As incursões peruanas não denunciam apenas a avidez de alguns aventureiros doidamente ferretoados da ambição que os arrebata às paragens riquíssimas dos seringais. São mais sérias; são quase um expressivo movimento histórico, desencadeado com uma finalidade irresistível. Não as determinam apenas as energias sociais instáveis e dispersivas da república sul-americana mais malignada pela caudilhagem, senão as mesmas leis físicas invioláveis de toda aquela zona.
Realmente, quem quer que contemple através da visão prodigiosa de Humboldt, ou da clara inteligência de C. Wiener, todo o trato de terras que vai de Arica a Trujillo, constrito entre o Pacífico e os Andes, compreende que os destinos do Peru oscilam entre dois extremos invariáveis: ou a extinção completa da nacionalidade suplantada por uma numerosa população adventícia, que assume todas as modalidades do alemão industrioso ao cooli quase escravo — ou um desdobramento heroico para o futuro, uma entrada atrevida na Amazônia, uma rush salvadora às cabeceiras do Purus, visando do mesmo passo uma saída para o Atlântico e um cenário mais e mais fecundo às atividades. Não há escapar às aperturas do dilema.
A posição prejudicial dos Andes cria ao Peru, como à Bolívia, regimes que se combatem: um litoral estéril que mal se alarga em dunas ondeantes, separado, por uma cordilheira, da porção mais vasta e mais exuberante do país. Na estreita faixa da costa, onde se adensou o povoamento e se erigiu a capital, e pulsa toda a existência política da república, estira-se um esboço de deserto; na montaña alpestre do levante e mais longe nas planícies amplas, cobertas de florestas estupendas, por onde derivam, remansados, os últimos galhos dos tributários do Amazonas — pervagam, errantes, as tribos dos quichuas inúteis.
Deste modo a natureza criadora e forte do oriente se desentranha em riquezas incalculáveis diante das vistas incuriosas do selvagem — enquanto no ocidente as praias e vales areentos mal revestidos de uma flora tolhiça onde rebrilham os cristais nitrosos e se derrama em largas superfícies a lava endurecida, vão a pouco e pouco molificando o temperamento dos descendentes diretos dos “conquistadores”.
Realmente, ali, naquela tira litorânea e primeiros recostos andinos, que formam, afinal, toda a geografia política do Peru, a sociedade não se irmana à terra, desatando-lhe as energia recônditas e nobilitando-a pelas culturas. Faz uma aliança com os terremotos: devasta-a.
Enquanto estes lhe devoram as cidades, e lhe desviam os rios, e a retalham de fendas em que se enredam, baralhadas, as curvas sismais dos cataclismos — ela despedaça os flancos das montanhas em procura de ouro e de prata; perfura, escava e esquadrinha as dunas onduladas onde repousa há séculos, nas huacas subterrâneas, a sociedade espectral dos incas mumificados com as suas incalculáveis riquezas, perquire e tala os descampados na faina estonteadora da exploração dos nitratos de sódio; e desbasta as costas e as ilhas na pesquisa do guano, que exporta para o estrangeiro sem notar que a natureza previdente lhe oferece ao lado da esterilidade do solo os adubos preexcelentes que a destroem.
Mas ainda nesta atividade febril e parasitária, desencadeada à ventura, o peruano não está só. Em qualquer rua de Lima, já o notou um observador, se ostenta a mais numerosa galeria etnográfica da terra: do caucásio puro, ao africano retinto, ou amarelo desfibrado e ao quichua decaído; e entre estes quatro termos principais, as incontáveis variedades de uma mestiçagem dissímil do mulato de todos os sangues, aos zampos e cafuzos, aos cholos que lembram os nossos caboclos, e aos interessantíssimos chino-cholos em cujos rostos se fundem as linhas capitais de quase todas as raças. Assim, ao desordenado das atividades se prende o conflito inevitável dos temperamentos. A vida decorre sem continuidade, sem a disciplina resultante de uma harmonia de esforços que extinga o dispersivo indispensável dos ofícios; e a sociedade incaracterística, sem tradições definidas — porque a invade e a perturba, intermitentemente, a grande massa de estrangeiros que a explora e abandona — parece refletir na ordem política o desequilíbrio das forças naturais que lhe convulsionam o território, oscilando, dolorosamente, sacudida pelos terremotos e pelos “pronunciamentos”. Ninguém lhe lobrigou ainda um aspecto estável, um caráter predominante, um traço nacional incisivo. Perenemente em começo, nesse agremiar os tipos adventícios de todos os quadrantes, vai absorvendo-lhes e refletindo-lhes por igual os atributos superiores e os estigmas. Quem lhe deletreia os fastos segue através de uma vertigem, e sofre o constante saltear das emoções mais opostas emergentes num baralhamento de sucessos que se entrechocam díspares. Depois de sentir o mesmo espanto de Darwin ao ver em 1832, na catedral de Lima, desdobrar-se sobre a tropa genuflexa a lúgubre bandeira negra de uma revolta inesperada, completando um Te-Deum — sente a frívola alegria de Offenbach ao divisar a mantilha rendada da Perichole que tanto justificou a ironia popular (perra e chola!) pela vida desmandada na corte pretensiosa do antigo Peru dos vice-reis.
Passa do trágico ao repulsivo, do assombroso ao grácil.
Ora, este jogar de contrastes oriundos em grande parte do viver aleatório de uma sociedade que parece estar apenas abarracada no território alongado que prolonga o Pacífico, não escapou aos estadistas peruanos. Nascem daquela localização prejudicial sobre um chão maninho encerrando riquezas ocasionais que dia a dia decrescem, que se não reproduzem e dão ao trabalho improdutivo de as descobrir um triste aspecto de pilhagem — confundindo na mesma azáfama tumultuária a aglomeração irrequieta em que há todos as raças e não há um povo…
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A salvação está no vingar e transpor a cordilheira. Ali ao menos há a sugestão dominadora da civilização surpreendente dos incas: a estrada de duas milhas distendida de Quito às extremas do Chile, lastrada pelas neves eternas, contorneando encostas abruptas em releixos de rocha viva, alcandorada em pontes pênseis sobre abismos, e estirando nas planuras as calçadas eternas de silhares unidos com cimento betuminoso; e os velhíssimos baluartes pré-incaicos feitos de montanhas inteiras arremessando-se nas alturas em sucessivos patamares ameados; e a ruinaria dos santuários do Sol com os seus aparelhos ciclópicos de blocos poligonais de pórfiro brunido; e os longos aquedutos do monte Silva, em cujos canais subterrâneos, perfurando as serras, se espelham esforços de uma engenharia titânica…
Depois, descidas as vertentes orientais da primeira cadeia dos Andes, transposta a montaña e a segunda cordilheira — a terra exuberante é de medida, prefigurando nas grandes matas a mesma hiloe amazonense.
Nesta região, tão outra, está — pela implantação do trabalhador e pelo equilíbrio da existência agrícola a redenção daquelas gentes que possuem os melhores fatores para um elevado tirocínio histórico.
Mas, ao mesmo passo que lhes despontam estas esperanças, extingue-lhas a mesma cordilheira com o seu largo tumultuar de píncaros e de pendores impraticáveis num alude vivo de muralha, que lhes trancam quase por completo as comunicações com o litoral. De fato, o Pacifico, ainda que se rasgue o canal de Nicarágua, parece que pouco influirá no progresso do Peru. O seu verdadeiro mar é o Atlântico; a sua saída obrigatória o Purus. Sabem-no há muito os seus melhores estadistas: a expansão para o levante traduz-se-lhes como um dever elementar de luta pela vida. Revelam-no todos os insucessos de numerosas tentativas buscando libertá-los das anomalias físicas que o deprimem. Revelou-as desde 1879 C. Wiener:
Os peruanos aquilatam bem a importância enorme que teriam as estradas, ligando os afluentes navegáveis do Amazonas e do Ucayali às cidades do litoral; fizeram todos os esforços para executá-las porque lhas impõem a lógica e o interesse; mas parece que a sua força de vontade é menor que a constituição física dos autóctones.
De feito, contemplando-se diante de um mapa a faixa costeira entre Pachacamas e Tumbez, nota-se um como diagrama daquelas tentativas desesperadas e constantes.
Foi a princípio, no extremo norte, a linha férrea de Paíta e Piura, procurando os tributários setentrionais do Solimões; depois, próxima e ao sul, uma outra, de Lambayaque a Ferenafe: ambas estacionaram, trilhos imersos nos areais da costa. A terceira, lançada de Pascamayo à estação terminus de Cajamarca, e a quarta partindo de Salavery, pouco ao sul de Trujíllo — buscavam as linhas de derivação do Ucayali: embateram ambas de encontro às fílades espessas e aos dolentos e quartzos duríssimos das cordilheiras. A quinta, a admirável estrada de Oroya, dominou parte da serrania, mas ficou bem longe do seu objetivo essencial no transmontar as últimas cordas de serras, varar pelas planícies do Sacramento e alcançar o Purus.
Esta é expressiva: mostra como o traçado do grande tributário do Amazonas, em cujas margens contendem agora os flibusteiros, norteia de há muito a administração daquela república.
Por outro lado, desde 1859, com Faustino Maldonado e dez anos depois com o coronel Latorre, sucessivas expedições se lançam para o oriente impelidas por alguns abnegados caídos todos naqueles lugares remotos, numa extraordinária intuição dos interesses reais do seu país.
Estes antecedentes delatam nas perturbações que lavram em toda aquela zona um significado bem diverso do que lhe podem dar algumas correrias de seringueiros.
A guerra iminente tem uma feição gravíssima.
Se contra o Paraguai, num teatro de operações mais próximo e acessível, aliados às repúblicas platinas, levamos cinco anos para destruir os caprichos de um homem — certo não se podem individuar e prever os sacrifícios que nos imporá a luta com a expansão vigorosa de um povo.