Correspondência ativa de 1909

Cartas enviadas (por data)

A Francisco Escobar. Rio de Janeiro, 1º jan. 1909
A Reinaldo Porchat. Rio de Janeiro, 5 jan. 1909
A Oliveira Lima. [Rio de Janeiro], 10 jan. 1909
A Joaquim Antunes Leitão. Rio de Janeiro, 25 jan. 1909
A Vicente de Carvalho. Rio de Janeiro, 10 fev. 1909
A Oliveira Lima. Rio de Janeiro, 5 maio 1909
A Coelho Neto. Rio de Janeiro, 25 maio 1909
A Francisco Escobar. [Rio de Janeiro, jun. 1909]. [Bilhete postal]
A João Luís Alves. Rio de Janeiro, 10 jun. 1909
A Oliveira Lima. Rio de Janeiro, 18 jun. 1909
A Oliveira Lima. Rio de Janeiro, 28 jun. 1909
A Otaviano Vieira. Rio de Janeiro, 3 jul. 1909
A Otaviano Vieira. Rio de Janeiro, 5 jul. 1909
A Araripe Júnior. Telegrama. [Rio de Janeiro], 14 jul. 1909
A Oliveira Lima. Rio de Janeiro, 25 jul. 1909
A Lello & Irmão. Rio de Janeiro, 25 jul. 1909
A Otaviano Vieira. Rio de Janeiro, 3 ago. 1909. [Telegrama]
A Otaviano Vieira. Rio de Janeiro, 6 ago. 1909
A Pethion de Villar. Rio de Janeiro, 8 ago. 1909
A Gastão da Cunha. [Rio de Janeiro, 8 ago. 1909]
Ao Pai. Rio de Janeiro, 8 ago. 1909
A Otaviano Vieira. Rio de Janeiro, 8 ago. 1909
A Otaviano Vieira. Rio de Janeiro, 10 ago. 1909
A Otaviano Vieira. Rio de Janeiro, 12 ago. 1909

Rio, 1º de janeiro de 1909

Escobar

Recebi a tua carta.

Desejo-te e a todos os teus as maiores felicidades no correr do novo ano.

Recebi um convite do Grêmio da Escola Politécnica de S. Paulo para fazer lá, uma conferência, no dia 15 de fevereiro, p. futuro. Não poderás aguardar-me, então, naquela cidade? Conversaríamos longamente acerca do projeto que me levará ao Jaguari.

Responda-me neste sentido.

Todos de casa, bons. Continuo com muitos trabalhos. Daí o laconismo.

Adeus. Lembranças nossas a d. Francisca e filhos.

Abraço-te.

Euclides

P. S. ― Creio que breve me mudarei para mais longe, alto da Gávea ―; mas que logo isto suceda te participarei.

Rio, 5 de janeiro de 1909

Porchat

O teu cartão de festas veio demonstrar-me mais uma vez que valho menos que os amigos que tive a fortuna de adquirir. Como sempre, tiveste a primazia nesta manifestação superior do coração e do espírito.

Tanto pior para mim; tanto pior para este espírito eternamente distraído e instável, sempre a trocar não sei quantas idealizações impossíveis pelas melhores realidades da vida.

Peço-te que transmitas em nome de todos os meus sinceros agradecimentos a d. Maria Júlia e a todos os teus.

A ti, não preciso desejar felicidades. É coisa que possuis demais, tanto que com duas palavras num cartão impresso a repartiste magnificamente com o teu velho amo.

Euclides

Rio, 10 de janeiro de 1909

Amo. dr. Oliveira Lima

Demorei-me em escrever-lhe respondendo a sua última carta e agradecendo as delicadas lembranças do ano novo ― porque andamos todos em casa, durante muitos dias, às voltas com a última presa do filhinho mais novo. A sua carta, a carteira, as rendas e os livros chegaram quando atravessávamos o período agudo da crise; e não preciso dizer-lhe quanto nos consolou, no transe, o recordarmo-nos da afeição longínqua dos bons amigos ausentes. A Saninha ficou encantada com as rendas ― gentilíssima lembrança de d. Flora ― e eu com a carteira (embora considerasse, melancolicamente, que só durante os breves dias da travessia de Bruxelas até aqui, aquela carteira se veria unida a rendas ). Assim perpetrei o primeiro trocadilho desta vida ― muito diferente da sua aí conforme verifiquei pelo invejável horário que me mandou. Por ele vi ― e com verdadeira satisfação ― que o meu distinto amigo tem muito tempo para o exercício da sua atividade predileta do espírito. Ao passo que eu ― se tivesse tempo para pormenorizar os meus dias teria de os repartir não em horas, mas em minutos. Tão atrapalhados e cindidos de preocupações diversas, eles correm. Por exemplo: no meio dos quefazeres do ofício, tenho, agora, todos os quartos de hora foram entregues ao estudo da Lógica, porque me inscrevi num concurso desta cadeira, que se realizará em abril no Ginásio Nacional. Não tenho muita confiança num estudo feito sem método ou continuidade ― mas não posso deixar de aproveitar a oportunidade que se me oferece de adquirir uma posição fixa independentemente da boa vontade de outrem. Continuo na Secretaria, pelas razões expostas em carta anterior. E a este propósito agradeço-lhe muito os generosos conceitos da sua última carta.

O Vicente de Carvalho ficou satisfeitíssimo com o seu voto, reunindo-os aos que mais o nobilitaram. A vitória dele é agora inevitável; já tem 21 votos ao passo que o Emílio (candidato do Graça!) ― mal conseguirá 10; e o gal. Dantas Barreto, 4.

Não tenho visto os amigos. A partida do Gastão agravou o meu retraimento. Oscilo, sem variantes, da Secretaria para casa, e desta para aquela.

Há cinco ou seis dias o dr. José Carlos Rodrigues, dizendo-me que lhe havia passado ao sr. um telegrama de Boas Festas ― referiu-se incidentemente ao livro d. João VI noticiando-me que não demoraria em vir à publicidade. A boa nova, recebi-a com a maior satisfação; e espero ser dos primeiros a ler aquele livro.

O fim quase exclusivo desta é agradecer-lhe e a Exma. sra. d. Flora, em meu nome e no da Saninha as apreciadíssimas lembranças. Noutra carta, próxima, conversaremos mais longamente.

Creia sempre em quem é muito cordialmente seu

Euclides da Cunha

P. S. ― Amanhã ou depois procurarei o Calmon e transmitir-lhe-ei o seu recado.

Rio, 25 de janeiro de 1909

Ilmo. sr. Joaquim Antunes Leitão

Recebi a sua prezada carta de 31 de novembro do ano passado acompanhada de uma letra de 126$480 contra o sr. José de Melo Abreu ― e agradecendo a V. S. a correção de seu ato, cabe-me entretanto noticiar-lhe que a referida letra não foi aceita pelo sócio do sr. Melo Abreu, alegando que a quantia referida por V. S. não constava dos livros da casa comercial. Não se achando em S. Paulo o sr. Melo Abreu, tornou-se totalmente insolúvel a questão. À vista disso deixei aquela letra em poder do sr. Francisco Alves (Livraria Francisco Alves, rua do Ouvidor, 134) que aguardará até que V. S. mande diretamente substituí-la. Assim peço a V. S. que mande ao sr. Francisco Alves a letra correspondente.

Informaram-me de S. Paulo que o sr. Melo Abreu está atualmente em Estoril. Se não fora esta circunstância, estou certo de que não sobreviveria este contratempo.

Aguardando resposta urgente de V. S., e pedindo que na mesma ocasião se dirija ao sr. Francisco Alves, no sentido pré-citado, subscrevo-me sempre com a maior consideração e estima

D V. S. amo. ato. cro. obrdo.

Euclides da Cunha
Rua Humaitá 247 (antigo 61)

Rio, 10 de fevereiro de 1909

Vicente

Felicidades. O Quidinho continua doente. Fora uma temeridade e uma impiedade sair de casa. Anteontem escrevi ao silva Teles, expondo-lhe bem as coisas. Escrevi-te também pedindo-te para o avisares da minha carta, temendo a deficiência do endereço. Renovo-te hoje o pedido ― porque recebi uma carta do Porchat em que ele incidentemente me diz que me esperam aí.

Não te esqueças pois. Seria lamentável que me considerassem tão incorreto. E escreve-me algo a respeito. Tranquiliza-me homem! Imagina as atrapalhações em que vivo… Nem de propósito. Quem definirá um dia essa Maldade obscura e misteriosa das coisas, que inspirou aos gregos e concepção indecisa da Fatalidade? Às vezes julgo necessário um Newton na ordem moral para fixar numa fórmula formidável o curso inflexível da Contrariedade.

Mas, ponto. Sinto que vou escorregando por uma metafísica horrorosa abaixo, e cedendo ao declive não sei onde irei parar.

Adeus. Lembranças a todos.

Saudades

Euclides

Rio, 5 de maio de 1909

Meu digno amo dr. Oliveira Lima,
O motivo essencial da falta de minhas cartas é este: Andei perdido, dentro da Caverna de Platão… Conhece com certeza a alegoria daquele máximo sonhador ― de sorte que bem pode avaliar os riscos que passei. Volto à claridade embora ainda sinta a repercussão formidável das rixas intermináveis dos filósofos e os últimos ecos irritantes da algazarra das Teorias. Tudo isto quer dizer que me preparei para o concurso de Lógica. Mas surge um contratempo: a mesa examinadora (oficial) demitiu-se há um mês, e até hoje não foi possível organizar-se outra! De sorte que o problema se complicou singularmente. Ontem: serei feliz no concurso? Hoje:… e haverá concurso?

Nesta situação de espírito, não há alinhar-se ideias ― para uma conversa calma com um bom amigo ausente. Escrevo-lhe apenas para que o sr. e d. Flora não nos incluam entre os ingratos.

Uma notícia a correr: foram no dia 12 eleitos o velho Lafayette e Vicente de Carvalho e embora a do 1º seja eleição de uma vaga, o velho lutador merecia bem essa homenagem de seus patrícios.

Muitas e respeitosas saudações a d. Flora, e receba um abraço do

Euclides da Cunha
P. S. ― Não preciso dizer-lhe que transmiti logo ao Calmon o seu recado sobre a Flora Brasiliensis ― há dias ele afirmou que já tinha satisfeito o seu pedido. Muito agradecido pela sua lembrança a propósito das terras do alto Paraná. Logo que me desembarace do Kant, do Comte, do Spencer, do Espinosa (o mais maravilhoso dos malucos) e não sei mais quantos sujeitos que vieram a este mundo apenas para tortura e desespero do espírito humano ― logo que me veja livre desses felizes medalhões ― irei dedicar-me de corpo e alma à tarefa.

Mas ao falar nos sujeitos precitados, não tenho meios de conter uma expansão de sinceridade: que desapontamento, lendo-os detidamente! Até então eu rodeava-os de uma veneração religiosa. De perto, vi-lhes a inferioridade. Kant, sobretudo, assombra-me, não já pela incoerência (porque é o exemplo mais escandaloso de um filósofo a destruir o seu próprio sistema) senão pelos exageros apriorísticos que o reduzem. A minha opinião de bugre é esta: o famoso solitário de Königsberg, diante do qual ainda hoje se ajoelha a metade da Europa pensante, é apenas um Aristóteles estragado. Comte (que eu só conhecia e admirava através da matemática) revelou-se-me, no agitar ideias preconcebidas e prenoções, e princípios, um ideólogo, capaz de emparceirar-se ao mais vesânico dos escolásticos, sem distinção de nuances, em toda a linha agitada que vai de Roscelin a S. Tomás de Aquino. E quanto a Espinosa, surpreende-me que durante tanto tempo a humanidade tomasse ao sério um sujeito que arranjou artes de ser doido com regra e método, pondo a alucinação em silogismos!

Mas faço ponto. Não pararia mais se desse curso à onda de rancor que me abala diante desses nomes outrora tão queridos. Felizmente aí estão George Dumas, Durkheim, Poincaré, e na Áustria, o lúcido e genial Ernesto Mach ― almas novas e claras, que nos reconciliam com a filosofia. Adeus outra vez; e outra vez um abraço do

Euclides
Em tempo ― Recebi o seu recado, dado pelo Primitivo Moacir, e já escrevi ao Alves e ao Laemmert ― para que enviem os livros desejados.

Saiu ontem ― simultaneamente ― no Jornal e no Estado o seu notável artigo sobre Machado de Assis. Ainda estou num terço da leitura, mas já ajuizei dele o bastante para dar-lhe os meus parabéns pela precisão e lucidez com que considerou o inolvidável mestre.

Rio, 25 de maio de 1909

Coelho Neto
Um bravo pela tua delicadeza moral!

Seria cruel se eu recebesse à noite aquele telegrama…

Mas não seguirei o teu conselho. O revés desafoga-me: merecido castigo ao deslize de haver tentado deslocar um concorrente oficialmente mais amparado pelo Direito.

A minha reta, diante das vacilações do Governo, é esta: renunciar. É o que vou fazer já, por telegrama.

E sinto-me verdadeiramente feliz, porque nesta longa fox-hunting que principia no voto do Accioli e termina nas tendências simpáticas de alguns poderosos ― em tudo isto, descobri uma alma honesta e perfeitamente clara, a tua.

Logo ou amanhã te abraçará, agradecido, o teu

Euclides

[Rio, junho de 1909]

[Bilhete postal]
[Anverso:]
Destinatário: Ilmo. sr. Francisco de Escobar
Endereço: Jaguari ― Sul de Minas

Reverso:

Recebi as tuas cartas. Não respondi logo porque além de muitas atrapalhações e trabalhos, estive doente.

Vou indo melhor. Breve escreverei longamente.

Quanto ao concurso: nada ainda. Esperanças!

Adeus.

Abraço-te
Euclides

Mudei-me para a rua N. S. de Copacabana 234, onde estamos às tuas ordens.

Rio, 10 de junho de 1909

João Luís

Vim procurar-te para que me resolvas, com a tua habitual sutileza, uma crise. esta: não posso visitar o conselheiro Afonso Pena. Não calculas a série de intrigas pequeninas e revoltantes que se travam à roda do maldito concurso de Lógica…

Os sujeitos que propalam (para citar um só exemplo entre mil outros) haver eu levado Carlos à minha prova, com intuito de atemorizar a Congregação (!) ― não me bastando o privilégio de ser candidato do barão ― esses sujeitos não relutarão em garantir que eu fui pedir ou captar a preferência do presidente da República na próxima escolha que ele terá de fazer entre mim e o outro candidato.

Que fazer? Apelo para ti, pelo menos para que se não atribua à grosseria o que é simplesmente um escrúpulo.

Recado do velho amo.

Euclides

P. S. ― Depois de amanhã devemos estar na rua N. S. de Copacabana, 234.

Rio, 18 de junho de 1909

Sr. dr. Oliveira Lima

Felicidades! Muitas felicidades desejamos todos nós, de casa ao bom amigo e a d. Flora. Soube por José Veríssimo que estranhou a ausência de cartas minhas. Pudera! Imagine um modesto estudante de filosofia natural, enleado durante cinco meses nas fórmulas embrulhadas do que se diz simplesmente filosofia… A verdade é que o concurso, como se anunciou, era de Lógica ― e que esta, consoante a direção extremamente lúcida que lhe traçou Stuart Mill, está de todo a cavaleiro das indecifráveis divagações metafísicas. Sucedeu, porém, que o único discípulo do incomparável lógico, fui eu. O simples enunciado dos pontos que me tocaram (A Verdade, na prova escrita; a Ideia do Ser (!), na prova oral) é bem eloquente no delatar quão aberrados andaram os homens da verdadeira lógica. Eu não sei que ideia formariam da nossa cultura, os mais modestos normalistas da Bélgica, se soubessem desse estranho caso de desvio filosófico. Além disto, a cabala vergonhosa que reinou durante todo o ato ― onde se desencadearam as aspirações de 15 candidatos ― completou admiravelmente todos os deslizes.

Resultado: O 1º lugar dado a um estranho Tertius gaudet, um cearense que há vinte e cinco anos escreve uma interminável Finalidade do Mundo, que ainda ninguém leu.

Apesar disto, sei que o conso. Penna me escolheria.

Com o atual governo tenho poucas esperanças. Embora o barão seja, de fato, o dono da situação ― isto constitui mais um motivo para que eu não me aproveite da sua influência. Felizmente mudei-me para Copacabana (rua N. S. de Copacabana nº 23 H) onde estou numa situação maravilhosa… para ver navios! a ver navios! Nem outra coisa faço esta adorável República, loureira de espírito curto que me deixa sistematicamente de lado, preferindo abraçar o preto Monteiro Lopes.

Neste momento consegui um exemplar do d. João VI ― que vai ser a minha primeira leitura encantadora depois de tão longos meses de silogismos e abstratos devaneios. E se por acaso as atrapalhações desta vida me permitirem algumas horas tranquilas, direi sinceramente as minhas impressões. Doravante terei mais tempo para escrever mais de pausa e tranquilamente; então agradecerei ao meu saudoso amigo a extrema bondade com que me tem cativado. Por ora ainda vacilo nos últimos reflexos da agitada aventura em que andei.

Muitas recomendações a d. Flora. Um apertado abraço do

Euclides da Cunha
Rua N. S. de Capacabana 23 H

Rio, 28 de junho de 1909

Amo. dr. Oliveira Lima

Ainda hoje não lhe poderei escrever vagarosamente, como desejava. Ainda estou sob a pressão do célebre concurso ― porque o governo ainda não decidiu entre mim e o felizardo que me contrapuseram. Mais tarde hei de contar-lhe a história deste concurso onde apareceram dois sujeitos que propuseram a minha inabilitação, embora de envolta com a hilaridade geral do resto da congregação.

É o eterno conflito de Ramus e dos escolásticos recalcitrantes. Se o sr. por acaso leu a dissertação acerca do singularíssimo ponto que me coube para a prova de improviso (a Idea do Ser!) ― e que o Jornal mandou taquigrafar ― já deve ter um juízo claro da minha atitude e dos rancores que despertei. Não importa! Prefiro o ranger de dentes desses coitados aos seus apertos de mão. O sr. e mais alguns bem pouco amigos ― são os meus únicos juízes.

De qualquer modo estou tranquilo. Sinto mesmo esse plácido e magnífico bem-estar soberano de uma alma inteiramente a cavaleiro da fortuna, para a qual os gregos criaram o vocábulo Ataraxia. Digo-lhe mais: sou absolutamente indiferente ao que acaso o governo resolva. Andam nesta terra tão ao nível das maiores mediocridades as mais altas posições, que fora, na verdade, ridículo o entristecer-me com o não conseguir o modesto lugar de professor de Lógica… E deixemos de lado o desvalioso affaire.

O meu fim principal é dizer-lhe que terminei ontem a 1 1/2 da madrugada o 1º volume do d. João VI; e não resisto, absolutamente, à ansiedade de mandar-lhe o meu primeiro aplauso. O primeiro capítulo desagradou-me; todos os outros, porém, cativaram-me, surpreenderam-me e alguns, sobretudo aqueles onde revivem apagados aspectos do velho Rio de Janeiro, revelaram-me inesperados tons de estilo descritivo com que eu de todo em todo não contava. Deve compreender que dou, nestes dizeres, uma impressão incompleta ― capaz de ser retificada mais tarde. Mesmo o 1º capítulo, que a massa dos assuntos torna pouco atraente, talvez se mostre sob uma outra forma com a segunda leitura. Penso, por ora, o seguinte: se todo o livro progredir no crescendo do 1º volume, será inegavelmente, um grande livro. Infelizmente o Felix Pacheco, julgando-me tolhido pelo célebre concurso, encomendou a José Veríssimo o juízo crítico que aparecerá no Jornal. Digo infelizmente, para mim; porque o sr. realmente tem tudo a lucrar com a substituição. E como o Jornal (entre as suas inúmeras idiossincrasias) tem a de não inserir dois artigos sobre o mesmo livro (nunca entendi os motivos de tal resolução!) ― direi o meu juízo pelo Estado de S. Paulo.

Por ora, os outros jornais permanecem mudos; e não maravilha tal silêncio. Estamos num período de estéreis e exclusivas preocupações políticas. Só se leem ― verdadeiramente ― os entrelinhados do Jornal, onde se desenha com a maior fidelidade, neste triste momento histórico, a fisionomia real da nossa gente. Ninguém lê, ninguém escreve, ninguém pensa. A mofina literatura nacional traduz-se, naturalmente, numa vasta poliantéia, a 100 réis por linha, de mofinas. De todo absorvidos no presente, às voltas com os seus interessículos, estes homens, tão descuidados do futuro, ainda menos curam do passado; e certo não escutarão a grande voz do historiador que nos revela uma das fases mais interessantes deste último. Entretanto, quero crer que ainda haverá meia dúzia de espíritos capazes do esforço heróico de um rompimento com tanta frivolidade. E entre estes me alinharei.

Mostrei ao barão ― que atualmente está de todo preocupado com a situação política ― as últimas linhas do 1º volume ― certo de que elas lhe causariam, como de fato causaram, a mais lisonjeira impressão. E assim continuarei ― sempre que isto me for possível ― na tentativa de destruir sanáveis ressentimentos entre dois grandes espíritos, que a meu parecer devem caminhar unidos.

Vai-se prolongando a carta, que planeei rápida. E neste momento, ameaçando torná-la interminável, acodem-me numerosas considerações acerca da nossa instável e problemática situação política interna. Mas, temendo menos a infidelidade do correio, que a infidelidade dos meus próprios juízos ― inaptos a serem definitivos, ou rigorosos, neste largo balançamento de todas as opiniões ― vencerei o desejo que me arrasta para o nebuloso assunto. Além disto, vão-se-me alongando muito no passado os belos dias de temeridade e franqueza romântica. Já titubeio, considerando as pequeninas vidas que me rodeiam, me vacilo cheio de assombros no definir-me, sobretudo quando o definir-se a gente contra a mais poderosa corrente dos fatos, equivale a declarar-se inerme (apavorante calemburgo talvez destinado a profunda repercussão histórica).

Silêncio, portanto. Andam nos ares os mais estranhos imprevistos e qualquer opinião sobre as coisas não é somente precipitada; é imprudentíssima.

Entro nestas rápidas explicações porque o sr. muito naturalmente, ao receber cartas do Brasil, aguarda notícias sobre os fatos capitais que se desenrolam. Explico a minha abstenção. Noutra carta talvez consiga ser mais expressivo.

Não posso, entretanto, deixar de dizer-lhe que mantenho intactas as minhas velhas relações de sincera amizade com dois vencidos: Calmon e C. Peixoto. Ou melhor: frequento-os hoje mais assiduamente do que nos tempos de felicidade. E considero, melancolicamente, que disto talvez me resulte algum mal. Felizmente esta terra não tem mais nenhum lugar, ou cargo, capaz de desafiar a ambição de qualquer espírito mesmo medianamente aparelhado. Consola-me a certeza de que nada perderei, porque não há, por aí, coisa alguma que eu deseje adquirir.

Muitas e muitas recomendações de todos da minha casa à d. Flora; e aceite um apertado abraço do

Euclides da Cunha

P. S. ― Creio que em carta anterior já lhe comuniquei que assistimos agora à rua de N. S. de Copacabana 23 H ― onde me sinto admiravelmente ao lado de três vizinhos únicos cuja amizade desejo cultivar: o sol, o céu, e o mar.

Euclides

[Bilhete escrito a lápis]

Rio, 3 de julho de 1909

Otaviano

Escrevo-te de cama. Anteontem à noite tive uma hemoptise e continuo mal, ameaçado de outra.

Ao receber a tua carta e telegrama resolvi partir ― mas o médico, dr. Cunha Cruz, garantiu-me que seria esforço inútil porque eu não chegaria a S. Paulo.

No desespero em que o estado do velho me deixou, resolvi que a Saninha fosse com o Solon, de modo que se o velho melhorar possa vir com eles.

Deus queira que assim seja e se resolva a dolorosíssima situação em que me acho.

A Saninha e o Solon contarão do meu estado. Um apertado abraço no velho, na Adélia. Saudades do cunhado e amo.

Euclides

Rio, 5 de julho de 1909

Otaviano

A Saninha já deve ter exposto a situação dolorosa em que recebi a notícia do estado de meu pai. Estou muito e muito doente. Nada me dizem, de positivo os médicos; mas das proibições ou recomendações que me fazem deduzo outra coisa, além dos escarros de sangue que somente ontem cessaram ― não sei se definitivamente. E como um deles ― o Cunha Cruz ― já me aconselhou passar as férias na ilha da Madeira não será difícil concluir-se o diagnóstico.

Será verdadeiro? Não me impressiono ― Já dei o que tinha de dar. Entre as minhas bem poucas preocupações resta-me esta: desejo que o meu pai venha passar os seus últimos dias ao meu lado. Neste sentido conversei ontem com o Arnaldo que está pronto a ir buscá-lo desde que ele esteja em condições de vir ― e se resolva definitivamente a deixar essa fazenda, que nos últimos tempos só tem servido parqa amargurar-lhe a existência.

Peço-te, por isto, que me auxilies ― senão no sentido de fazer com que se liberte de uma vez da ilusão da Trindade, ao menos no de convencê-lo da necessidade imperiosa que ele tem de vir passar uma grande temporada aqui, deixando lá qualquer pessoa de confiança. Infelizmente não posso ainda viajar, para ir à viva voz demonstrar a conveniência da mudança. Peço-te, porém, que lhe fales por mim.

Num bilhete a lápis que te escrevi, e a Saninha levou ― creio que me referi a este ponto, e a probabilidade de vir o meu pai com ela e com o Solon. De qualquer modo, estamos entendidos; tenho o maior desejo que ele venha para a minha companhia; e não podendo ir pessoalmente buscá-lo, pedi a pessoa de toda a confiança que o fizesse ― Resta-me convencê-lo da necessidade da vinda, que a meu ver deve ser definitiva.

Não tenho grandes recursos; continuo ― felizmente ― a ser o mesmo heróico pobretão de sempre ―; mas agora, com um lugar fixo e a minha velha disposição pela luta, posso fazer a proposta que não devera fazer ontem, em que me submetia a todas as eventualidades ou hipóteses de comissões longínquas.

Lembranças a todos. Muito especialmente quero que me recomendes ao dr. Deolindo.

Um abraço do

Euclides

P. S. ― Por um telegrama da Saninha vi que não chegou o dinheiro (300$00) que ela levou para a viagem por isto telegrafei pedindo-te para adiantares a quantia de que ela carecer. Manda-me dizer onde poderei pagar aqui ― ou se devo restituí-lo pelo correio.

Rio, 25 de julho de 1909

Meu ilustre amigo Dr. Oliveira Lima
Não será, certo, nesta carta, escrita vertiginosamente, que poderei dizer todas as razões da demora no responder a sua última e prezada carta. Somente há oito se encerraram os meus dias agitados. Para defini-los bem eu teria de contar-lhe a história do mais atrapalhado, confuso e inconsequente dos concursos. Não fosse ele um concurso de Lógica!… E teria também de juntar artigos de Oliveira e Silva, de não sei quantos padres do “Hebdomadário Católico” de um tal Sentroul, jesuíta sanhudo que pontifica hoje em S. Paulo, e não sei mais quantos outros retardatários, que sem motivo algum filaram-se-me as pernas, com uma ânsia de morder, em que venceram todos os mastins de todos os fundos dos quintais! Mas seria dar, talvez, importância excessiva ao caso. Explicação: A causa de todo este desquerer foram as referências desatenciosas que fiz ao cardeal Mercier!

Quanto ao concorrente feliz – tranquilo Tertius gaudet, presenteado com o 1º lugar em toda esta desordem, o extraordinário Farias Brito, grande filósofo, único filósofo brasileiro (que o sr., tão sabido nestas coisas, não conhece!) embuchou serenamente na majestade nebulosa da sua metafísica. Mas não foi escolhido. Precisamente na véspera do dia em que o governo devia resolver sobre a nomeação (caso intricando porque se eu tinha de meu lado a simpatia do barão e de outros bons amigos, ele tinha nada menos que três bancadas, entre as quais a do Pará!) – precisamente naquele ocasião estourou o laudo Alcorta, e no meio dos telegramas, todos ansiosamente lidos, de Buenos Aires, passava, a relanços, o nome do Peru versus Bolívia, de cujo autor creio que também recebi eficacíssima proteção.

Nomeado, embora malqueira a metafísica – para demonstrar-lhe a justiça do ato, vou, no próximo vapor, fazer uma coisa simples: mandar-lhe os livros de Farias Brito.

O meu d. João VI mandei-o encadernar na Imprensa Nacional. Li-o; e o crescendo, a que me referi em carta anterior, manteve-se até ao fim. Vou relê-lo; e penso que até farei as pazes com o 1º capítulo, tão brilhantes e admiráveis se me afiguraram os demais. Não é minha esta opinião. Outros já lhe devem ter dito que o sucesso foi excepcional; e se o espírito nacional não tivesse tão escravizado a uma poderosa e nefasta preocupação de considerações pessoais – o efeito seria muito maior. A prova – e é uma prova maciça, tangível – é que o Briguet está encantado; e a alegria de um livreiro, nesta terra, diante de um livro de alto preço – vale dez artigos de crítica encomiástica. Eu espero que se aplaque um pouco a histeria política para dizer o que penso a respeito. O mesmo esperam Coelho Neto e outros. Se o sr. aqui estivesse, e visse, como vemos, que só se leem interviews ou intrigas de politicagem – compreenderia a nossa atitude. Não é o tempo que nos falta – é a serenidade para pensar em outra coisa além do alarmante assunto de todos os dias. Os mais indiferentes, como eu, estão contagiados do mal. Porque é uma doença, isto que aí está, nas ruas, na imprensa e nas câmaras, a agitar a nossa fraqueza irritável, preparando talvez os mais funestos desenlaces. Não se pode dizer tudo em carta. Sei, por intermédio dos amigos de S. Paulo, qual a sua opinião; e aplaudo-a. Não poderia ser outra. Mas por outro lado… No próximo vapor conversaremos mais longamente.

Renovei ao Francisco Alves o pedido para mandar-lhe os Contrastes e Confrontos e Peru versus Bolívia – que o sr. não deve devolver porque são seus.

Todos de casa enviam muitas saudades e lembranças a Exma. sra. d. Flora de quem a Saninha se recorda com saudades. Aceite um apertado abraço do

Euclides da Cunha
P.S. – A conselho médico assisto agora à rua de N. S. de Copacabana 23 H, ao lado de três grandes vizinhos incomparáveis: o sol, o céu e o mar.

Rio, 25 de julho de 1909

Aos srs. Lello & Irmão, Livr. Chardron. Porto
Recebi ontem as provas do livro e hoje as devolvo revistas. Como verão, a nova grafia da Academia continua a perturbar-me grandemente na revisão.

Devo aceitá-la por coerência; mas na realidade atraído por tantos afazeres, não tive ainda tempo de exercitá-la.

As minhas próprias cartas denotam desta desordem gráfica. Em geral obedeço por hábito. É feição antiga. Felizmente o revisor de V. Sa não procede mecanicamente, como quase todos; é realmente inteligente, e acautelado ― como o demonstram as últimas provas que recebi…

Euclides da Cunha

Rio, 3 de agosto de 1909

[Telegrama]

dr. Otaviano Vieira
São Carlos

Vou melhor mas não posso ainda sair adiante Saninha dinheiro precisar voltar pagarei aqui.

Saudações a todos

Euclides

Rio, 6 de agosto de 1909

Otaviano
Ontem te escrevi ainda de cama. Renovo hoje o assunto, melhor esclarecido pela Saninha que acaba de chegar. Assim está decidida a vinda do velho, senão definitivamente, ao menos por algum tempo.

Acordamos então no seguinte: ele que se prepare, de modo que possamos ir buscá-lo na ocasião oportuna. Diz-me a Saninha que as boas almas são-carlenses estranham ― comovidas ― (santas almas!) a minha pecaminosa indiferença, diante da moléstia do meu pai. Mas esta indiferença é uma fantasia dessas almas caridosas, sempre muito prontas a derramarem lágrimas sobre os nossos defeitos ― mas no geral cegas, surdas e mudas diante das nossas dificuldades. Felizmente estou bem certo de que terás esclarecido as coisas. Ainda convalescente do mais atrapalhado e traiçoeiro dos concursos (é uma história que te contarei mais tarde) diante de uma congregação na maioria comprometida com outro candidato ― é claro que eu não poderia seguir logo para aí ― no meio do ano ― quando o próprio ministro, ao nomear-me, me recomendava que ressarcisse tanto quanto em mim coubesse, o tempo que se perdera. Sobre tudo isto ― e exatamente na ocasião mais crítica, veio a débâcle pulmonar, cujos efeitos ainda estou sentindo. Como deliberar e viajar no meio de tanto embrulho? Quero que sejas o meu advogado perante os amigos desconhecidos, que tanto se alarmam com a secura dest’alma descurável.

A Saninha contou-me os desvelos e cuidados com que você e Adélia rodeiam o velho; e não me disse nenhuma novidade. Também nós os prestaríamos, se o destino não andasse até hoje a jogar-me como peteca por esse mundo além. Somente agora descansou, o bárbaro.

Quando o meu pai puder vir ― se por acaso eu não puder ir buscá-lo irá a Saninha; mesmo porque ele lucrará com a troca.

Resta-me pedir-te desculpas de não haver mandado a carta noticiando a minha mudança. (A carta escrita há dois meses, encontrei-a hoje no meio de umas cartas geográficas, sobre a estante! Como anda esta cabeça.)

Adeus. Um abraço na Adélia e no meu pai. Recomendações ao Deolindo e amigos.

Dispõe do

Euclides da Cunha

R. N. S. Copacabana 23 H

Rio, 8 de agosto de 1909

Meu caro Pethion de Villar
Antes de tudo peço-te que me desculpes perante o bom amigo Egas Moniz ― pelo dirigir-me de preferência ao poeta.

Rio, 8 de agosto de 1909

Gastão da Cunha
Escrevo-te com uma das mãos a bater um mea-culpa sincero, que entretanto não absolveria do pecado injustificável de deixar de responder à tua última carta. Mas, felizmente, não é à toa que és meu amigo: só me estimam almas generosas e altas que não podem ver pequenas tortuosidades ou desvios. A verdade é que, no próprio dia em que fui nomeado lembrei-me de telegrafar a duas pessoas: 1º, ao meu pai; 2º, a ti. E a intenção era tão boa que com certeza naquele dia o Diabo calçou uma avenida inteira…

Mas aqui estou a corrigir o erro. Infelizmente, não te poderei contar as peripécias do pinturesco concurso, insidioso “mundéu”, onde me debati, caindo como um tigre de Bengala. Pergunta ao Coelho Neto e ao Chaves (careca) ― (este “careca” estraga-me um pouco a frase, mas é preciso respeitar a verdade histórica) o que foi a minha arguição oral.

Comecei repelindo a atitude subserviente de examinando: e mau grado a posição vantajosa dos que lá estavam “para perguntar e não para responder” (como alegaram cautelosamente) mantive intactas todas as linhas de defesa que eu delineara com os ensinamentos do meu mestre Stuart Mill ― tão incompreendido pelos presunçosos filosofantes destes tempos…

Ao fim de duas horas de refrega, vi-os em plena debandada.

Depois veio a classificação, na qual dois avocati diaboli votaram pela minha reprovação! contribuindo para que galgasse o 1° lugar um pobre filósofo, cearense e anônimo, que há 25 anos (um quarto de século!) escreve uma interminável Finalidade do Mundo, estopante e indecifrável como o célebre Nova Luz sobre o Passado.

Vê agora como o Diabo as arma: estava o Governo vacilante na escolha do candidato (porque se a meu lado estava o barão, ao lado do outro estavam três bancadas, inclusive a do Pará), quando estourou o desarrazoado laudo Alcorta ― e entre os telegramas vindos de Buenos Aires apareceram vários noticiando a impressão que causara o meu Peru versus Bolívia, nas rodas diplomáticas etc. Assim o concurso de lógica tinha um remate adequado. E a nomeação se fez. Sinto que estou confuso e atrapalhado, escrevendo-te às carreiras. Além disto, egoísta, só a tratar deste pequeno inútil.

Não tenho há três meses notícias da tua família. Sei que está boa porque me encontrei há quatro dias com teu sogro na Avenida. O velho está desempenado e lépido e acha, como eu e todos os teus amigos, que devem ficar ainda algum tempo aí ― sobretudo na quadra atual para terem “jus” a uma legação melhor, iniciando ao mesmo tempo a tua carreira de uma maneira eficaz e brilhante.

O nosso barão continua triunfante e açambarcador das simpatias nacionais. A sua habilidade tem feito prodígios entre as duas facções que o disputam ― como duas sultanas histéricas disputam o lenço de um sultão. E ele tem realizado o milagre de não desagradar a ambas. Que assim seja até o fim.

Adeus, meu querido amigo.

De ora em diante te escreverei por todos os vapores.

Aí vai um apertado abraço do
Euclides

Rio, 8 de agosto de 1909

Meu Pai
Desejo que o senhor continue melhorando.

A Saninha diz que combinou com o sr. ir ela buscá-lo no fim deste mês, ou princípio de setembro.

Mas se por qualquer circunstância o sr. deseja vir antes peço dizer-me logo, para providências.

Há três dias encontrei-me com o comendador Ferreira Chaves a quem dei notícias do sr. Ele interessou-se vivamente por elas; disse-me que ia escrever-lhe; ficou muito satisfeito quando eu lhe disse que o sr. viria breve. Também dei esta notícia ao dr. Gomes, que é sempre um bom e digno amigo.

Eu estou muito melhor, e creio que obedecendo ao regime que marcaram nada terei a temer. Diz o Otaviano em carta, que passando o cabo dos 40 não mais temer a tísica. Mas a estas palavras animadoras se opõe o juízo dos médicos, que me acham muito predisposto ― até por influência hereditária ― e insistem nas maiores recomendações para evitá-la. Na dúvida opinarei pelos últimos. A verdade é que tenho abusado da minha resistência, e preciso parar.

Ainda não recebi cartas do sr. Continuo mandar as minhas para São Carlos.

Peço-lhe que dê muitas lembranças ao Otaviano, Adélia, ao dr. Deolindo. Aceite saudades de todos e abraço do filho e amo

Euclides

Rio, 8 de agosto de 1909

Otaviano
Respondo a tua prezada carta de 7 ― agradecendo-te as palavras animadoras ― embora recordes, melancolicamente, que já estamos na reserva. Para você, elegante e faceiro, o caso é desastroso; para mim desarranjado e revolto, é uma nesga. Estou na reserva desde os vinte anos, quadra em que me assaltou o pessimismo incurável com que vou atravessando esta existência no pior dos piores países possíveis e imagináveis. Talvez não acredites: ando nas ruas desta aldeia de avenidas, com as nostalgias de um inglês smart perdido numa enorme aringa da África Central. Nostalgia e revolta: tu não imaginas como andam propícios os tempos a todas as mediocridades. Estamos no período hilariante dos grandes homens-pulhas, dos Pachecos empavesados e dos Acácios triunfantes. Nunca se berrou tão convictamente tanta asneira sob o sol! Na Câmara e no Largo de S. Francisco, os mirabeaux andam aos pontapés. Em cada esquina um O’Connel; em cada degrau de Secretaria um salvador das instituições e da Pátria. Da noite para o dia surgem não sei quantos imortais… É asfixiante! A atmosfera moral é magnífica para batráquios. Mas apaga o homem. Já […] vezes penso em romper a fundo com tudo isto: dois ou três artigos desabalados e rijos ― tomando a frente de toda essa sujeira […] canalha com o meu rubro desassombro de caboclo sanspeur et sans reproche. Mas contenho-me. Lembro-me do único Homem que reúne o resto das esperanças do país, e ao lado do qual ainda estou, porque ele ainda não me dispensou. Mas no dia em que não houver mais trabalhos para o cartógrafo da Secretaria do Exterior… que desabafo! Como eu açularei nervosamente no rastro destas raposas insaciáveis a matilha feroz dos meus adjetivos implacáveis!

Ponto, porém. Deves estar espantadíssimo! Absolutamente não contavas com esta tirada do ex-rebelde da Praia Vermelha… Nem eu. Escapou-me no final de um artigo de fundo, hipócrita, como a maioria dos que por aí se imprimem. E como a tua carta coincidiu com a leitura dele ― apanhaste uns restos de rajada.

Tornando ao assunto principal da tua carta: a Saninha diz que combinou com o velho em buscá-lo nos princípios de setembro, depois que ele ordenar as coisas na fazenda. Diz também que ele prefere a ida dela à do Arnaldo. Mas pela tua carta deduzo que ele quer vir já. Se assim for manda-me dizer logo, para providenciarmos.

Ontem estive com o comendador Chaves, que se mostrou muito interessado pela saúde do meu pai, a quem vai escrever. Também o dr. Gomes e Erico manda-lhe muitas recomendações, desejando vê-lo, breve, aqui.

Já iniciei o meu curso de Lógica no ex-Ginásio Nacional (hoje Pedro II graças a um lance de histeria republicana). Curso principiado no meio do ano ― serei obrigado a sapecar a matéria para preencher o programa. Mas levo-o por diante numa grande convicção pedagógica. Ao menos direi aos meus alunos a simples e límpida lógica de Stuart Mill, ao invés de transcendentais tolices metafísicas. Diz-me a consciência que serei mais útil do que o funambulesco filósofo (diz-se ele o único filósofo brasileiro!) da Finalidade do Mundo, que há 25 anos escreveu um livro que ninguém lê e estuda uma lógica que ninguém entende.

Muitas lembranças ao dr. Deolindo. Saudades à Adélia e sobrinhos. Escrevo-te deitado ― não por doença, mas porque é domingo e como não posso ainda andar muito, aproveito a ocasião para pagar o meu silêncio anterior. Daí os exageros desta carta, a que darás todos os devidos descontos.

Abraça-te cordialmente o

Euclides
[À margem:]

A Saninha disse-me que o sr. Ellis aí contou uma porção de coisas (que lhe revelara grandes dificuldades na vida, etc.). Embora eu já esteja fatigado de repelir as torpezas desta pobre humanidade ― não tenho ânimo em mim que não declare: o sr. Ellis mentiu. E peço que não dês ouvidos a tais indivíduos com os quais falo de ano em ano, e fortuitamente.

Rio, 10 de agosto de 1909

Otaviano
Recebi a tua carta de 5, que muito me satisfez dando-me notícia das melhoras de meu pai ― assim como da resolução em que ele está de vir já parar aqui. À vista disto falei com o Arnaldo que está pronto a seguir à primeira voz. Se, entretanto, ele não puder vir já e sim em princípios de setembro, irá a Saninha, ou irei eu se os médicos suspenderem a proibição de viajar.

De qualquer modo estamos entendidos; e eu aguardo a tua resposta, ou a do meu pai, para resolver.

Ulteriormente responderei a outros tópicos da tua carta.

Muitas saudades e lembranças a meu pai, Adélia e sobrinhos.

Abraço-te cordialmente

Euclides

Rio, 12 de agosto de 1909

Otaviano

Anteontem te escrevi. Renovo hoje o velho assunto: mande-me dizer quanto antes se o Velho quer vir já, ou em princípios de setembro. No caso irá o Arnaldo buscá-lo; no 2º eu ou Saninha. Esta última alternativa provém do meu estado de saúde, que me impossibilita dizer desde já se poderei ou não ir naquela ocasião. Sei que aí não se acredita nisto; sei ainda que umas boas almas são-carlenses estranham e criticam muito o que chamam a minha indiferença ou ingratidão. Paciência… A pobre humanidade é frágil, e para os seus juízos despropositados e injustos resta-nos a instância superior da consciência, que realmente nos absolve ou condena. Infelizmente não é de todo verdadeiro o teu otimismo. O haver dobrado o cabo melancólico dos 40 não remove inteiramente o espantalho da tísica.

A prova está em que somente hoje deixei de acordar com febre; e estou plenamente certo de que se abandonar o regime que me impuseram não resistirei ― tal o depauperamento e miséria orgânica a que cheguei. Felizmente me sinto cada dia melhor e penso que em menos de um mês terei readquirido a robustez antiga.

Não tenho cartas de meu pai. Acompanhará ele também o falso conceito dos espontâneos e numerosos juízes que aí tenho? Neste caso peço-te que sejas o meu advogado.

Muitas saudades a todos e escreve logo ao teu amo

Euclides