Contrastes e confrontos

Quem vai com Humboldt através das serras e das gentes do Peru, observa um paralelismo interessante.

Copiam-se, refletem-se. A história, ali, parece um escandaloso plágio da natureza física. Busquemo-la em todos os tempos e em todas as datas — com o arqueólogo nos baixos relevos dos templos desabados, com o geólogo nas páginas unidas dos extratos que se dobram nas vertentes abruptas, ou com os cronistas coloniais nas emocionantes narrativas dos “conquistadores” e veremos um baralhamento de contrastes em que os fatos sociais recordam um decalque dos fatos inorgânicos, repontando, reproduzindo-se e traduzindo-se entre dois extremos: os Andes e a civilização dos incas, os terremotos e o Peru dos “pronunciamentos”.

Vai-se da terra que se retalha e se esboroa presa nas redes vibrantes das curvas sismais que rudemente a sacodem, à impotência imóvel da cordilheira equilibrada numa ossatura rígida de dolerito; do império patriarcal, e esteado numa teocracia inflexível e do regime das castas, à república revolta e doidejante, intermitentemente abalada pela fraqueza irritável dos caudilhos.

Não se disfarçam estes contrastes e estas identidades. Eles lá estão na faixa litorânea amaninhada pelas dunas e na montaña feracíssima, que as matas ajardinam. Numa e noutra se fronteiam um passado imemorial quase maravilhoso e um presente indefinido e deplorável. Fronteiam-se e repelem-se. Destacam-se tão incompatíveis que o viajante, sem que o perturbem os agrupamentos incaracterísticos que hoje ali se agitam, pode reconstruir nos seus aspectos dominantes toda a idade de ouro dos aimaras.

Segue a princípio pelo deserto salpintado de oásis, que se desata de Arica e Tumbez, e encontra para logo, nas huacas subterrâneas, a própria sociedade antiga: múmias ressequidas, abertos no escuro das colônias tumulares os olhos de esmalte, num protesto eloquentíssimo contra a destruição.

Mais longe, nas cercanias de Pachacamac, as ruínas dos primeiros santuários do Sol: longas galerias de muros derruídos culminando as serranias, e os primeiros baluartes arremessados na altura nos cimos que sobranceiam o Pacifico, denunciando um tino incomparável nos dispositivos para a defesa do território.

Prossegue até Trujillo e desponta-lhe um traço superior de caráter utilitário da administração incaica; as acéquias e os diques que canalizavam ou abarreiravam os rios, alastrando em largas superfícies as redes irrigadoras, permitindo culturas opulentas em lugares onde jamais chove, ou um trecho muitas vezes secular, de estrada incomparável, investindo com os primeiros esporões da cordilheira… Subindo-a, vai num crescendo a imagem retrospectiva do passado.

A paisagem torturada da serra, em que a luz crua do trópico não anima as cores apagadas da flora rarefeita, e os horizontes se abreviam no escarpado dos pendores, não impressiona. Suplanta-a a ruinaria da civilização lendária: É a princípio a mesma estrada que se pisa: uma avenida do Equador ao Chile, torneando as encostas em cortes na rocha viva, transpondo despenhadeiros em pontes suspensas que precederam de séculos às da nossa engenharia pretensiosa, e evocando nos traços remanescentes dos postos militares, nas estações intervaladas, nos parques escalonados em que se encerravam os lamas velocíssimos, os tempos gloriosos em que lhe batiam no calçamento de silhares o tropear dos exércitos, o galope dos correios céleres e a marcha das longas caravanas dos mercados tranquilos.

Ladeiam-na fortalezas e templos.

De Cajamarca a Cuzco não há talvez um quilômetro onde uma pirâmide truncada, um obelisco, um pilar, um pedaço de muro, um pórtico desabado, um bloco de granito polido com desenhos em relevo, e um renque de monólitos, e uma cariátide monstruosa de porfiro azulado — não recordem a raça extraordinária que, sem conhecer o ferro, se afoitou a cinzelar a pedra, e com uma frágil ferramenta de bronze criou uma escultura monumental em blocos de montanhas.

Em Ollantaytambo os santuários talharam-se na rocha viva.

Pisace é um contraforte de cordilheira e uma fortaleza; coroam-na sete píncaros, sete baluartes; ninguém lhe marca o ponto em que as ousadias do homem cederam às grandezas naturais, porque com lhe derivarem as encostas em taludes fortes, as plataformas circulantes que lhas dominam em sucessivos patamares multiplicaram-se, cobrindo-as inteiramente com a imagem exata de uma assombrosa escadaria de gigantes.

A estas brutalidades da força aliaram-se, maiores, os prodígios da inteligência. A natureza que lhe negava as chuvas, o inca contrapôs a preocupação científica do estudo persistente do clima, ainda hoje tão bem denunciado no aquarium de pedra do observatório higrométrico de Quenco.

Foi buscar os mananciais eternos dos nevados; captou-os; dirigiu-os em aquedutos, ora ajustados às vertentes, ora, subterraneamente, varando serranias; ou então — pormenor que é um recuo considerável das origens da hidráulica moderna — lançados de uma a outra serra em vasos comunicantes desmedidos. Por fim, nos lugares onde não encontrou o cerne rijo da terra para erigir os seus monumentos, inventou os aparelhos poligonais ciclópicos: uma arquitetura para desafiar o cataclismo…

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Mas não previu o espanhol do século XVI.

A raça forte e pacífica, que dava os primeiros lugares aos inspetores agrícolas, aos engenheiros, que lhe abriam as estradas e os canais, e aos arquitetos que lhe alteavam os templos, foi colhida à traição pela brutalidade militar da Espanha.

Fez-se na história a cópia servil de um daqueles terremotos que no Peru subvertem cidades em minutos.

A unidade da raça autóctone, disciplinada e integra, marchando com um método tão seguro que lhe permitiu tão altos cometimentos, contrapôs-se a desordem de uma exploração em larga escala e o dispersivo dos caracteres de imigrantes atraídos de todos os países.

Porque o peruano é, ainda mais do que nós, uma ficção etnográfica.

Em 1873 Charles Wiener contemplou, numa das ruas de Lima, uma galeria de quase todas as raças — o branco, o negro, o amarelo e o bronzeado e todos os cambiantes destas cores do bambo ao cholo, do mulato ao chino-cholo — completada por uma separação absoluta de classes, do cooli, que aluga a liberdade, substituindo o negro, ao estrangeiro que ali chega, explora adoidamente a terra e vai-se embora, ao quíchua, espalhando na tristeza incurável a doença de sua gens que está morrendo… No alto o neto dos conquistadores, o quase hidalgo, em que pese a mestiçagem, o condutício dos caudilhos, o irrequieto industrial das revoluções, o que se diz peruano, guardando, intacta, a velha altivez espanhola, quer a estadeie entre as opulências das haciendas, ou a levante, mais impressionadora, revestido de andrajos, e mendigando intimamente como se fosse um gentil-homem da miséria…

Ora, toda essa gente — à parte as culturas nos pontos em que se desenterram as acéquias dos antigos — de um modo geral se aplica aferradamente, numa agitação ansiosa, aos únicos trabalhos que lhe não implicam as disparidades de um temperamento e as divergências de esforços: saqueia a terra e o passado. Arrebata-lhes o ouro, e a prata, e os nitratos, e o guano, e as múmias, e as pedras dos templos.

Desbastam-se as costas e as ilhas, degradam-se os flancos das serranias, profanam-se as pirâmides funerárias, e revolvem-se as huacas, que, às vezes, valem pelas melhores minas, bastando notar-se que com um quinto de ouro de uma delas se construiu Trujillo…

Não se define o repulsivo dessas pesquisas lúgubres e dessa indústria macabra, que tem como matéria-prima arcabouços disjungidos e profanados, ou velhos sudários em pedaços.

Nada caracteriza melhor o parasitismo, o apego as tradições, a falta de solidariedade e o desequilíbrio da energia das gentes que abarracaram por aquelas bandas.

O passado é um despojo.

Aproveitam-no na sua forma estreitamente utilitária. E neste apropriar-se a esmo, a sociedade revolucionária e frágil vai dando uma expressão tangível ao contraste que a apequena ante a sociedade morta: vêem-se então mesquinhos pardieiros desequilibradamente erectos sobre embasamentos ciclópicos; ou cidades, e citemos apenas o Huamachuco, construídas com os blocos arrancados dos templos: uma triste projeção horizontal de velhas fachadas, um acaçapado estiramento de grandezas repartidas em casas de tetos deprimidos e paredes espessas, e uma melancólica arquitetura de ruínas…

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Ora, esta atividade, que um sem-número de causas físicas e sociais tornaram impulsiva, agitadíssima e estéril, derivando em desfalecimentos e arrancos, rebate-se na existência política do Peru. Daí a monotonia irritante dos pronunciamentos, os desastres das guerras infelizes e o tumultuário das perigosas sucessões presidenciais, que ora se fazem, progressivamente, à americana, a revólver, ora com o requinte feroz daquele suplício dos dois usurpadores Gutierres — expostos, oscilantes, nas torres da Catedral de Lima, e despenhados depois, do alto daquelas duas Tarpeias barrocas para as fogueiras vingadoras acesas na Plaza de Armas

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Confrontados estes contrastes, acredita-se quase que as incursões peruanas, neste momento exercitadas nas fronteiras remotas do Alto Juruá, se traduzam como uma retirada, uma tendência para abandonar a estreita e alongada região onde uma nacionalidade, cujos antecedentes étnicos prefiguram mais elevados destinos, jaz bloqueada entre o maior dos mares e a maior das cordilheiras, sobre um solo batido pelo desequilíbrio dos agentes físicos e em contacto com um passado que tanto tem influído na sua desfortuna.

Realmente, no levante, transmontada a segunda cadeia dos Andes, desdobra-se a natureza estável — sem catástrofes e sem ruínas — guardando intactas as forças criadoras, à espera da componente prodigiosa do trabalho, e oferecendo, no remanso das culturas, na disciplina da atividade adstrita a longos esforços consistentes, e na sugestão permanente da própria harmonia natural, a situação de parada que sempre faltou aos peruanos para que se lhes despertassem os notáveis atributos, até hoje suplantados por uma combatividade, que é uma fraqueza e é um anacronismo. Mas esta só poderá engravescer, criando-lhes maiores desditas, se, ressurgindo sob um novo aspecto, for encontrar novos alentos nas arrancadas dos caucheiros que estão prolongando na devastação das grandes matas, um longo, um antiquíssimo tirocínio de tropelias.

CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/contrastes-e-confrontos/contrastes-e-confrontos. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O País, Rio de Janeiro, 21 maio 1904. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. In: Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 56-60.