Correspondência ativa de 1908

Rio, 6 de janeiro de 1908

José Veríssimo. Meu distinto amigo

Depois de ler a sua Revista Literária, de hoje, onde, sempre coerente, aponta os pecados originais da minha maneira de escrever — devo repetir o que já tive o prazer de dizer-lhe: não pensei, absolutamente, em fazer-lhe uma alusão, indireta ou disfarçada, quando me referi a um “crítico reportado e sabedor”.

Os que viram em tão expressão uma carapuça, ardilosamente talhada para o meu amigo, conhecem-me muito mal.

Bem se vê que nesta vida, além dos nossos próprios erros, ainda carregamos os que nos inventam. Mas no caso presente, por amor próprio até, insisto na revisão. O sr. merece-me muito, para que eu pensasse em feri-lo de, tão de soslaio e traiçoeiramente.

Com um abraço e os melhores votos de felicidade, sou sempre o mesmo

Euclides da Cunha
R. Humaitá, 61.

Rio, 14 de janeiro de 1908

Rodrigo Otávio

Espero merecer-te um grande, extraordinário favor. Leia a carta, que aí te deixo, do presidente do Centro Acadêmico Onze de Agosto, de S. Paulo — e resolve, por mim, o assunto de que ela trata. Tira-me ao menos de uma situação delicadíssima. Por todos os motivos não posso procurar o Exmo. sr. conselheiro Rui Barbosa a fim de transmitir-lhe o pedido que me fazem… até mesmo porque S. Exa. nem sequer agradeceu ainda o livro que fomos, eu e você, pessoalmente levar-lhe! É incrível… Assim a tua intervenção é necessária, absolutamente necessária, e conto absolutamente com ela. Mostra-lhe, se o quiseres, a carta do dr. Lacerda — e manda-me com a maior urgência, hoje mesmo se for possível, uma resposta decisiva para a rua do Humaitá, 61.

Confio na tua bondade — e abraço-te

Euclides

P. S. — Sobretudo não convém que a imprensa noticie o caso apresentando-me como intermediário.

Trindade, 28 de janeiro de 1908

Meu Pai

Respondo a sua carta de 25. Não é tanto por economia — mas em virtude de atrapalhações que o Solon não pode ir já. É preciso prepará-lo etc. Quando o Álvaro for, talvez ele vá. Além disto está muito atrasado de estudos: e aí não se submeteria ao regime a que procuro submetê-lo para ver se ainda pode fazer exames em março. Fiquei satisfeitíssimo com o que o sr. mandou dizer relativamente ao tratamento prescrito pelo dr. B. Rodrigues. E peço-lhe que mande algumas linhas àquele distinto amigo, que ficará contentíssimo de recebê-las.

Quanto ao Mário Diniz — não há dúvida. Mas o barão não me tocou mais no assunto; e não sei se efetuará a viagem. No caso afirmativo pode o sr. dizer ao dr. Deolindo que não me esquecerei da recomendação.

Escreverei ao Pujol sobre o Banco. O Álvaro esteve ontem aqui — e disse-nos que não vai já visitá-lo, porque o tio José o atrapalhou com não sei quantas centenas de sacos de açúcar que lhe mandou da Bahia.

Talvez sexta-feira eu vá com a família passar dois dias em Petrópolis, a convite do dr. José Carlos Rodrigues. Mas não é certo. Tem recebido as Revistas? Não sei se já lhe mandei a Conferência sobre Castro Alves, impressa na Tipografia Nacional por ordem do barão (sem que eu pedisse). Escreva-nos sempre, e abençoe ao filho e amo.

Euclides

Petrópolis, 12 de fevereiro de 1908

[Acima e ao lado do cabeçalho:] Veja-se como anda esta cabeça: encontrei agora entre outros papéis, esta carta, que imaginava ter seguido o seu destino há mais de um mês:

Escobar

Você deve estar — com razão — surpreendido da minha atitude, não respondendo a tua última carta. Explico a demora:

1º) — doença = assombroso resfriamento, complicado do meu velho impaludismo amazônico. A tua carta chegou; li-a oito dias depois, convalescente.
2º) — aventuras escandalosas de um caixeira de venda e uma negrinha que tínhamos em casa, alugada;… interrogatórios — defloramento cinicamente confessado pelos dois interessados — inquérito — fuga do Lovelace — aborrecimentos —
3º) — vinda a Petrópolis, com a família toda, a fim de satisfazer antigo convite de um distinto amigo — É só aqui, no remanso de uma chácara afastada, posso, afinal, escrever-te. Não fui ao Briguiet porque me faltou tempo e dinheiro. Os padres do Colégio Anchieta esmagaram-me com uma conta de fim de ano assombradora; depois vieram as do médico, do farmacêutico — Um horror!

De sorte que somente para o mês talvez possa satisfazer a tua ordem. Manda-me, por isto, dizer se te convém.

Quando vens, afinal, até aqui?

Precisamos conversar — muito e muito. A viagem não te será difícil. Serás meu hóspede. Verás o Rio. Admirarás os célebres melhoramentos. Fulminaremos, juntos, o pioramento dos homens. Daremos pasto à nossa velha ironia ansiosa por enterrar-se nos cachaços gordos de alguns felizes malandros que andam por aqui fonfonando desabaladamente, de automóvel, ameaçando atropelar-nos a nós outros, pobres altivos diabos que teimamos em andar nesta vida, dignamente, pelo nosso pé.

Anda-me daí, portanto, sem demora! Além disto, falaremos do futuro; e eu te contarei algumas coisas curiosas. Mas é preciso que tomes, decisivamente, uma resolução.

Espero-te, pois. Responde-me logo, dizendo o dia certo da vinda. Manda-me também notícias da tua candidatura.

Um abraço do

Euclides
Amanhã ou depois — voltaremos para o Rio. Escreve-me para lá.

Rio, 13 de março de 1908

Amo. dr. Oliveira Lima

Depois da atrapalhada carta que lhe escrevi, a correr, apenas para responder, de pronto, a sua, — voltei para casa, a tiritar de frio, sob uma temperatura de 30° (!), e passei oito longos dias em estreita intimidade com o meu impaludismo amazônico! Escrevo-lhe ainda convalescente — em falta de melhor termo, porque afinal a minha vida, aqui, é uma perpétua convalescença. E, talvez, como ressaibos da febre, aí vou traçando estas linhas, cheio de tristeza. Tristeza e inveja. Uma surda e decoradora inveja do sr., por exemplo, que tem esta alta, esta deslumbrante, esta excepcional ventura — embora seja a de milhões de homens — a ventura de não viver no Brasil. Por atenuar a minha miséria é debalde que procuro o largo coração de Renan, ou perco-me, longas horas, à[s] voltas com as páginas maravilhosas de Diderot… “os pequenos ecos”, “o binóculo”, “a ordem do dia”, “os de ontem”, e outras criações fantásticas da incurável imbecilidade indígena, estragam-me o programa salvador. Calcule com que desapontamento ouvi ao Gastão que o sr. lhe comunicara ir assistir a uma conferência, realizada por autêntico neto de Darwin! Só isto valeria uma viagem! Nós temos as célebres conferências do Instituto de Música — com uma repercussão mundial que vai do largo de S. Francisco à rua da Lampadosa… Ou então essas lutas políticas, que fariam o encanto dos mais despejados Raliagas da politiquice européia. E nem estas nos restam: Há uns oito dias a curiosa cisão que abrira o Palácio, desapareceu. Pinheiro, o terrível, dobrou-se diante de Carlos Peixoto, o forte. Os dois bravos antagonistas realmente não podiam prolongar a contenda, desde que se irmanavam com um só anelo: colherem o lenço de alcobaça do conselheiro Pena. A nenhuma deles lhes lembrou uma coisa que noutros países se chama opinião pública — porque lhes falta metafísica para idealizarem, entre nós, criação tão transcendental ou fantástica. E assim vamos engatinhando — fracos, ruins, ruinzinhos, cheios de mazelas, embirrando em desvaliosas questiúnculas, que o próprio pavor argentino não disfarça. Este medo é sintomático. Os homens sabem que nas próprias guerras valem menos as armas do que o caráter nacional; e trabalhado por dezoito anos de politicagem funesta, é duvidoso que o nosso tenha fortaleza para resistir à pressão formidável de uma campanha. O “Cursando Véo”, onde o ponto de vista argentino de Zeballos é admirável, entrou pelo Brasil como um fluxo galvânico. Um momento de estupor; e logo depois a velha prosápia indígena, o nosso adorável heroísmo capadócio: — “Prosas de gringo! Com meia dúzia de batalhões varrem-se os pampas!” Entretanto, nestas expressões heróicas, sente-se o tremolo ou o estrangulado da voz, do medroso atravessando uma estrada suspeita e cantando, ruidosamente, para espantar os duendes que o apavoram.

Afinal, a luta argentina é menos perigosa e mais grave. É uma rivalidade a decidir-se no jogo das competências e em conflitos industriais ou agrícolas. Os que tanto se impressionam com os soldados argentinos, esquece-lhes o operário, o lavrador, e o industrial argentinos — esses, sim, terríveis antagonistas diante da nossa pobreza orgulhosa, da nossa inaptidão e da nossa preguiça. Para vencê-los não precisamos do sorteio, que tantas controvérsias agita — precisamos de uma política sadia, que restaure as esperanças dos forte[s] e dos bons, estimulando a alma nacional pelo regime franco do triunfo das competências… e nós continuamos, numa assombrosa seleção invertida, a guindarmos a todas as alturas os espertos felizardos vesados à lisonja, aparelhados da ciência dificílima dos cumprimentos em tempo e dos laços de gravata, impecáveis.

Mas o sr. partiu ontem. Estou a dizer-lhe coisas sabidíssimas. Além disto, agravo-as talvez — dando a estas linhas um falso tom de despeitadas. Mas tão pouco o sou que ainda há bem poucos dias recusei, reagindo a reiterados convites do Calmon, uma comissão aí, na Europa. É exato que o fiz porque o estado de saúde do meu pai, não me permitiria que fosse tranquilo. Mas por aí se conclui que nenhum desgosto pessoal me perturba. Trato de um assunto geral.

Há dias entregaram-me no Garnier o Pan-germanismo. Levei também o que se destinava ao barão, entregando-lhe, pessoalmente. Não sei qual a sua impressão. Naquele mesmo dia ele partiu para Petrópolis, e ainda não nos vimos. Vou ler atenciosamente o livro. Direi depois, em carta, ou pelo Estado a minha impressão real. O juízo crítico do Veríssimo foi fugitivo; ladeou o livro, atraído pela questão geral mais fácil. A culpa não é do nosso lúcido e inteligente amigo; é do crítico hebdomadário, obrigado a escrever a prazo certo.

A execução — segundo o dizer feroz de Junqueiro — de d. Carlos e do filho, despertou — como já deve ter sabido — entre nós, as rajadas mais sentimentais que ainda saíram dos prelos. Gemeram, literalmente, desta vez… Mas os comentários seriam longos; e não devo ultrapassar esta folha.

A Saninha manda muitas recomendações e saudades a d. Flora a quem apresento os meus respeitos.

Creia sempre no

Euclides da Cunha
R. Humaitá, 61
Em tempo: todos os amigos que não o esquecem nunca, mandam lembranças e saudades.

Rio, 19 de março de 1908

Quidinho

Recebemos a tua carta e ficamos contentes com o teu propósito de seres bom, obediente e estudioso.

Ontem seguiu a mala com a tua roupa, que já deve ter chegado.

Manda-nos dizer logo se a recebeste.

Também estou ansioso para saber o resultado de teus exames. Achei a tua letra pior do que no ano [sic]. Vê, por aí, o que são dois meses de vadiação. Eu espero, porém, que doravante terás mais juízo, para a tua e nossa felicidade. Já deves estar convencido que nenhum lucro há em ser-se mau ou descuidado nos deveres. E como és inteligente, trata de ser bom, aplicado e limpo para seres verdadeiramente feliz. Confiamos todos no teu coração certo que não nos fará sofrer — e que cumprirás a tua promessa de um ano mais bem aproveitado.

Assim também terá férias melhores e mais alegres.

Adeus. Recomendações ao pe. reitor. Abraça-te e abençoa-te o teu pai.

Euclides

Rio, 19 de março de 1908

Solon

Ontem seguiu a mala do Quidinho, onde também há alguma roupa tua. Foram uns livros, mas poucos. A Saninha diz que tu os levaste quase todos.

Aqui estamos, todos, confiados na tua aplicação e bom procedimento, de modo a compensar, num ano bem empregado, o tempo que já tens perdido. Ainda é tempo de emendares a mão, e serás um estudante de valor, capaz de dar, mais tarde, um homem útil. Não desanimes, pois; nem nos desiludas.

Tem constância no estudo: atende respeitosamente aos teus mestres; e conta com a estima do teu pai e amigo

Euclides

Rio, 20 de março de 1908

Quidinho

A tua cartinha noticiando o resultado dos teus exames foi, como previste, verdadeira felicidade para nós. Agora — não deves parar mais. Prossegue com abnegação. Para isto não precisas sacrificar-te. Basta que tenhas constância e método, e que estudes nas horas de estudo e prestes toda a atenção nas aulas. Assim, ainda terás muito tempo para brincares; e chegarás ao fim do ano com toda matéria sabida. Mas não te desvies nunca deste programa: nem um dia sem estudar! Um pouco por dia quer dizer muitíssimo por ano.

A par disto não te esqueças nunca do respeito que deves aos mestres e da lealdade que deves aos teus companheiros.

Assim serás um homem, e terás sempre ao teu lado como o teu maior amigo o teu pai

Euclides da Cunha

Já recebeste a mala de roupa?

Todos de casa vão bem; e o Afonsinho já foi contar a d. Lulu e ao Edgar o teu triunfo. Bateu palmas! deu vivas…!

Por aí vês como vale a pena ser-se bom.

Continua.

Precisa fazer mais exercício de caligrafia.

Rio, 25 de março de 1908

Escobar

Escrevo-te muito rapidamente apenas para não demorar a resposta às tuas prezadas cartas. Não é tal utopia a minha ida. Irei muito breve, com o maior prazer, para abraçar-te e prestar pequeno serviço aos nossos patrícios desta zona. Mas quero que mandes um itinerário firme; que me digas se a estrada atual poderá ser aproveitada para o novo sistema de viação — ou se teremos de projetar uma outra — e se poderás encontrar-me no último ponto da estrada de ferro.

Amanhã ou depois te escreverei mais longamente acerca do outro, e grave, assunto da tua última carta.

É bem possível que eu possa efetuar a viagem durante a Semana Santa, ou logo depois.

Responde-me. Abraço-te

Euclides da Cunha
R. Humaitá 61

[Timbre: Secretaria das Relações Exteriores]

Rio, 8 de abril de 1908

Escobar

Ainda não posso marcar o dia da partida. Tenho trabalhos inadiáveis. Mas é certa a viagem. Convém apenas que o jornal daí não anuncie, porque é impossível marcar uma data. Prevenir-te-ei com 6 a 8 dias de antecedência. Bem sabes que só tenho a lucrar com ela — por todos os motivos: a minha maior aspiração seria deixar de uma vez este meio deplorável, com as avenidas, os seus automóveis, os seus smarts e as suas fantasmagorias de civilização pesteada. Como é difícil estudar-se e pensar-se aqui!… Que saudades do meu escritório de folhas de zinco e sarrafos, da margem do rio Pardo! Creio que se persistir nesta agitação estéril não produzirei mais nada de duradouro. Já fiz dois livros e não sei sair, [sic] e ainda sou o autor, dos quantos artigos depois dos Sertões! Precisamos conversar sobre estas coisas. Responda-me logo. Está aí o Adalgiso? Dê-lhe um abraço. Muitas saudades nossas a todos os teus.

Do Euclides

P. S. — Dize-me algo de tuas impressões acerca do maravilhoso angu político da Bahia.
Li neste momento que o Porchat será escolhido ministro do Interior de São Paulo.

Rio, 10 de abril de 1908

Escobar

Ontem te escrevi. Volto à carga, hoje — atraído pela tua carta de 5, agora recebida.

A minha demora depende apenas de um estudo que está ultimando-se. Creio mesmo que aí estarei ainda neste mês. Prevenir-te-ei com a antecedência que desejas.

Alegrou-me a tua carta. Já me ia esquecendo a candidatura (a minha candidatura!) onde a princípio vi apenas uma inspiração fugitiva da tua velha e inquebrantável amizade. A tua carta, porém, define-a com uma segurança que me impressionou.

Não resisto à perspectiva que me descerras! Sou o mesmo romântico incorrigível. A idealização submeto-a aos estudos mais positivos, envolvo-a no cilício dos algarismos, esmago-a no peso das indagações as mais objetivas — e ela revive-me, cada vez maior, e triunfante. Ora, nesta quadra de “grandes nivelamentos”, talvez tenha realmente uma função providencial o aprumo de uma inteligência rebelde e sonhadora. Penso até, num ímpeto de pecaminosa vaidade, que destruirei a esterilidade de um Congresso de resignados, tolhidos por toda espécie de compromissos.

Seja como for, a tua carta perturbou-me. E lembrando-me que dentro de um ano o laudo do árbitro argentino (na questão dos limites Peru-bolivianos) talvez nos lance na mais agitada das nossas controvérsias internacionais — considero o teu pensamento acerca da minha candidatura uma verdadeira inspiração.

Com efeito, qualquer que seja a minha desvalia noutros assuntos, poderei esclarecer em muitos pontos os debates que, inevitavelmente, se travarão no seio do Congresso. Pelo menos serei um franco-atirador contra os que arremeteram com a vigorosa política exterior do nosso único grande homem. Além disto… mas eu não acabaria se te dissesse quanto me ocorre relendo a tua carta. À viva voz conversaremos mais longamente. Há uma coisa, entretanto, que desinflue um pouco: o caso da Bahia demonstrou-nos, exemplarmente, as “fatalidades do poder…” Mas destas a tua lúcida e sólida experiência dos homens já deve ter-se esclarecido, e acerca dos melhores rumos para flanqueá-las.

Manterei a reserva nos pontos que indicastes. Diria, porém, reservadamente ao barão do Rio Branco o motivo essencial da viagem.

Um contraste: depois de responder a tua carta, irei responder outra — do príncipe d. Luís de Bragança!… Recebi-a há dias. Tem oito páginas maciças, escritas num português impecável e surpreendente. Não preciso dizer-te que ela não me fere a integridade republicana. d. Luís é sobretudo um escritor. Escreveu ao adversário político — ele mesmo o observa — obedecendo apenas às afinidades de temperamento. De qualquer modo é um compatriota que estuda as nossas coisas e ama o Brasil. E como, ao mesmo tempo, parece-me ter lucidez bastante para compreender que a missão de sua dinastia está completamente acabada, irei responder-lhe desafogadamente.

Adeus.

Abraço-te.

Euclides
R. Humaitá, 61.

Rio, 13 de abril de 1908

Escobar

Desejo-te felicidades. Conforme te comuniquei em cartas anteriores, a minha ida depende de trabalhos da Secretaria que podem ultimar-se já, e podem também delongar-se, ou complicar-se.

Assim não posso predeterminar desde já o dia da viagem.

Convém, por isto, que esclareças bem a tal respeito os nossos dignos patrícios aí.

Peço-te também (e isto fica entre nós) que impeças qualquer notícia dos jornais sobre a viagem. O artigo do Clamor, de 3, deixou-me com os cabelos em pé. Salva-se a sinceridade e o cativante entusiasmo do articulista — mas o tom geral é quase alarmante nestes tempos em que as intenções mais puras estão sujeitas aos piores comentários.

Mantive — e tenho nisto o máximo interesse — a reserva, que desejas também, acerca da candidatura. Convém que de tua parte faças também tudo para que ela não se revele. Escrevo-te, à carreira e atrapalhadamente, numa sala da Secretaria, onde três gárrulos diplomatas conversam desabaladamente sobre coisas maravilhosas de Paris e Viena.

Desculpa, portanto, o desalinho.

Por este correio chegaram três discursos. Distribuirei dois pelas pessoas que escolheres.

Lembranças a todos. Abraço-te.

Euclides

Rio, 20 de abril de 1908

Exmo. sr. barão do Rio Branco

Saúdo a V. Exa. e tenho a honra de enviar as inclusas notas acerca da linha limítrofe da Lagoa Mirim. Hoje telegrafei a V. Exa. Renovo, porém, os meus votos pelo prolongamento de uma existência tão diretamente ligada aos destinos da nossa terra e subscrevo-me com a mais alta consideração.

De V. Exa, admor. crdo. ator. abrdo.

Euclides da Cunha

Sr. Francisco de Escobar

Jaguari, 23 de abril de 1908

Jaguari — Estado de Minas Gerais.

Partirei daqui no dia 26 pelo noturno, ou no dia 27 pela manhã. Espero encontrar-te em S. Paulo.

Abraço-te

Euclides

Rio, 25 de maio de 1908

Amo. dr. Oliveira Lima

Uma viagem a S. Paulo, onde fui visitar o meu velho, fez que se demorasse a resposta à sua prezada carta que muito nos alegrou, a mim e a Saninha, pelas boas notícias que nos deu de d. Flora, de quem nunca nos esquecemos.

Creio — ou melhor, tenho certeza que a impressão causada pelos “Pan-americanismo” no ânimo de barão foi boa. Descobri-a, adivinhando. Desde que o juízo dele teria de interferir a reputação diplomática do Nabuco, compreendem-se as suas cautelas de homem fundamentalmente precavido. Mas na conversa, que provoquei a respeito do livro, distingui perfeitamente a aquiescência a suas linhas gerais. E a dedicatória lisonjeou-o. Não mo disse. Mas não há cautelas de diplomata que vençam à sutileza nativa de um caboclo.

Antes desta carta terão chegado aí os jornais relatando o estranho caso Jurumenha-Ruy. A conjugação dos dois nomes é de si mesma, deselegantíssima. Mas a carta com que o notável embaixador em Haia quis resolver o incidente, completou a catástrofe. Espantaram-se amigos, adoradores e adversários. Nunca se viu neste país tão belo espírito resvalar em tão despenhada cinca. A impressão foi terrível. De mim, estristeci-me. Nem faço outra coisa nesta nossa pobre terra. Lamento até que a natureza ingrata me fizesse, insidiosamente, basbirraro, — impedindo-me de agitar apavorantemente, por aí além, umas grandes barbas de Jeremias. Invejo-as no Alcindo, que pela “Imprensa” chora todas as manhãs sobre a decadência da Pátria e dos costumes políticos! debruçado — um Mário de óculos escuros — sobre as ruínas do Bloco

Felizmente a abertura do Congresso talvez determine algumas notas mais joviais, ou mais animadoras. Anteontem, por exemplo: Barbosa Lima, agitou rudemente o recinto, antes que os desapontamentos da dissidência baiana iniciassem, a oposição tempestuosa, que se espera. E esteve magnífico. O seu bom-senso inegável inspirou-lhe a atitude de franco-atirador no meio das patrulhas desordenadas, que hoje, na nossa política, preferem obedecer a alguns indivíduos, sem cogitar de ideias ou de princípios. Creio que o Barbosa exercerá uma função benéfica em semelhante tumulto. Temem-no. E como o seu ânimo é pouco maleável a conveniências pessoais, pode-se esperar algum resultado útil de sua ação impávida e vigorosa.

Escrevo-lhe à carreira. Os dias que passei fora, atrasaram-me. Não atente, portanto, no desalinho desta.

Não preciso dizer-lhe que continuo na angustiosa posição de comissário in partibus, à espera de uma reforma, ou de uma comissão. Num país em que toda a gente acomoda a sua vidinha num cantinho de Secretaria, ou numa aposentadoria, eu estou, depois de haver trabalhado tanto, galhardamente, sem posição definida! Reivindico, assim, o belo título de último dos românticos, não já do Brasil apenas, mas do mundo todo, nestes tempos utilitários! Julgo, entretanto, que hei de arrepender-me muito, mais tarde, desta vaidade… Em todo caso, se no correr deste ano não se me abrir de novo a trilha do deserto, terei de dar outro rumo à vida, para que os filhos, que vão crescendo, não paguem os juros de tanta imprevidência.

Peço-lhe que me escreva sempre. Prometo, doravante, responder logo e com mais vagar. Os amigos todos mandam-lhe lembranças, e não o esquecem nunca. O Veríssimo, o Machado, o Gastão, o Alfredo de Carvalho (que esteve ontem aqui em casa), o Derby, o Salvador (que talvez vá estudar comigo uma enfadonha questão de limites entre Paraná e Sta. Catarina) — todos vão indo bem.

Saudades nossas. Abraça-o, cordialmente, o
Euclides da Cunha

Rio, 27 de maio de 1908

Escobar

Recebi a tua carta — estimando que tivesse feito boa viagem encontrando todos os teus bons. Aqui vou indo com os meus mapas e velhos alfarrábios — até que se me abram outra vez as estradas perigosas do deserto.

Depois que partiste — pensei ainda melhor sobre o teu belo sonho — chegando mais uma vez a este resultado: abandonar de vez qualquer ideia da minha candidatura revolucionária. Ser deputado nesta terra é hoje uma profissão qualquer — para a qual decididamente não me preparei. Os homens repelem, com razão, o intruso. Além disto, absolutamente não desejo que te sacrifiques numa atitude rebelde — sobretudo considerando que será — fatalmente — um sacrifício inútil.

Sinto-me bem na minha posição — e seria para mim, deplorável, que os nossos grotescos pais da pátria imaginassem que eu invejo a deles.

Portanto, seu Escobar, passemos uma esponja sobre o nosso romance eleitoral. Acho que não deves abandonar a ideia de deixar essa terra. Não por causa do pobre Jaguari, com o qual simpatizo, embora nunca o tenha visto. Mas sim porque terás aqui melhores elementos para desenvolver a sua atividade. Não preciso dizer-te que farei o que em mim caiba para te auxiliar em qualquer pretensão.

Dê muitas lembranças ao dr. Castelo Branco e Adalgiso.

Saudades nossas aos teus.

Um abraço do

Euclides

P. S. — Contei ao João Luís, a magnífica tirada do maravilhoso Pacheco de Belo Horizonte — e o João Luís, o esperto, o inteligente amigo, garantiu-me que ele não disse semelhante coisa!!…

[Na ponta de uma seta apontando para mancha de tinta preta:]
Não repares: foi uma lágrima negra
que me espirrou dos olhos, em
cima da defunta candidatura!
Que a terra lhe seja leve…

Rio, 12 de junho de 1908

Quidinho

Desejo-te felicidades; e, sobretudo, que continues bem disposto a andar direitinho nos teus atos. Infelizmente ainda não tenho boas informações a teu respeito. Mas confio na tua nobreza de sentir, convencido de que fará tudo quanto puderes para não me dares desgostos. Notei que não estás na lista dos que obtiveram o banco de honra. Não importa! Continua a estudar com vontade e constância que obterás o prêmio merecido. Ama-te de boa vontade para atravessares corretamente este ano; para saíres aprovado em dezembro, de modo que possas divertir-te bem durante as férias. Diz-me se recebeste dois livros de Júlio Verne (que só deves ler no recreio). Responde logo, e recebe um abraço do teu pai e amo.

Euclides

[Carimbo postal:]

Rio, 26 de junho de 1908

Euclides da Cunha Filho

Aluno nº 373
Colégio Anchieta
Friburgo
Estado do Rio de Janeiro

Todos continuamos bem. Recebi a tua cartinha, ficando satisfeito com as boas resoluções, que revelas, de fazer os maiores esforços para conseguir situação vantajosa nos estudos. Que a isto se alie o respeito e a veneração aos mestres.

Não vamos até [aí] porque o Afonsinho tem passado mal com influenza. Iremos em setembro para assistirmos as festas. Diga isto ao Solon. Lembranças de todos. É preciso que escrevas daí ao vovô.

Receba um abraço do teu pai,

Euclides

Rio, 30 de junho de 1908

Coelho Neto

Elysée Reclus, Aires de Casal, Abbéville, Varnhagen, Pero Lopes, Capistrano (vai de cambulhada) e todos os fazedores de mapas, e todos os melhores cronistas do século XVI, são, com certeza, os sujeitos mais pacientes e sofredores deste mundo! Suportam-me. Aturam-me. Não se rebelam contra a minha curiosidade agressiva e insaciável! Agora ando às voltas com um espanhol de nome arrevezado… Em compensação vingam-se tranquilamente tirando-me o tempo para outros deveres.

Como vai o teu filhinho? Há mais de oito dias que me ocorreu ir pessoalmente fazer esta pergunta. Mas neste adestrar-me em pular por cima dos séculos, já perdi a noção do tempo. As horas andam-me às disparadas… Desculpa-me, portanto, a indagação tardia.

Trazia hoje um exemplar do Inferno Verde para você, mas o Artur Azevedo tomou-mo. Levarei breve outro. Manda-me pelo portador o que aí está.

Aguardo o prometido artigo sobre o livro do meu velho companheiro do tempo de “calças curtas”.

O Medeiros e outros escreverão; mas não dispenso o teu juízo.

Recomendações nossas a d. Gabi e a todos. Abraço-te

Euclides

Rio, 24 de julho de 1908

Osório Duque Estrada [ * ]

O nosso espírito é como a matéria, impenetrável.

Creio até que mais facilmente coincidirão dois corpos no mesmo espaço do que duas ideias, ou duas preocupações, no mesmo cérebro. A prova tenho-a agora na impossibilidade invencível, em que me vejo, para alinhar o preâmbulo, que prometi, destinado às primeiras páginas do teu belo livro.

Certo, para isto não me falta tempo. Eu o encontraria somando os meus quartos de hora vadios; mas em que pese à maior boa-vontade, e à sugestão maravilhosa do assunto, jamais eu conseguiria desenlear-me das linhas geográficas, que me manietam, para poder acompanhar-te, aforradamente, nessa peregrinação romântica em que contorneaste um largo trato do nosso litoral vastíssimo, e um pouco da nossa alma nacional, primitiva e rude. Além disto, eu planeei, embora numa síntese imperfeita, caracterizar o contraste até certo ponto providencial entre os dois aspectos preponderantes do espírito brasileiro — a refletir-se no binário constituído, de um lado, pela inteligência do Sul, mais bem aparelhada de um conceito orgânico da realidade; e de outro, pela fantasia poderosa dos nortistas, de onde lhes advém, essencialmente, o gênio poético incomparável. E ao explanar semelhante assunto, conjugando duas forças tão ao parecer discordes, mas de extraordinários efeitos em nosso
desenvolvimento histórico, não exigiria apenas muitas páginas, senão também um estado mental que absolutamente não lograrei possuir, enquanto perdurar este período agudo do dever profissional inviolável e premente. Há, na verdade, um abismo entre as tábuas de logaritmos, ou os cálculos massudos das coordenadas astronômicas, e as rimas encantadoras dos nossos patrícios sertanejos; e até materialmente, as vistas abreviadas na contemplação dos traços quase apagados dos velhos mapas, cegam-se, ofuscadas, diante dos esplendores daquela natureza deslumbrante. Daí esse renunciar a uma tarefa que me seria altamente honrosa.

Consola-me, porém, uma esperança: ficarei entre os que receberão o teu livro; e nessa ocasião vingar-se-á do cartógrafo descaroável e seco, o modesto escritor e

Teu velho amo. e admor.

Euclides da Cunha

Rio, 13 de agosto de 1908

Euclides

Não vou até aí para visitar-te, e ao Solon, porque a varíola está grassando na nossa rua, de modo que tenho de dar providências para salvaguardar a mamãe e os teus irmãos. O sr. Edgar caiu anteontem com a moléstia e está muito mal.

Se eu fosse até aí entre outras coisas te diria o seguinte:

Quero que respeites mais aos teus mestres — porque eles, aí, me representam; de sorte que não tens de envergonhar-te das repreensões que eles te dirijam. É um engano imaginares que a insubmissão seja própria de um homem verdadeiramente altivo. O homem verdadeiramente altivo é o que evita ver-se na posição de merecer uma censura. É o que deves não esquecer. E, dada a infelicidade de um erro, de que não estás livre, mesmo em virtude da tua idade, deves submeter-te às suas consequências. Sem esta resignação superior nunca serás um homem útil. Mas eu sei que és bastante inteligente para veres e avaliares o valor do que estou dizendo-te; e que farás o que em ti couber para satisfazer a minha vontade.

Dentro de três meses estarás em férias e se andares direitinho não te faltarão aqui divertimentos que compensem os teus trabalhos.

Estuda, pois; esquece ressentimentos sem base; respeita aos teus mestres; estima aos teus companheiros — de modo que sejas verdadeiramente digno do amor de tua mãe e de um abraço do teu pai.

Euclides

Manda-me dizer o que precisas (roupa etc.); e diz a mesma coisa ao Solon.

[Bilhete postal]
[Carimbo postal:]

Rio, 23 de agosto de 1908

Euclides da Cunha Fo

Aluno 373 do
Colégio Anchieta
Friburgo
Estado do Rio

Manda-me notícias tuas e, também, uma nota do que precisas. Estuda bem, comporta-te bem, como um menino digno de estima — de modo que tenhas direito a passar, aqui, conosco, as tuas férias, alegremente, no meio de divertimentos que não te faltarão.

Saudades de todos

Euclides

O sr. Edgard continua muito mal com a varicela.

[Postal]

Rio, 23 de agosto de 1908

Rangel

Pelos jornais já deves saber do franco sucesso do Inferno Verde. Ainda hoje o Correio da Manhã transcreve “Um Homem Bom”. Breve vou receber uma carta do nosso mestre Araripe Junior, a respeito do livro — que ele muito apreciou — e transcrevê-la-ei no Jornal.

Escrevo-te no Correio, a correr. Falta ½ minuto para fechar-se a mala! Perdoa-me sempre estas precipitações.

Abraço-te.

Euclides da Cunha

[Carimbo postal:]

23 de agosto de 1908

Solon da Cunha

Aluno 68 — médios —
Colégio Anchieta
Friburgo
Estado do Rio

Todos bons. O sr. Edgard continua muito mal.

Breve irão os colarinhos que pediste. Peço-te que faças um esforço maior no estudo de modo que possas atravessar o teu 3º ano.

Saudades de todos. Abraço-te.

Euclides

[Cartão postal. No anverso: Brasil — Exposição Nacional de 1908]

[Rio, 29 agosto de 1908]

[A Euclides da Cunha Filho]

Podes vir para ver a Exposição.

Previne-me do dia da partida.

Abraço-te.

Responsabilizo-me

Euclides

[No reverso:]
Euclides da Cunha Filho

Aluno nº 373 — Menores
Colégio Anchieta
Friburgo
Estado do Rio de Janeiro

[Cartão postal]

[Rio, agosto de 1908]

[A Euclides da Cunha Filho]

Recebi as notas pelas quais vejo que estás tenente em português e coronel em latim. Ficaria mais contente si se trocassem os títulos. Em todo o caso vejo que não estás perdendo tempo. Continua. Até ao fim do ano ainda podes fazer muito. Sobretudo deves comportar-te bem.

E a nossa velha Aritmética? Nem um posto? Nem mesmo o de alferes?

Todos bons. Abraço-te

Euclides

Rio de Janeiro, 1º de setembro de 1908

Dr. Oliveira Lima

O seu silêncio já me vale por um pesado castigo do meu descuido. Entretanto se lhe contasse os trabalhos que me deu, e a todos da casa, a doença de um filhinho, eu ficaria plenamente absolvido. Ainda hoje escrevo-lhe apenas para dizer-lhe que li no Estado e no Jornal os seus comunicados ao Congresso de Genebra — e não posso resistir ao desejo de enviar-lhe muitos e sinceros parabéns. Poucas vezes, com tão poucas palavras, se tem dito tanto do Brasil, não já para esclarecer o estrangeiro senão também para a grande maioria dos próprios brasileiros. O barão deve estar satisfeitíssimo. Digo — deve — porque não o inquiri a tal respeito — esperando que ele, espontaneamente, se manifeste.

Tenho muito assunto próprio para esta nossa conversa longínqua. Mas ficará ainda por outra vez. Ando tão atrapalhado com os tristes deveres de pater familias que só fui a Exposição uma vez! Fui porque o Bulhões e o Pedro Lessa transformaram-me em orador num banquete ao Assis Brasil. Lá estive; e disse algumas coisas sinceras acerca do digno compatriota, a quem estimo tanto quanto ao sr. — lamentando sempre que se tenham incompatibilizado dos espíritos de tal porte.

O Calmon quer — por força — que eu escreva alguma coisa acerca da Exposição. Quer um livro! Imagine esta sobrecarga em cima de tantas preocupações. Se o sr. encontrar algum livro aí capaz de me inspirar ao menos a distribuição dos capítulos fundamentais para um livro que tenha o título Brasil Econômico, peço-lhe o grande favor de mandar-mo logo. O pedido é talvez singular; mas explicável. Tenho até hoje andado tão arredio de tais questões que preciso de orientação de um mestre qualquer; e, certo, não o encontrarei nos Jucás da terra, massudos, emperrados e intermináveis.

A Saninha manda muitas saudades a d. Flora, de quem nunca se esquece; e eu, pedindo-lhe que transmita a ela os meus mais respeitosos cumprimentos, subscrevo-me sempre com verdadeira estima seu amo. obro. e admor.

Euclides da Cunha
R. Humaitá 61

P. S. — Escrevo no Instituto: o velho Fazenda manda-lhe saudades. Está ansiosíssimo pelo d. João VI!

Rio de Janeiro, 1º de setembro de 1908

Exmo. sr. Agustín de Vedia

Recebi a prezada carta de V. Exa. de 10 de agosto e, respondendo-a, cumpre-me desde logo agradecer a alta gentileza das expressões com que me distinguiu. Apressando-me em respondê-la, faço-o não só por não demorar esse agradecimento como também para manter uma correspondência que será para mim extremamente querida. Sou dos que pensam que as fronteiras no nosso belo e maravilhoso continente são mais expressadas geograficamente do que históricas, subordinadas em seu estado físico à altitude cada vez mais dominante da consciência sul-americana que as avassala.

Chamo consciência sul-americana, na ordem política, o critério naturalmente elevado dos países como os nossos, que sendo jovens na história, sem a predisposição de se apropriarem dos melhores efeitos da cultura secular da Europa — sem os inconvenientes de velhos antagonismos que tanto separam ainda as nacionalidades de além-mar.

Assim a civilização tem, entre nós, uma arena mais desafogada. Nas nossas terras virgens está a Pátria ideal dos espíritos que no Velho Mundo vivem incompreendidos ou vêem as suas melhores teorias destruídas pelo próprio jogo das rivalidades tradicionais que se não podem remover de pronto.

Ora, esta faculdade de podermos — nós, sul-americanos — aproveitarmos dos melhores frutos da evolução geral, sem carecermos de nos dobrar ao lastro de velhos erros ou preconceitos do passado, esta faculdade dá-nos uma capacidade maior de justiça, de paz e de liberdade — que se reflete bem nas páginas de Martín Garcia y la Jurisdicción del Plata, onde dois aspectos de uma controvérsia internacional de destacam tanto, a cavaleiro de estreitas preocupações patrióticas, à luz de um juízo verdadeiramente superior.

Nisto vejo o melhor significado moral daquele livro, bem destacado na forma literária impecável que o reveste. Pretende V. Exa. reunir em opúsculo os dois artigos que alinhei sobre ele; e esta notícia recebi com verdadeira satisfação. As notas que V. Exa. aditará irão dar algum valor a um trabalho que nada mais revela além da boa vontade de quem o elaborou.

Aguardo o folheto prometido, e peço a V. Exa. que acredite na mais elevada consideração do ato. amo. e admor.

Euclides da Cunha
Rua Humaitá, 61
Botafogo, Rio

Rio, 18 de setembro de 1908

Vicente

Recebi o teu cartão e fiquei contentíssimo com o prazo que me dás. Preciso de tempo — não para escrever — mas para ler-te, e compreender-te. Nunca imaginei que isto fosse tão difícil. Quero escrever sobre o poeta, conhecendo-o. O contrário fora alinhar frases inúteis. Mas para compreender-te preciso meditar mui demoradamente.

É o que faço — duplicando-me, e, às vezes, numa oscilação imensa em que passo dos cálculos das longitudes para os teus versos, ou das margens empantanadas da Logoa Mirim para a superfície desafogada e revolta do

belo mar selvagem
das nossas praias solitárias…
atirando
pela sombra das noites sem estrelas
a blasfêmia colérica das ondas…

Em todo caso será com a data de setembro que te mandarei o prefácio. Manda-me um exemplar da Rosa de Amor. Duas terças partes dos meus livros estão ainda encaixotadas; e no meio deles, ela. Não te zangues: lá estão também as melhores páginas da minha livraria errante, desde Shakespeare a Antero de Quental. Ao meu lado — enquanto não se fixar a minha posição no planeta — apenas os estúpidos livros profissionais.

A morte de Plácido de Castro abalou-me profundamente. Conheci-o e conversei-o largo tempo, quando viajamos juntos, no Purus, em 1904. Era uma alma desassombrada e heróica. Tinha talvez muitos defeitos. Mas não se pode negar excepcional valor a quem, de fato, dilatou o cenário da nossa história.

De qualquer modo, merecia outra morte.

Voltando ao nosso assunto: Para afeiçoar-me ao teu extraordinário idealismo, com a alta complexidade observada pela agudeza intelectual de Bittencourt Rodrigues — estou lendo Emerson.

É um training do espírito. Para desemperrar-me, o trapézio maravilhoso do maior dos metafísicos na Arte. Somente assim me libertarei por algum tempo da miserável ilusão científica, onde a hipocrisia da Verdade se mascara de fórmulas presunçosas e traiçoeiras. E felizmente sinto que a pouco e pouco se me vai despertando a vibração antiga dos bons tempos, quando eu não era obrigado a inscrever a vida universal em algumas linhas duras ou a avaliar em números.

Até breve, pois. Muitas recomendações a todos os teus. Saudades aos amigos.

Um abraço do

Euclides

P. S. — Já leste o Inferno Verde? Nesta pergunta há uma vaidade encantadora: é o livro do meu primeiro discípulo, alentando-me na convicção de que abri uma picada, levando a outros rumos o espírito nacional…

Que infinito prazer para um antigo engenheiro de estradas!

Rio, 20 de setembro de 1908

Alberto Rangel

Desejo ter notícias tuas mais amplas. De mim nada tenho que dizer. Há uma pasmaceira trágica neste país que esperneia, galvanizado, na Praia Vermelha e morre à fome nos sertões. De sorte que vivo mais aí do que aqui, — fugindo, através dos livros, para o seio de outras gentes.

Ao passo que você pode contar-me muita coisa da sua Vida, capaz de encantar a minha vida. Assim — conta-me por menor o teu intento, mal revelado no breve postal que recebi. Trata-se de um novo livro. Certo, prosseguirás na senda começada. Um desvio, meu Rangel, seria uma traição. O Inferno Verde agitou um pouco o sangue frio destes batráquios, porque é um parente mais novo e mais vivo dos Sertões. Disse-o o grande mestre Araripe Júnior; e o parecer do nosso único ensaísta, escandalizando furiosamente a cabotinagem covarde, encheu-me do mais justificado orgulho. Estás longe. Não podes avaliar a espessura do silêncio calculado que o teu livro rompeu. Mas para isto não contribuiu o prefácio, senão a visão superior de um Araripe, a alma vibrátil de um Felix Pacheco e a sinceridade de alguns raros plumitivos, que ainda realizam o milagre da posse de alguma seriedade neste meio. Quero que escrevas ao Araripe e ao Felix (Jornal do Comércio), agradecendo-lhes porque na realidade foram os dois maiores reveladores do teu grande valor literário.

Continuo a desempenhar mapas antigos… Até quando? Às vezes, penso que foi uma fatalidade o ter caído, como satélite, na órbita maravilhosa de um Imortal. Submeto-me. Mas ainda não sei se romperei a curva fechada dessa gravitação. Espero dentro de poucos dias — traduzido para o espanhol, em Buenos Aires, por Eleodoro Villazon, ministro boliviano, — o meu “Peru versus Bolívia”. Como vês, o estrangeiro entendeu que deve aproveitar aquele trabalho, — recebido com indiferença pelos patrícios…

A este propósito, uma ideia: quem sabe se eu não poderia lecionar a história sul-americana em Paris? No momento em que a civilização visivelmente se desloca para o Novo Mundo, não é, talvez, um pensamento muito ousado, este. Entrego-o à tua lucidez e melhor conhecimento das coisas aí. Podes talvez realizá-lo.

Escrevo-te, como sempre, a correr, e com a cabeça a zoar com outras coisas, sem a calma indispensável a uma conversa pausada e útil.

Desculpe-me.

Abraço-te.

Euclides.

[Cartão postal]

[Rio, 23 de setembro de 1908]

[A Euclides da Cunha Filho]

Todos bons.
Recebi tua cartinha.

Espero os melhores resultados de tua aplicação nos exames de fim de ano. Para isto quero que procedas bem e que aproveites os últimos messes estudando bastante. Assim passarás, aqui, as tuas férias com a maior tranquilidade e feliz.

Saudades

Euclides

Rio de Janeiro, 3 de outubro de 1908

Exmo. sr. dr. Agustín de Vedia

Recebi com sua prezada carta do mês passado os dois belos folhetos contendo Judícios sobre Martín Garcia, etc, entre os quais se incluem os artigos que escrevi no Jornal do Comércio.

Conforme eu já previra, achei-me admiravelmente com um realce de que não me julgo merecedor, nessa poderosa e magnífica língua castelhana que Carlos V elegeu para entender-se.

Pode portanto calcular a sinceridade com a qual lhe envio os meus maiores agradecimentos. A tradução é impecável. Repassa-a sensivelmente o espírito vigoroso de um escritor e através dele eu me sinto engrandecido. Os dois deslizes: dunas inconscientes ao invés de dunas inconsistentes, pag. 8, e 7 de março de 1839 ao invés de 7 de março de 1356 pertencem aos descuidos da revisão do Jornal do Comércio.

De qualquer modo, fiquei encantado com a extrema gentileza de V. Exa. e, sem querer abusar dela, e não podendo tolher meu desejo — ouso pedir-lhe que me mande mais seis exemplares a fim de atender a algumas pessoas que mos solicitaram. O Exmo. sr. barão do Rio Branco, a quem entreguei hoje um dos exemplares, certamente ficaria muito satisfeito se o recebesse diretamente de V. Exa.

Há dias enviei registrado a V. Exa. um volume do meu último livro Contrastes e confrontos, que tem o único valor de enfeixar artigos esparsos de três meses de jornalismo nos intervalos de minha engenharia trabalhosa.

Aguardo agora os livros que V. Exa. me prometeu, esperando ter oportunidade de pronunciar-me sobre eles. Não sei de mais elevada política do que essa de aproximação dos espíritos na América Latina. No dia em que nos conhecermos bem e as nossas inteligências se entrelaçarem, não haverá surpresas políticas que nos precipitem na guerra.

Persistamos, pois, meu distintíssimo confrade, na nossa afeição e recíproca estima, fazendo votos para que elas prefigurem a próxima solidariedade do pensamento sul-americano.

Com o maior respeito e profunda admiração, subscrevo-me. amo. atro. obo.

Euclides da Cunha

Rio, 5 de outubro de 1908

Exmo. sr. conso. Rui Barbosa

Na carta de V. Exa. que tive a honra de receber neste momento considera V. Exa. que o número de votos (16) da eleição de sábado, constitui exígua minoria, ante o de 40, da Academia; de sorte que, reduzindo-se de tal modo o significado da unanimidade daquela eleição, não se deve prover, definitivamente, à sucessão de Machado de Assis, sem que se dê espaço aos sócios ausentes para se manifestarem.

Acato os elevados escrúpulos de V. Exa., oriundos da sua habitual superioridade de pensar. Mas no caso vertente, julgo-me incompetente — sobretudo na situação meramente fortuita em que me vejo, para intervir sobrestando os efeitos de uma eleição que, além de seu traço rigorosamente legal, se impõe mercê de duas circunstâncias poderosas: de um lado porque é uma consagração, prevendo-se, logicamente, a mesma unanimidade se maior fosse o número de eleitores; de outro, a situação especial da Academia, consoante e pôs a V. Exa. aí, o sr. dr. Rodrigo Otávio, torna prejudicialíssima qualquer delonga na sua constituição definitiva.

Submetendo estas considerações ao claro juízo de V. Exa., tenho a honra de subscrever-me com a maior consideração

De V. Exa. comp. ato. amo. e admor.

Euclides da Cunha

Rio, 7 de outubro de 1908

Ludgero Prestes

Recebi a tua prezada carta de 3 do corrente; li-a com surpresa indescritível, verdadeiramente encantado; e não poderei traduzir-te a minha comoção ao ver aparecer-me quase homem — e homem na mais digna significação da palavra — o pobre jaguncinho que me apareceu pela primeira vez há onze anos no final de uma batalha. Mas na mesma ocasião associei-te a recordação de um amigo a quem deves muito mais do que a mim. O que fiz foi, na verdade muito pouco: — o trabalho material de livrar-te das mãos dos bárbaros e conduzir-te a S. Paulo. A minha ação verdadeiramente útil foi confiar-te a Gabriel Prestes. A ele, sim, deves a tua maior e até incalculável gratidão. Quero que me estendas sempre a tua mão de amigo — mas a Gabriel Prestes deve devotar, incondicionalmente, todo o teu coração. Ao lado da tua fotografia veio a tua carta e nesta vi refletir-se um espírito capaz de grande desenvolvimento. O modesto professor complementar de agora — iniciado, como foi, na vida, por um mestre daquele porte, há de subir mais alto.

Mas ainda que isto não aconteça, a tua posição atual, já é um triunfo. Continua, portanto, na trilha que te apontou um dos mais belos caracteres que eu conheço; e sempre que puderes manda notícias tuas a quem também se preza em ser teu amo. muito afetuoso

Euclides da Cunha

P. S. — Moro na rua Humaitá 61, e não preciso dizer-te que ali tens, francamente aberta, uma casa, tão hospitaleira quanto a minha rude barraca de Canudos.
Muitas saudades a Gabriel Prestes.

Euclides

Rio, 10 de outubro de 1908

Saint Germain en Laye — Place Thiers 2
Seine et oise — France
Rangel.

Sr. dr. Alberto Rangel

Já deves ter recebido o Jornal do Comércio, o Correio da Manhã, O Século, A Platéia e o Diário Popular (de S. Paulo) que todos tratam simpaticamente do Inferno Verde.

O acolhimento foi, em geral, entusiástico. O livro fará carreira. Além destas opiniões escritas, outras, verbais, existem, firmando o mais lisonjeiro juízo. O Século hoje começará a publicar as tuas correspondências. Já deves ter recebido carta do Brício (redator-chefe do Século) convidando-te para escrever e de acordo com as condições da tua última carta. Adeus. Manda-te apertado abraço o

Euclides da Cunha

[Union Postale Universelle
Republique des États Unis du Brésil
CARTE POSTALE]

[7 de outubro de 1908]

Regueira Costa

É ainda sob a comoção profunda da morte do querido mestre que mando ao meu bom e saudoso amigo esta carta, para agradecer-lhe em nome de todos os companheiros da Academia as generosas palavras que nos mandou em nome do Instituto Arqueológico de Pernambuco.

Elas como tantas outras que nos acudiram provindas dos mais remotos pontos da nossa terra demonstram que Machado [de] Assis deixou esta vida como desejávamos que ele a deixasse: dentro de uma grande e nobilitadora comoção nacional!

Realmente ele fora esquivo, tão tímido, tão retraído que a multidão parecia começar-lhe a partir de três ou quatro pessoas; tão recatado nos trato dos homens que reduzia em dúzia de entes queridos todo o gênero humano; tão aparentemente fugitivo à popularidade — teve os funerais de um triunfador.

E a sua morte — uma resplandecente apoteose — revelou, de golpe, que não foram perdidos os seus quarenta anos de vida literária — porque nas manifestações que a rodearam, e foram as maiores que ainda fizeram neste país a um escritor — se observou pela primeira vez entre nós, abalando todas as camadas sociais, o prestígio da magistratura superior do pensamento.

Deste modo o mestre foi um triunfador: não lhe bastou criar a golpes de talento a própria imortalidade, senão também que ao mesmo passo contribuiu para se educar o meio capaz de a compreender e de a conservar.

Com este pensamento consolador mando ao meu prezado amigo o meu agradecimento e as minhas saudades e peço-lhe que mande sempre notícias suas a quem se subscreve com a maior veneração.

Euclides da Cunha
R. Humaitá, 61

Rio, 13 de outubro de 1908

D. Agustín de Vedia

Desejava, meu eminente amigo, agradecer o gentilíssimo oferecimento do seu livro Constitución Argentina depois de o ler todo, mas não é trabalho que se realize de um lance. Exige meditação e vagar. Antecipo-me por isto — embora ainda esteja nas primeiras páginas — para não demorar o meu agradecimento. Além disto, as primeiras páginas lidas denunciaram uma tão grande afinidade entre os nossos modos de pensar que não posso ocultar a expansão do mais compreensível orgulho ao ver-me emparelhado com tão elevado espírito. E para demonstrar envio, com esta, um discurso que pronunciei em fins do ano passado, ante os estudantes de direito de S. Paulo, a propósito de um dos nossos maiores poetas, Castro Alves. Lendo-o, verá o meu preclaro amigo, (à página 13) que antes de o ter lido já eu pensava, por outras palavras, que “no se puede dar el nombre de Constituición a esses ensayos de estatutos e regulamentos màs ó menos diffusos…”, porque uma Constituição é quase sempre uma resultante histórica de componentes seculares acumulados no evoluir das ideias e e dos costumes. E acrescentava que, por isto mesmo, uma Constituição não se faz, mas descobre-se na conciliação das nossas novas aspirações e novos ideais com os esforços nunca perdidos das gerações que nos precederam. Assim critiquei, rapidamente, o nosso luxuoso código orgânico de 1822, feito par en haut por cima da nação. Vejo, agora, à luz de um critério mais brilhante, que andei acertadamente.

A sua última carta deu-me, também, a notícia cativante, a encomenda de Os Sertões. Mas preciso dizer-lhe que não o mandei espontaneamente, porque aquele livro bárbaro de minha mocidade, monstruoso poema de brutalidade e força — é tão distante da maneira tranquila pela qual considero hoje a vida, que eu mesmo às vezes custo a entendê-lo. Em todo o caso é o primogênito do meu espírito, e há críticos atrevidos que afirmam ser o meu único livro… Será verdade? Repugna-me, entretanto, admitir que tenha chegado a um ponto culminante, restando o resto da vida a descê-lo.

Não desejando tomar-lhe um tempo precioso, encerro esta, pedindo-lhe que continue a mandar notícias suas a quem é com muito apreço e verdadeira estima, seu ato. amo. e admor.

Euclides da Cunha
R. Humaitá, 61

Rio, 24 de outubro de 1908

Alberto Rangel

Demorei-me em responder-te por atender a coisas menos importantes, menos agradáveis, — e mais urgentes. Toda a nossa vida é feita deste tributo permanente às frivolidades que a malignam. Gastam-se dias de agitação urbana e inútil, para se ter uma meia hora de felicidade e paz, como esta. Aqui esteve o teu parente e amigo Arruda Câmara, que além das notícias tuas, me trouxe a belíssima lembrança de um barômetro registrador. De um lado esta alma de namorado da Natureza exultou, com o aparelhar-se de tão belo recurso para interpretá-la. De outro, o massudo espírito prático burguês, grunhiu; e grunhiu com alguma razão — porque não deves fazer dispêndios dispensáveis principalmente com amigos que se pagam bem da estima que te devotam apenas com a tua própria estima.

Obrigadíssimo — pela Revue du Mois cujos números — de janeiro a setembro. Já recebi. Considero-a a melhor revista da França.

Dois dias depois de recebê-la — apareceu-me em casa um quarentão de rosto pensativo e olhos profundos. Era o professor George Dumas. Calcula o meu espanto; e em que torturas andou o meu francês barbarizado. Passei com o grande sábio a hora mais ilustre da minha vida, com a felicidade de poder marcá-la com expressivo incidente: a revisão, feita pelo próprio punho dele, do seu artigo sobre Joana D’Arc, publicado no nº 29 daquela revista.

O Brício está muito contente com a tua colaboração — disse-mo ainda ontem na presença do Constâncio Alves, que também muito te aprecia.

Na carta anterior — assoberbado de uma onda de pessimismo, falei-te umas coisas estranhas. Uma cadeira de História Sul-americana, em Paris!… Ó romântico escandaloso e recalcitrante que sou! Felizmente são loucuras inofensivas e absolutamente passageiras.

Manda-me sempre notícias tuas. Tens mais tempo do que eu. Entretanto os teus cartões vão rareando. Protesto e abraço-te

Euclides da Cunha
R. Humaitá 61

Rio, 3 de novembro de 1908

Otaviano

Desejo-te felicidades, assim como à Adélia e aos sobrinhos.

A razão do meu silêncio é, como sempre, esta: muito trabalho e muita preocupação. Naturalmente se pode considerar isto uma desculpa. Não é. A verdade é que minha vida é muito outra do que se afigura. Mas não quero tomar-te o tempo com estas coisas. Há muito não tenho cartas do velho; mas com ele já me preveniu dizendo que o silêncio significaria não haver novidade, fico tranquilo. Em todo caso peço-te que me mandes notícias dele.

Infelizmente me é impossível ir agora até aí. Já não falarei nas despesas de viagem — mas em muitas outras coisas que me prendem. À parte o dever profissional, outras mais urgentes reclamam séria atenção: o Quidinho saiu do colégio porque os padres não podiam contê-lo; está agora aqui, em casa, e é um problema sério que tenho de resolver sem demora. O Solon vive a lamentar-se de moléstias — tornando-se cada vez mais difícil conservá-lo no colégio. Por fim, para remate destas coisas desagradáveis, a Saninha andou e anda muito doente associando a esta situação encantadora as contas do médico e da farmácia. Já não falo no Zeballos e outros diabos que me aterraram…

Não sei se aí chegou um folheto argentino em que se traduziu um artigo meu. Disse ao Laemmert que to remetesse.

Continuo na situação instável de comissário ou chefe de comissão in natibus, exclusivamente mantido pela amizade do barão, que é inalterável e da qual me sinto digno. Já não é pouco nesta terra, tão cheia de grandes homens pequenininhos… Mas um belo dia estarei a contemplar, de mãos vazias, a nossa esplêndida naturaleza. Ainda bem que me fortalece, hoje, uma plácida e augusta tranquilidade, que me fará sorrir, amanhã, diante das maiores contrariedades.

Estou fúnebre… Não te impressiones. A falta de assunto dá às vezes nisto. Manda-me notícias da Adélia. Por que não vens, ao menos por dois ou três dias, até aqui? A exposição vai encerrar-se — e tem alguma coisa digna de ver-se.

Senti a morte do Paulino Carlos.

Como vão passando os amigos?

Lembranças nossas a todos. Abraço-te

Euclides

P. S. — Alteraram a numeração das ruas. A minha casa passou de 61 a 247!
2º P. S. — Neste momento estive com o tio José que recebeu uma carta tua dizendo-lhe que o meu pai há muito me espera para vir comigo. Há engano. Ele escreveu-me há tempos dizendo-me que viria e até agora o espero. A minha ida agora é quase impossível. Não tens lido os jornais? Com as questões da Lagoa Mirim e outras, fora imprudência deixar o meu posto onde sou necessário sempre de um momento para outro. Se tivesse um lugar seguro e fixo, não vacilaria. Mas na posição em que estou — seria até uma loucura.

R. Humaitá nº 247

[Rio, novembro de 1908]

Dr. Estanislau Zeballos
Buenos Aires

Surpreendi-me vendo ontem as nossas relações exclusivamente intelectuais envolvidas na campanha solitária que V. Exa. está travando com imaginários antagonistas, em flagrante contraste com a harmonia nacional brasileira e argentina. Referindo-se V. Exa. à correspondência particular que hoje confessa haver propositadamente provocado para documentar-se, apresso-me em declarar que não receio tais documentos. Desejando vê-los explícitos, autorizo o Jornal do Comércio a publicar as cartas que me mandou. Completo assim a ação iniciada por V. Exa., que assim ficará inteiramente desembaraçado de quaisquer escrúpulos na publicação integral que desejo e peço das cartas que aí existem com a minha assinatura.

Euclides da Cunha

Rio, 5 de novembro de 1908

Otaviano

Aqui estou cativo da tua bondade. Realmente só o teu belo coração pode realizar o milagre de ver algum brilho nas linha[s] que uma amizade antiga me ditou para o livro do Vicente. Em todo o caso — obrigadíssimo!

Anteontem te escrevi —

Fiquei contente com a próxima vinda do velho — e sobretudo com a resolução dele de não me esperar aí.

É totalmente impossível a minha ida. Deves ter lido no Jornal, o terrível embrulho argentino, enredado pela alma danada do Zeballos, o grande cachorrão que tentou enlear-me nas suas traficâncias, ou transformar-me em Capitão Dreyfus do Ministério do Exterior!… Dei-lhe, como vistes, a pancada bem no alto da cuia, e o bruto (por um telegrama que me mandou, lamentoso) gemeu deveras! Mas são tão inopinadas as arrancadas do maluco que precisam estar atentos — mesmo os que como eu deviam estar garantidos pela própria desvalia. Além disto, de um momento para outro, o barão pode precisar de alguma informação urgente, que o meu afastamento perturbaria.

Diga isto ao meu pai. Noutra carta direi mais sobre esta vida triste de caboclo malcriado e teimoso no seguir uma linha reta no meio das contorções e tortuosidades dos canalhas felicíssimos que o rodeiam. Verás então que o teu nobre sacrifício — relegado numa cidadezinha do interior quando teu espírito e o teu caráter te apontam maior cenário — não é isolado. Também eu que já rompi 500 léguas de desertos, vejo, na minha frente os que até hoje só realizaram expedições aos gabinetes dos ministros!

É um contraste de tal porte que me está tornando espiritualista. Por força deve haver um au-delà onde se corrijam tantos absurdos e tanta miséria…

Adeus. Abraça-me a Adélia e os sobrinhos. Dispõe sempre do cunhado e amo.

Euclides
R. Humaitá nº 247

Rio, 6 de novembro de 1908

Vicente

Recebi a tua carta de 3 — e não preciso dizer que faço votos pela saúde de tua Mãe a quem envio respeitosos cumprimentos.

Quanto aos teus rins hão de voltar qao antigo lugar, obedientes à palavra segura do dr. Bittencourt Rodrigues.

Fiquei contentíssimo da tua superioridade ante a atitude de alguns poetas. Esses poetas são terrivelmente práticos

Emílio de Menezes é, como sabes, um ferocíssimo rimador de “epitáfios” pornográficos, ou sejam, umas quadrinhas corrosivas que aí andam coladas, como cáusticos, em algumas vítimas. E, os poetas acobardaram-se ante aquele Gavroche alto, gordo e pletórico, que bebe como três alemães somados. Aí está o segredo da surpreendente candidatura. Graça Aranha, por exemplo: é um sujeito largo de carnes e de cangote grosso — esplêndido para meter-se uma farpa. Que remédio senão agradar e envolver de blandícias a quem as vibra tão agudas e certeiras. Nem todos, porém, se dobram. Dia a dia vão crescendo os votos em torno do teu nome — e ainda não há perder-se a esperança do triunfo. Neste momento escrevi a Afonso Arinos (R. Bocador 24, Hotel Langham. Paris). Amanhã falarei ao Afonso Celso, se o encontrar; depois, ao Rui, ao Clovis etc.

O que afirmo é o seguinte: nos arraiais opostos há o espanto. Não contavam com a resistência. Já sabem que não cairemos da primeira arrancada. Já apelam para o segundo escrutínio.

Somos hoje, conforme já te mandei dizer, nove. Nove firmes, intocáveis. O número aumentará.

O nosso único contratempo foi a antecipação do Estado, que impediu a publicação do Jornal. Mas a exposição do livro na Garnier valerá pela melhor apresentação. É necessário, portanto, que não demores a remessa de demais exemplares (mesmo pelo Correio), escrevendo ao mesmo tempo à casa, acerca do que se combinou.

Escrevo-te às duas horas da madrugada, cabeceando.

Um favor: se puderes manda um exemplar ao meu cunhado — Otaviano Vieira, juiz de direito de São Carlos do Pinhal, que ficará contentíssimo com a lembrança.

Até amanhã. Lembranças a todos e um abraço do

Euclides
Obrigadíssimo pela dedicatória e […]. Não te escrevo […]
Rio Branco R. S. Clemente 104, e não 106.

[no alto da 2ª e 3ª páginas:]
— Será melhor mandares, diretamente, daí, registrados, os exemplares destinados aos jornais do Rio.

Rio, 13 de novembro de 1908

Amo. dr. Oliveira Lima

Não sei como lhe agradecer a remessa do livro de E. Prost, que vou ler atentamente, embora esteja ainda muito vacilante no aquiescer ao pedido de Calmon. Julgo-me sem competência para o assunto; sem competência e, o que é pior, sem entusiasmo ante esta Exposição, com E grande, a contrastar com a exposição permanente do nosso desfalecimento nacional. Em todo o caso o livro não será perdido; é um bom livro; claro, prático e sempre útil. Obrigadíssimo.

Recebi, sim, as Coisas Diplomáticas; reli-as com o maior prazer e posso garantir-lhe que elas causaram o melhor efeito entre os que nesta terra praticam o heroísmo de leituras sérias. Na verdade — para mim, o livro tem a valia de ser muito pouco diplomático; e mais uma vez aplaudo sinceramente a galhardia desassombrada de um espírito vivaz e enérgico a que não entibiam as artificiosas convenções de uma carreira que só sabe exprimir-se, verbalmente, por meio de meias palavras traiçoeiras, e graficamente, pelas cifras obscurecedoras. Também compreendo a sua diplomacia em Viena. A resolução que o meu amigo ali fez que se firmasse, vale por um Tratado, entre os mais presunçosos que por aí se citam. Num belo lance, saltando sobre as nossas fronteiras. Foi tão grande o triunfo que nobilitou o próprio fragmento de superfície européia onde nasceu a nossa história.

Como já deve saber pelos jornais a Academia não foi indiferente, aquela medida — o primeiro ato exterior de propagação da nossa língua — e avaliou-lhe o alcance numa moção lucidamente redigida por José Veríssimo. (A qual, entre parêntesis, ainda não lhe foi remitida por indesculpável desídia do secretário interino, eu!) Pouco importa que — oficialmente — não se tenha dado o devido relevo a um ato, que foi a expressão mais eloquente da nossa incorporação definitiva na civilização. Bem sabe que a gratidão oficial não vai além da órbita apertada dos satelitezinhos, que giram submetidos inteiramente às forças centrais dos grandes astros… Talvez por isto mesmo ando eu perdido numa parábola — perenemente indefinida, de cometa. Mas não prolonguemos este aspecto transcendental de psicologia astronômica e imaginosa…

Volvendo a terra — desejo saber se o sr. recebeu um belíssimo livro, Poemas e Canções, do mais robusto poeta que hoje temos, Vicente de Carvalho. O Veríssimo já lhe escreveu acerca da pretensão dele à cadeira vaga pela morte de A. de Azevedo, e eu venho reforçar o pedido daquele digno amigo. O candidato contrário, Emílio de Menezes, (Levantado por Graça Aranha!) e autor de uns sonetos, que não li, e de uns célebres “epitáfios”, horrorosamente escandalosos, que são o encanto da nossa moralidade desequilibrada, de mestiços. Julgo que o sr. não pode vacilar na escolha. Vicente de Carvalho, cunhado do nosso amigo Júlio de Mesquita, além do poeta, que avaliará, é um prosador magnífico; e liga a estes atributos a consciência superior de um juiz entre os que mais elevam, hoje, a magistratura em S. Paulo.

Já somos dez ao lado dele: Veríssimo, Araripe, Salvador, Lúcio, Rodrigo, Mario, Filinto, Garcia Redondo, Afonso Celso, e eu. Espero poder incluir breve o seu nome nesta lista, a não ser que algum compromisso anterior nos prive dessa felicidade.

Continuo na Secretaria do Exterior — na mesma situação de expectativa; e por vezes torturado de desconfianças, próprias desta índole de caboclo. O pequeno caso com o Zeballos — que certamente já conhece pelo Jornal — deixou-me alarmado. Com as suas alusões vagas e insidiosas ele talvez me pusesse na atitude dolorosa de Capitão Dreyfus do Ministério, se eu não tivesse a fortuna de o repelir a tempo. Em outra carta tornarei a este assunto. Citei-o apenas para que calcule os perigos da minha posição de Comissário in partibus, condenado à prisão numa Secretaria. Lá se vão dois anos de expectativa, e maravilha-me a paciência com que os tenho suportado, embora ela se explique pela própria oposição manifestada pelo barão do Rio Branco às minhas tentativas de seguir novo rumo. Não me arrependo disto. Mas, desgraçadamente, a reforma planeada, na Secretaria, que devera criar-me um lugar, ainda não se fez, e provavelmente não se fará. Enquanto isto sucede, crescem e multiplicam-se os filhos… Como traçar-se a linha reta da vida com tantas mãozinhas a nos puxarem pelas abas do casaco? Julgo, porém — e digo-lhe isto reservadamente — que não poderei continuar a ser vencido pelas comodidades desta situação até além do fim deste ano. Felizmente é vasta a nossa terra, e julgo que não precisarei de acolher-me sob as asas de nenhum amigo poderoso (O Calmon e o Carlos Peixoto, por exemplo) para amparar a família e prosseguir dignamente na vida. A minha resignação — é a de todos os que, tendo adquirido uma reputação, às vezes bem falsa, de impulsivos ou de inconstantes, não querem aumentá-la com atos que pareçam precipitados. Mas ela não será ilimitada.

Descambei com infinito mau gosto para este assunto tão pessoal, porque os amigos como o sr., elejo-os sempre incorruptíveis confessores desta vida.

Para ainda mais entristecer-me — partirá dentro de poucos dias para Assunción o Gastão da Cunha, que na enorme decrepitude desta gente, realizava ainda o grande milagre de ter espírito. Isto me faz o efeito de um despovoamento. Sinto-me cada vez mais solitário no meio de uns sujeitos, nos quais pouco mais distingo do que os acidentes geométricos e mecânicos de formas em movimento.

Ontem eu e a Saninha levamos muito tempo a conjeturarmos os encantos da existência tão outra que o sr. e a d. Flora devem ter aí. Falta-lhes, certo, a célebre naturaleza, mas é talvez uma felicidade o deixá-la deixando-se ao mesmo tempo a gente parasitária que a explora. Então eu considerei, melancolicamente, que a carreira diplomática, entre nós, tem a altíssima valia de ser uma carreira… para fora do Brasil. De mim faria tudo para poder dar esta corrida — embora modestamente, com[o] simples engenheiro, para o Uaupés ou Tacutu. Mas nem isto conseguirei.

Muitas recomendações nossas à d. Flora. Creia sempre no

Euclides da Cunha

P. S. Revolucionaram a numeração das casas: hoje assisto à rua Humaitá 247 (antigo 61)

Rio, 15 de novembro de 1908

Otaviano

Recebi a tua carta contando-me o lamentável incidente que impediu o meu pai de vir até aqui. Felizmente, pela mesma carta vejo que não houve mais consequência além daquele transtorno que nos privou de tê-lo aqui em nossa companhia por algum tempo. Eu — se não fosse a dolorosíssima, a torturante situação em que estou, dúbia e incaracterística, de engenheiro à disposição — já estaria aí.

Mas fora uma loucura. A licença só poderia obtê-la pela bondade de alguém e não em virtude da lei. Ainda não saí disto, por duas razões únicas: 1º — porque o barão continua a tratar-me com a mesma simpatia, e falta-me ânimo para (pela quarta vez!) observar-lhe a inconveniência desta posição; 2º — porque se eu tomar essa resolução decisiva e deixar a secretaria, não faltará quem reprove mais esse atestado de inconstância ou falta de persistência. Mas tudo isto constitui para mim, às vezes, uma tortura tão grande que sou obrigado a apelar para a tua sinceridade de amigo e até para a altitude do teu caráter. Diz-me com franqueza: deverei continuar numa posição, não prevista ainda em lei (embora o ministro até hoje me retivesse despertando-me a esperança do cargo que se criaria?) ou deverei, inflexivelmente, vencendo todas as solicitações, deixá-la?

Otaviano, responde-me logo, com a mais completa franqueza. Não confio em mim só para resolver este caso; posso estar iludido, ou posso estar exagerando inconvenientes que não existem. De qualquer modo apelo para vocês, sendo excusado pedir-te toda a reserva neste assunto.

Lembranças a Adélia e sobrinhos do

Euclides
R. Humaitá 247

Rio, 4 de dezembro de 1908

Vicente

O voto do Heráclito Graça fortalece o juízo que sempre fiz daquele belo espírito — que a idade e a gramática não conseguiram espancar. Deves estar satisfeitíssimo. Vencemos. Com os votos — que considero certo — do Oliveira Lima, Arinos e Domício, seremos 17 para a primeira refrega; com os do barão e Neto, 19 para a 2ª. Isto, sem contar outros que ainda podem vir. Há ainda isto: o Salvador de Mendonça comunicou-me, reservadamente, que conseguiu (afinal!) o voto do Jaceguai em teu favor — devendo somente ficar sob absoluta reserva até o dia da votação. Ainda mais: ontem, no bonde, o Paulo Tavares me garantiu que Sílvio não votaria no Emílio! Deste modo enquanto nós subimos eles descem…

Voltando ao Salvador: ele está encantado com o teu livro. Em conversa, na última sessão da Academia resumiu a sua opinião dizendo-me “Três ou quatro poetas brasileiros escreveriam o Em Fugindo ao Cativeiro; nenhum, o Pequenino Morto, porque neste poemeto, se alia à inspiração de Junqueiro o idealismo sombrio de Edgard Poe…” E na verdade eu julgo que, num prodígio de síntese, o valho romântico fez a mais verdadeira crítica daquela concepção encantadora. Ali se patenteia um momento crítico da tua inspiração, fundindo maravilhosamente os gênios mais representativos de duas raças diametralmente opostas.

Mais tarde, quando tivermos um crítico, um crítico à feição de Johnston, ou mesmo de Taine, ele quedará longo tempo absorto diante daqueles versos excepcionais, que partem de um modo tão violento os moldes vulgares da nossa poesia. Mas… evidentemente não serei eu este crítico. Sofreie-se, pois, o arrastamento da pena.

Revenons! O Medeiros nada disse quanto ao prefácio, talvez porque afeia a velha ortografia — a velha ortografia com a qual o ingrato arranjou a sua invejável notoriedade.

De qualquer modo fez bem. Quando considero os Poemas e Canções e aquele adminículo preambular, lembro-me sempre das velhas histórias das nossas amas — falando-nos dos tremendos caminhos cheios de calhaus e espinhos que conduzem ao céu.

Veremos o que diz o Neto. O Caboclo mangnífico vai montar o alazão da sua fantasia incomparável…

Até o dia 9 ou 10. Previna-me com antecedência. Continuo meio adoentado; mas não creio que as moléstias vinguem na aridez maninha deste meu organismo asperamente seco, de onde o próprio beribéri acreano já fugiu espavorido (sem remédio!) para nunca mais voltar.

Saudades do

Euclides

[Cartão]

Rio, 11 de dezembro de 1908

Francisco de Escobar
Jaguari — Sul de Minas

Escobar

Demorei-me em responder-te — e respondo esta laconicamente , porque te escrevo ainda de cama, mal restabelecido de um resfriamento. Ainda não tive o prazer de ver o cel. Lázaro, que esteve em casa na minha ausência. Espero, porém, vê-lo, hoje ou amanhã.

Logo que me restabeleça, conversaremos sobre outros pontos de tua carta.

Por hoje, apenas as saudades do

Euclides
R. Humaitá, 247 (antigo 61)

Rio, 22 de dezembro de 1908

Amo. dr. Oliveira Lima

Desejo-lhe muitas felicidades, assim como a d. Flora a quem todos de casa mandam saudades e lembranças.

Já lhe agradeci o livro, que recebi, sobre a Exposição belga?

Tenho atravessado dias atarefadíssimos, entre outras coisas com uma vistoria atrapalhada em que sou desempatador. Daí as irregularidades no corresponder-me com os amigos e o longo afastamento das cartas. Além disto, agravando a sobrecarga das preocupações, inscrevi-me para um concurso (de Lógica) no Ginásio Nacional, que se realizará em abril próximo. Fiz bem? Não será um mal tão viva volta de leme: passar de golpe de engenheiro a professor? Assim procede, porém, numa grande ânsia de dar uma estabilidade à vida, por mim mesmo, sem precisar incomodar os amigos poderosos.

Em carta anterior creio que lhe disse estar resolvido a exonerar-me da Comissão na Secretaria. Seria, reconheço-o agora, uma precipitação e um erro: 1º) porque estando prestes a aparecer o laudo argentino, na questão peru-boliviana, não desejo ficar estranho a quaisquer serviços que derivem da solução final; 2º) porque neste momento delicado da nossa política sul-americana, quando vacilam em torno do barão, algumas dedicações — não faltará quem visse no meu ato uma deserção. Contemporizo.

José Veríssimo comunicou-me o seu fato favorável a Vicente de Carvalho. Assim ainda mais se justificará a entrada na Academia de tão belo talento que é também uma alma vigorosamente sã e direita.

Adeus, meu ilustre amigo. Recomendações nossas à Exma. sra. Creia sempre no seu

Euclides da Cunha
Rua Humaitá, 247 (antigo 61)

Rio, 29 de dezembro de 1908

Vicente

Recebi ontem o convite do Grêmio; respondi hoje ao Teles, confirmando a aquiescência.

Continuo às voltas com a vistoria, agravada com os mapas da Repartição. Ao mesmo tempo estudo Lógica… Tudo isto é, afinal, ilógico. Você que já não tem as ansiedades de uma candidatura vacilante, bem pode calcular os meus aborrecimentos de candidato distraído pelas ocupações do ofício. Há no tal concurso tanto filhote bem amparadinho que certo não me aventurarei ao prélio desigual. Pelo menos resta-me bem fugitiva esperança — quatro meses antes do encontro. E como tão pouca esperança não descubro a verdade dos que entendem que

“Só a leve esperança em toda a vida
Disfarça a pena de viver, mais nada…”

Não desejando jogar as cristas com o poeta, passo adiante.

Vou hoje ao Jornal saber do Felix a razão de tanta demora na publicação do juízo sobre os Poemas.

Também eu, agora, acho o caso estranho e até meio desaforado.

Ontem ví o Emílio: barba de cinco dias, com muito fio branco; velho desalentado; e papada flácida… e tive pena.

Lembranças a todos e um abraço do

Euclides

[ * ] Nota do editor: carta serviu de prefácio ao livro O Norte (impressões de viagem), de Osório Duque-Estrada (Porto: Chardron, 1909).