento da política imperial – naquele caso realmente imperialista – aceitava-o e sancionava-o, solenemente, com o Tratado de 1851. Desta arte se aliou ao Império no propósito obscurantista, que F. Maury denunciou à humanidade, em frases admiráveis blindadas de uma lógica irresistível: isto é, na missão de frustrar todas as tentativas das relações comerciais de outros mercados com aquelas Repúblicas, feitas pelos tributários do grande rio – e destinada a estancar aquela artéria maravilhosa, perpetuando, num monopólio odioso, o marasmo que durante três séculos entibiara o desenvolvimento econômico da Amazônia.
O Peru deixou-se lograr e fez o Tratado exigido, [ 59 ]
conceituou o esclarecido oficial de marinha.
E iludiu-se. Iludiu-se palmarmente.
Vemo-lo agora.
Mas não lhe malsinemos a perspicácia. Qualquer observador mais bem apercebido de acurada malícia, ou sutil argúcia, subscreveria, naquele tempo, aquela frase. Fora preciso gizar-se a mais absurda entre as mais complexas maranhas internacionais, para conjecturar-se que no Tratado de 1851, onde os limites brasílio-peruanos se traçam de maneira tão límpida, houvesse, latentes, tantos gérmens de dúvidas capazes de justificarem o presente litígio – por maneira a prever-se a inversão da frase do yankee, ao fim de meio século:
O Brasil deixou-se lograr, no Tratado que firmou…
Realmente, as nossas relações eram muito conhecidas, ao celebrarem-se os Convênios de 1851 e de 1867, com o Peru e com a Bolívia. De um lado, para com o primeiro, em tanta maneira maleável aos caprichos da política imperial, todas as simpatias; de outro, para com a segunda, perenemente recalcitrante e rebelde e agressiva, todas as animadversões e azedumes. Ainda em 1867 um dos luminares da nossa história diplomática, Antônio Pereira Pinto, conceitava que “na Bolívia as tradições adversas ao Brasil passavam em seu Governo de geração em geração”. [ 60 ]
Datavam de 1833 as cizânias entre ela e o Império, no tocante às questões de limites; e nunca mais cessaram, engravescendo-se, crescentemente, com outras: em 1837 a propósito das sesmarias outorgadas em territórios brasileiros; em 1844, oriundas das tentativas Bolivianas, visando franquear a navegação para o Amazonas; em 1845, 1846 e 1847, até 1850, relativas todas, em última análise, ao domínio amplo do Madeira; em 1853-1858, irrompendo dos decretos declarando livres ao comércio e navegação estrangeiros todos os rios que regam o território boliviano, fluindo para o Amazonas e para o Prata; e firmando, expressamente, com os Estados Unidos, um convênio, onde se estatui que todos aqueles cursos d’água eram caminhos livres, “abertos pela natureza ao comércio de todas as nações…”
Durante esse tempo abortavam as conferências e propostas para se resolverem os deslindes internacionais – desde 1841, em que se frustrara a missão especial do Conselheiro Ponte Ribeiro. E os malogros, assim como as demais discórdias, de relance precitadas, provinham, sobretudo, ao parecer de Pereira Pinto, “de não quererem as autoridades supremas da República arredar-se das estipulações do Tratado de 1777, estipulações caducas depois da guerra de 1801”.
Destaquemos bem a razão, que aí está entre aspas, sob a responsabilidade do lúcido internacionalista. O Império, esteando-se no argumento (aliás opinável e frágil, porque há outros mais sérios, como já o vimos) da guerra de 1801, obstinadamente repelia, ou negava, as divisas do Tratado de Santo Ildefonso, para guiar-se nas demarcações modernas; e como a Bolívia
era um dos Estados sul-americanos mais pertinazmente interessados na vigência daquele Tratado,
ensina-nos o publicista nomeado, resultaram destes critérios, diametralmente contrários, os empeços dilatórios no se pactuarem os limites respectivos.
A consideração é capital, máxime se a defrontarmos com as docilidades e lhanezas, que favoreceram o Convênio de 1851 com o Peru.
Com efeito, deduz-se, lisamente, que o grande empecilho contraposto ao curso da política imperial, naqueles deslindamentos – o pacto de Santo Ildefonso e a sua famosa divisória e principalmente a sua famosa divisória Madeira-Javari – se eliminou de todo no acordo brasileiro-peruano.
E a lógica singela e forte dos fatos. Aparece, irresistível, ao cabo de antecedentes históricos, que se não iludem.
O Império não celebraria a Convenção de 1851, com a República do Pacífico, se houvesse de respeitar a caduca demarcação que desde 1841 tanto o desarmonizava com a Bolívia.
A evidência é luminosa.
E, se lhe restassem ensombros, delir-lhos-ia este fato sabidíssimo: o fracasso de todas as negociações com a Bolívia subsecutivas aos Convênios brasílio-peruanos, de 1851 e 1858, até aos reiterados esforços de nosso Ministro Rego Monteiro, em 1863.
Entretanto, este transigira. Ao fim de 20 anos de notas contrariadas, o Império cedera, em parte, à pertinácia boliviana. Em conferência de 17 de julho daquele ano, o seu plenipotenciário propôs a base que mais tarde, quase sem variantes, se refletiria nos deslindamentos de 1867: a linha limítrofe, após seguir o Paraguai, o Guaporé e o Madeira até à foz do Beni,
seguiria dali para Oeste por uma paralela tirada da margem esquerda, na latitude de 10° 20′ ate’ encontrar o rio Javari; e se este tivesse as suas nascentes ao norte daquela linha, seguiria por uma reta, tirada da mesma latitude, a buscar a nascente principal do mesmo rio.
Era, como se está vendo, não já o embrião do Tratado de 1867, senão todo ele, íntegro.
A Bolívia, porém, repulsou a proposta. Não cedeu um passo nas antigas exigências. Insistiu na sua divisória intangível, de Santo Ildefonso.
As negociações romperam-se.
Interpretem-se, agora, os fatos. Havia doze anos (1851-1863) que se celebrara o pacto com o Peru, à luz de um princípio novo, removendo os deslindes anacrônicos das metrópoles. A política imperial via-os renascer, contrariando-a, nas suas negociações com a Bolívia. Demasiara-se nos maiores esforços, durante dois decênios, por eliminá-los. Não o conseguindo, transigiu, alterando-os ligeiramente, e deslocando a leste-oeste para o ponto indicado pelos antigos comissários portugueses. Apesar disto a Bolívia não aquiesceu. Manteve, pertinazmente, o que julgava ser-lhe direito claro, exclusivo, inalienável. As negociações fracassaram ruidosamente. Engravesceram as relações dos dois países… E durante todo esse tempo o Peru mandava os seus comissários, emparceirados aos nossos, a demarcarem as linhas do Javari, consoante o acordo de 1851, ratificado em 1858. Não emitiu, ou boquejou, o mais balbuciante juízo no debate fervoroso, que se lhe travara às ilhargas. Não insinuou, no decurso de doze anos, em que coexistiram os seus convênios tranquilos e as negociações perturbadíssimas da Bolívia, o mais remoto interesse, prendendo-o aos territórios, onde se abria o campo da discórdia. Não disse aos contendores que o seu parecer, embora consultivo, era indispensável.
Fez isto: naquele mesmo ano, quatro meses apenas depois de baquearem as nossas tentativas com a Bolívia, porque a Bolívia impunha o traçado completo da linha de Santo Ildefonso, por que a Bolívia recalcitrava, exigindo todas as terras amazônicas ao sul daquele paralelo, porque a Bolívia não cedera, obstinadamente, um só hectare da zona hoje litigiosa – o Peru celebrou com a Bolívia o Tratado de Paz e Amizade de 5 de novembro de 1863, onde não se cogita, sob nenhum aspecto, dos deslindamentos gravíssimos, cada vez mais insolúveis ao cabo das mais longas, das mais repetidas, das mais demoradas, das mais infrutíferas conferências, em que surgiam, como elemento único de desarmonia, precisamente os territórios constituintes do atual litígio. [ 61 ]
Como explicar-se esta atitude?
Resta um doloroso dilema: ou o Peru reconhecia, de modo tácito, que se lhe alheavam de todo aquelas terras, sobre as quais não poderia exercitar o mais apagado direito – ou aguardava que a Bolívia, devotando-se ainda uma vez ao seu papel de cavaleira andante da raça espanhola, e intrépida amazona da Amazônia, se esgotasse nos debates diplomáticos, e sucumbisse, ao cabo, dessangrada em uma guerra desigual prestes a romper, para alevantar um direito tardio, entre as ruínas…
Não há fugir às proposições contrastantes. Estamos afeitos às deduções rispidamente matemáticas. Para quebrar-se a ponta que lanceia, aí, a honra nacional de uma terra timbrosa de suas tradições cavalheirescas, é forçoso admitir-se a infrangibilidade da outra. Admitimo-la de bom grado: o Peru, em 1863, data em que se infirmaram as nossas relações com a Bolívia, data em que se firmaram as suas relações com a Bolívia, reconhecia o direito exclusivo desta última à posse das terras hoje controvertidas.
E o reconhecimento acentuou-se. Progrediu. Rotas as negociações, o nosso Ministro pediu os passaportes e retirou-se da República incontentável.
Entre os dous países, as relações, turvando-se, assumiram esse sombrio aspecto crepuscular, que não raro se rompe aos repentinos brilhos das espadas. Além disto, o micróbio da guerra envenenava o ambiente político, germinando nas sangueiras do Paraguai. A América estremecia na sua maior campanha. Toda a nossa força molificava-se ante a retratibilidade de Solano Lopes e a inconsistência dos “esteros” empantanados…
A ocasião surgia a talho a que a política imperial resolvesse, de um lance, dois problemas capitais, na conjuntura apavorante em que se via: captar o bem-querer do Peru, cuja antiga cordialidade resfriara, trocando-se por simpatias ao Paraguai, ao ponto de ocasionar a retirada, de Lima, do nosso representante Francisco Varnhagen; e revidar, triunfantemente, à tradicional adversária, que nos ameaçava pelos flancos de Mato Grosso. Para isto um meio infalível: atrair o Peru à posse das maravilhosas terras da Amazônia meridional.
Mas não se aventou sequer este alvitre.
O Império manteve-se, nobremente, no plano superior das nossas tradições.
Submeteu-se à retitude do nosso passado político. Não repudiou os ensinamentos austeros dos nossos velhos cronistas e dos melhores geógrafos, que estabeleciam, unânimes, o direito boliviano naquelas terras.
Abandonou, galhardamente, o desvio que o favorecia; e firmou o Tratado de Ayacucho, de 27 de março de 1867, decalcando-o, linha por linha, pelas bases propostas em julho de 1863.
Decalcando-o, frase por frase, pelas bases propostas em 1863 – é indispensável repetir, porque em várias páginas de lídimo castelhano se tem garantido, humoristicamente, que o firmamos urgidos, ou aguilhoados, das dificuldades que nos assoberbavam sob o alfinetar das baionetas paraguaias…
O fato é que em 1867, a despeito das vicissitudes de uma guerra – gravíssimas, embora o nosso Exército já se houvesse imortalizado em Tuiuti – o Brasil manteve a base oferecida cinco anos antes, quando a sua hegemonia militar no continente era incontestável, aparecendo entre o desmantelo da ditadura suplantada de Rosas e os triunfos, a passo de carga, da campanha do Uruguai.
Ora, pactuado aquele convênio, pelos plenipotenciários Filipe Lopes Neto e Mariano Duñoz, os bolivianos, em massa, protestaram. A consciência nacional rebelou-se contra o governo que deslocara a velha linha histórica.
Explodiu em panfletos violentíssimos.
A ditadura de Melgarejo reagiu, discricionária. Lavraram-se proscrições…
E durante a crise tempestuosa o Peru quedou na mais imperturbável e cômoda quietude.
Protestou, afinal, transcorridos nove meses. O protesto, subscrito pelo Ministro das Relações Exteriores, J. A. Barrenechea, é de 20 de dezembro de 1867. Nove meses justos, que a noção relativa do tempo torna sobremodo longos na precipitação acelerada dos acontecimentos…
Mas protestou; e no protesto transluz, notavelmente, a insubsistência das pretensões peruvianas. Raras vezes se encontrará documento político onde se contrabatam, às esbarradas, as maiores antilogias e se abram, em cada período, tão numerosas frinchas à mais fácil crítica demolidora. [ 62 ]
O ministro, ao termo da penosa gestação, começa ponderando que sempre
havia creído que era conveniente para las Repúblicas aliadas darse conocimiento de sus negociaciones diplomáticas,
quando havia 25 anos, desde 1841, que as negociações brasílio-bolivianas, ruidosas, alarmantes, cindidas no intermitir de sucessivos fracassos, preocupavam a opinião geral sul-americana…
E talvez não demonstrasse que os acordos anteriores, do Peru, houvessem satisfeito à conveniência de uma consulta prévia à Bolívia. Depois, doutrina professoralmente que o princípio do uti possidetis, estabelecido no Tratado de 1867, embora se pudesse invocar com justiça nas controvérsias territoriais das nações hispano-americanas oriundas de uma metrópole comum, não poderia aplicar-se, tratando-se de países dantes submetidos a metrópoles diversas, entre as quais havia pactos internacionais regulando-lhes os domínios – deslembrando-se que aquele mesmíssimo princípio expressamente aceito pelo Peru fora o único em que se baseara o Convênio de 1851, ratificado em 1858. Apesar disto preleciona:
Asi el uti possidetis no podia tener lugar entre Bolívia y Brasil…
Prossegue. Refere-se à semidistância do Madeira. Esclarece-lhe a posição verdadeira. [ 63 ] Argui, amargamente, a Bolívia de permitir que ela se mudasse tanto para o sul, o que importava na perda de dez mil léguas quadradas de terrenos, incorporados ao Brasil, onde se deparam:
ríos importantisimos, tales como el Purus, ei Yuruá y Yutay, cuyo porvenir comercial puede ser inmenso;
e, logo adiante, esquecido da semidistância, tão pecaminosamente deslocada pela complacente Bolívia, que se não devera mudar tanto para o sul (porque ela deveria interferir o Javari em 6° 52′, consoante o juízo de Raimondi, restaurado, às cegas, nas atuais pretensões peruanas), escreve que, conforme o Pacto de 1851, entre o Brasil e o Peru,
…todo el curso del rio Javary es limite común entre los Estados contratantes…
É um jogo estonteante de incongruências curiosíssimas.
Por fim, a serôdia impugnação não afirma, não precisa, não acentua um juízo claro dos prejuízos peruanos. Não diz o que reclama. O protesto é o murmúrio vacilante e medroso de uma conjectura; é a expressão anódina de um interesse aleatório: o governo boliviano cedeu ao Brasil territórios “que pueden ser de la propriedad del Perú”.
Que pueden ser…
Aí está o corpo de delito direto da maior e mais insensata cinca da política internacional sul-americana. [ 64 ]
Este documento, que não resiste à mais romba e desfalecida análise, devia ser o que foi e o que é: contraditório, frágil, bambeante, sem nenhuma pertinência jurídica, e a destruir-se por si mesmo na decomposição espontânea da própria instabilidade, advinda, a um tempo, do contraste e divergência dos seus conceitos, que ora se anulam, entrechocando-se, ora, disparatando, desagregam-se e pulverizam-se.
O período gestatório de nove meses, há pouco considerado longo, achamo-lo, agora, apertadíssimo. Em nove meses apenas, o mais prodigioso gênio não conceberia paralogismo, para iludir três séculos, escrevendo quatro ou cinco páginas capazes de embrulharem toda a história sul-americana.
Não vale a pena prosseguir. Deste lance em diante o assunto decai. Baste-se dizer que, por paliar, ou rejuntar, superficialmente, estes estalos na estrutura de seu protesto e das suas exigências, apela o Governo peruano para o adiáforo, o vátio, o insubsistente, dos dizeres de algumas instruções aos comissários demarcadores dos limites, entre 1863 e 1874. Não nos afadiguemos na tarefa inútil de apurá-las. Satisfaz-nos, a este propósito, uma consideração única: quaisquer que elas fossem, aquelas instruções debateram-se, balancearam-se, longos anos, por maneira a prevalecer, naturalmente, o critério das deliberações finais.
Pois bem – o comissário brasileiro que, de harmonia com o peruano, implantou o “marco definitivo” dos nossos deslindamentos com o Peru, em 1874, nas cabeceiras do Javari, foi o venerando Barão de Tefé; e ele, que com o maior brilho repelira as constantes propostas de seu colega, M. Rouaud y Paz Soldan, para adotar-se a célebre linha média, do Madeira ao Javari, mesmo escandalosamente deslocada para 9° 30′ de latitude sul, conforme, reiteradamente, aquele lhe oferecera em documentos oficiais inequívocos e límpidos – o Barão de Tefé, a quem se pode cortejar desafogadamente, porque na sua quase existência histórica é apenas um relíquia sagrada do nosso passado, sem a mais breve influência nos negócios públicos – ao implantar o marco definitivo do Javari manteve, integral, o parecer vitorioso que impusera ao comissário peruano, consistindo nestes pontos essenciais:
1º – Que o Peru nenhum direito possuía à margem direita do Madeira;
2º – Que a República do Peru no Tratado solene celebrado com o Império do Brasil, estabelecera como limite todo o curso do rio Javari; por isto considerou nulo o art. 9º do Tratado de Santo Ildefonso, que fixava o extremo sul da fronteira do Javari no ponto cortado pela linha leste-oeste. tirada a meia distância do Madeira, que é o mesmo paralelo dos 7° 40′ dos comissários de 1781.
Nestas palavras ultimaram-se para sempre os nossos negócios territoriais com o Peru.
*
O prolongamento natural destas linhas consistiria em desvendar o cenário da recentíssima expansão daquela República, a estirar-se pelas cabeceiras do Juruá e do Purus – obscuramente, temerosamente e criminosamente – escondida no afogado das selvas oscuras das castilloas, por onde vai alastrando-se a rede, aprisionadora de territórios, entretecida pelas trilhas tortuosas e fugitivas dos caucheiros.
Mas estes, reclamam-no-los outras páginas…
*
Terminemos.
Estes artigos têm a valia da própria celeridade com que se escreveram. São páginas em flagrante. Não houve, materialmente, tempo para se ataviarem frases, expostas na cândida nudez de uma esplêndida sinceridade.
Fomos apenas eco de maravilhosas vozes antigas. Partimos sós, tateantes na penumbra de uma idade remota. Avançamos; e arregimentou-se-nos em torno uma legião sagrada, mais e mais numerosa, onde rebrilham os melhores nomes dos fastos de uma e outra metrópole. Chegamos ao fim, malgrado a nossa desvalia, a comandar imortais.
Daí a absolvição desta vaidade: não nos dominaram sugestões. Num grande ciúme de uma responsabilidade exclusiva, não a repartimos. O que aí está – imaculada e íntegra – é a autonomia plena do escritor.
Muitos talvez não compreendam que, numa época de cerrado utilitarismo, alguém se demasie em tanto esforço numa advocacia romântica e cavalheiresca, sem visar um lucro ou interesse indiretos. Tanto pior para os que não o compreendam. Falham à primeira condição prática, positiva e utilitária da vida, que é o aformoseá-la…
De tudo isto nos resultou um prêmio: nivelamo-nos aos princípios liberais de nosso tempo. Basta-nos. Afeiçoamo-nos, há muito, aos triunfos tranquilos, no meio da multidão sem voz dos nossos livros. Hoje, como ontem, obedecendo à finalidade de um ideal, repelimos, do mesmo passo, o convício e o aplauso, o castigo e a recompensa, o desquerer e a simpatia.
Não combatemos as pretensões peruanas. Denunciamos um erro.
Não defendemos os direitos da Bolívia.
Defendemos o Direito.
Notas adicionais indispensáveis
I
Os dizeres dos plenipotenciários portugueses e espanhóis, extractados em várias páginas do capítulo III, pertencem a documentos existentes no Arquivo de Simancas, Legajos 7.403 e 7.406.
II
A Real Cédula de 15 de setembro de 1772, tantas vezes citada, consta do Archivo de Indias, Est. 120. Cap. 7. Leg. 27.
III
O Memorial de Bartolomeu Verdugo, e as informações de vários ministros expostas no capítulo IV – existem no Archivo de Indias, Leg. 27.
[ 57 ] WOLF, T. Geografía y Geologia del Ecuador, 1892, p. 12.
[ 58 ] BASTOS, Tavares. Cartas de um solitário.
[ 59 ] F. Maury, Tenente da U. S. Navy. O Amazonas e as Costas Atlânticas, etc. Rio de Janeiro, 1853, p. 35.
[ 60 ] PINTO, A. Pereira. Estudo sobre algumas questões internacionais, São Paulo, 1867, p. 42.
[ 61 ] Realmente o Tratado perúvio-boliviano, de 5 de novembro de 1863, quanto a limites, se reduziu a confirmar o statu quo firmado no de 3 de novembro de 1847, onde ambos os Governos se comprometeram a nomear comissões para levantarem as cartas topográficas das fronteiras, com a cláusula de que la demarcación estipulada sólo tendrá por objecto la restitución de los terrenos comprendidos entre las fronteras actuales del Perú y Bolívia. Estavam, certo, longe de cogitarem na Amazônia, onde seriam ridículas as plantas topográficas antes das linhas geográficas. Alem disso a mesma cláusula, confirmando a limpidez daquelas fronteras actuales, adita que a restituição não visa cederse territorio, sino para restabiecer sus antiguos amojonamentos, a fim de evitar dudas…
Mojone, quer dizer marco divisório, o que certo não havia, e sobretudo antigos, naquelas terras ignotas.
(ARANDA, Collección de Tratados del Perú. t. II, pp. 309, 293, 287, etc.)
[ 62 ] Veja-se o Apêndice final.
[ 63 ] Em flagrante desacordo com o parecer atual da Sociedade Geográfica de Lima!…
[ 64 ] “Nota-protesta” do Peru, de 20 de dezembro de 1867, por J. A. Barrenechea.
CUNHA, Euclides da. Peru versus Bolívia. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/peru-versus-bolivia/. Acesso em: [data]. Texto-base: CUNHA, Euclides da. Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1.