Contra os caucheiros

A remessa de sucessivos batalhões para o Alto Purus — movimento de armas recordando um começo de guerra declarada — parece uma medida elementar de previdência.

É um erro. Não implica apenas o desfalecido das nossas finanças, nem se limita a projetar, de golpe, um brilho perturbador de baionetas no meio de um debate diplomático; vai além: prejudica de antemão a campanha provável e torna desde já precária a defesa das circunscrições administrativas criadas pelo Tratado de Petrópolis.

Estas afirmativas parecem paradoxais, e vão muito ao arrepio da corrente geral da opinião revoltadíssima contra esse Peru — tão fraco diante da nossa própria fraqueza. Mas são demonstráveis. Está passado o tempo em que a honra e a segurança das nacionalidades se entregavam, exclusivamente, ao rigor das tropas arregimentadas.

A última guerra do Transvaal, à parte os efeitos materiais, teve conseqüências surpreendentes. Estão ainda vivíssimos em todas as memórias os admiráveis episódios daquela esgrima magistral dos boers contra as armas pesadas da Inglaterra; e entre eles, um que pelo aparecer constante e invariável nos dois campos adversos, se reveste quase do caráter de uma lei, se é que as tem a maneira heroica de brutalidade humana. Indiquemo-lo: em Paardeberg, quando as tropas regulares inglesas recuaram rudemente repelidas dos entrincheiramentos de Cronje, ampararam-na os voluntários canadenses num assalto brilhante, que ultimou no assédio; Kimberley, defendida pelos cidadãos armados, reagiu com mais eficácia e diante de mais numerosos sitiantes do que Ladsmith guarnecida pela tropa de linha; em Magersfontain o pânico dos soldados teve o corretivo instantâneo de uma ducha, na fria impassibilidade dos highlanders escoceses… São fatos expressivos. Não escaparam à visão dos modernos profissionais da guerra. O coronel Henderson, que os testemunhou de perto, no estado-maior de Lorde Roberts, explica-os pelos terríveis efeitos desmoralizadores do armamento moderno e pelos embaraços criados pela pólvora sem fumaça.

O espírito de classe e a alta responsabilidade que lhe advém do cargo que ocupou junto ao comandante em chefe, não lhe tolheram o dizer nuamente que toda a luta sul-africana fora a glorificação dos lutadores improvisados, e

A triumph for the principle of voluntary service.

De Bloch foi ainda mais incisivo: a preeminência do civil resulta-lhe, iniludível, das mesmas condições do campo das batalhas modernas, onde a virulência e rapidez do tiro impõem uma dispersão de todo oposta aos dispositivos das paradas e das manobras. Em tais circunstâncias os oficiais não podem dirigir efetivamente os soldados, e estes, sem o hábito das deliberações próprias, estonteiam, desunidos e inúteis, porque quanto maior é a sua disciplina e o training da fileira, tanto menor é a aptidão individual de agir.

O argumento é impressionadoramente claro: o civil apanhado a laço, o voluntário de pau e corda, o caipira a quem a farda aterroriza-mas cuja capacidade de ação se desenvolveu autônoma nas caçadas, na faina da lavoura, nos múltiplos ofícios, nas viagens e nas várias peripécias de uma existência modesta e livre, surge de improviso desarticulando todas as peças da sinistra entrosagem em que a arte militar tem triturado os povos.

E para que isto sucedesse bastou que esta última se desenvolvesse ao ponto de deslocar todas as velharias da tática, firmando a única garantia dos combates nas faculdades de iniciativa.

A conclusão é tão arrojada, e deforma tanto os moldes do conceito vulgar, que precisamos afastá-la da nossa responsabilidade de latinos sentimentais e exagerados. Deixemo-la aí blindada na rigidez britânica: It is this quality which makes the superiority of the boers over the british. And it is this also which accounts for the superiority of the british civilian over the british regular. (De Bloch, The wars of the future).

Assim se esclarecem notáveis anomalias: a glória napoleônica, em que colaborou talvez o precipitado de recrutas colhidos em todos os pontos e que iam aperrar pela primeira vez as espingardas na frente do inimigo; as batalhas estupendas da guerra da Sucessão; o esporte ruidoso e álacre dos americanos em Cuba; e, neste momento, os desfalecimentos da formidável disciplina russa diante da vibratibilidade japonesa…

Inesperado desfecho: a guerra cresceu para diminuir na guerrilha; e depois de devorar os povos devora os próprios filhos, extinguindo o soldado. Não é Marte, é Saturno.

Reagiu à reprimenda dos filósofos e ao sentimentalismo dos poetas; evolveu ilogicamente apropriando-se dos recursos da ciência, que a repelem, e dos da indústria, que é a sua antítese; por fim, armou-se com uns dez milhões de baionetas e transformou-as na arma única que a trespassa. Acaba como os velhos facínoras salteados pela fadiga moral dos próprios crimes. Suicida-se.

Ora, um fato que ressalta tão vivo no esmoitado e no desimpedido dos campos mais próprios aos combates e aos seus alinhamentos prescritos, naturalmente se ampliará no embaralhado e no revolto do Alto Purus e do Alto Juruá, onde, até materialmente, são impossíveis aqueles dispositivos.

Ali não nos aguardam tropas alinhadas. Esperam-nos os caucheiros solertes e escapantes, mal reunidos nos baleões de voga, dispersos nas ubás ligeiras, ou derivando velozmente, isolados, à feição das correntes, nos mesmos paus boiantes que os rios acarretam; e repontando, a súbitas, na orla florida dos igapós, e desaparecendo, impalpáveis, no afogado dos paranamirins, onde se entrançam as ramagens das árvores que os escondem; ou girando pelas infinitas curvas e pelos incontáveis furos que formam a interessantíssima anastomose hidrográfica dos tributários meridionais do Amazonas.

A imagem material de uma campanha, ali, será o labirinto inextricável dos igarapés. Aos nossos estrategistas não impenderá a tarefa relativamente fácil de bater o inimigo — mas a empresa, talvez insuperável, de lobrigar o inimigo. Iludem-se os que imaginam que o só aparecimento de alguns corpos de tropas regulares no desmarcado trato de terras que demoram entre o Juruá e o Acre — baste a policiá-las, e a garantir os povoadores, e a impedir a violação de uma fronteira indeterminada. Os batalhões maciços, presos a uns tantos preceitos e ao retilíneo das formaturas, serão tanto mais inúteis quanto mais disciplinados e feitos à solidariedade de movimentos. O melhor de sua organização militar impecável culminará no péssimo da mais completa inaptidão a se ajustarem ao teatro das operações, e a enfrentarem o torvelinho dos recontros súbitos ou a se subtraírem aos perigos das tocaias. Não exemplifiquemos, recordando lastimáveis sucessos da nossa história recente.

Sobre tudo isto uma consideração capital. Aqueles longínquos lugares do Purus — mais conhecidos hoje, depois da exploração de Chandless, do que muitos pontos do nosso far-west paulista — exigem uma aclimação dificílima e penosa. Apesar de um rápido povoamento, de cem mil almas em pouco mais de trinta anos, tem ainda o caráter nefasto das paragens virgens onde a copiosa exuberância da vida vegetal parece favorecida por um ambiente impróprio à existência humana. O seu quadro nosológico assombra, pela vasta série de doenças, que vão das maleitas permanentes à hipoemia intertropical entorpecedora e àquela originalíssima “purupuru” que não mata mas desfigura, embaciando a pele do selvagem e dando-lhe um facies de cadáver, pondo no rosto do negro, salpintado de manchas brancas, uma espantada máscara demoníaca, e imprimindo no do branco a brancura repulsiva do albinismo…

Vê-se bem quantos agentes, díspares nos aspectos mas convergentes nos efeitos, das conclusões mais recentes da técnica guerreira às mínimas exigências climáticas, concorrerão no invalidar a ocupação estritamente militar daquela zona.

Além disto, as forças para repelir a invasão já ali se acham, destras e aclimadas, nas tropas irregulares do Acre, constituídas pelos destemerosos sertanejos dos Estados do norte, que há vinte anos estão transfigurando a Amazônia. Eles formam o verdadeiro exército moderno como o preconizam, como o desejam, como o proclamam altamente, dentro dos círculos militares da Europa, os luminares da guerra precitados — não já para o caso especial das guerrilhas, mas para todas as formas das campanhas, quer estas se desenrolem nos campos clássicos da Bélgica, quer na topografia revessa do Transvaal. E confiados naqueles minúsculos titãs de envergadura de aço enrijada na têmpera das soalheiras calcinantes, a um tempo bravos e joviais, afeitos às deliberações rápidas e decisivas de uma tática estonteadora, que improvisam nos combates com a mesma espontaneidade com que lhes saltam das bocas as rimas ressoantes dos folguedos — poderemos permanecer tranquilos.

Para o caucheiro — e diante desta figura nova imaginamos um caso de hibridismo moral: a bravura aparatosa do espanhol difundida na ferocidade mórbida do quichua — para o caucheiro um domador único, que o suplantará, o jagunço.

CUNHA, Euclides da. Contra os caucheiros. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/contrastes-e-confrontos/contra-os-caucheiros. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 22 maio 1904. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. In: Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 64-7.