Não há em todo o Brasil região alguma que tenha tido o vertiginoso progresso daquele remotíssimo trecho da Amazônia, onde não vingou entrar o devotamento dos carmelitas nem a absorvente atividade, meio evangelizadora, meio comercial, dos jesuítas. Há pouco mais de trinta anos era o deserto. O que dele se conhecia bem pouco adiantava às linhas desanimadoras do padre João Daniel no seu imaginoso Tesouro Descoberto: “Entre o Madeira e o Javari, em distância de mais de 200 léguas, não há povoação alguma nem de brancos nem de tapuias mansos ou missões”.
O dizer é do século XVIII e podia repetir-se em 1866 na frase de Tavares Bastos: “O Amazonas é uma esperança; deixando as vizinhanças do Pará penetra-se no deserto”.
Entretanto, nada explicava o olvido daquele território.
Compreende-se que os próprios norte-americanos tenham reprimido até 1868 a vaga povoadora impetuosíssima que assoberbou a barreira dos Alleganis e a transmontou, espraiando-se no far-west; sopeara-lhe o arremesso a maninhez desalentadora dos terrenos absolutamente estéreis que se desatam a partir das vertentes orientais das Rocky Mountains.
Entre nós, não. As nossas duas maiores linhas de penetração, a de S. Paulo e a do Pará, convergentes ambas em Cuiabá, nortearam-se desde o começo como a procura de empecilhos de toda a ordem.
Os sertanistas que abalaram de Porto Félix à feição do Tietê e do Paraná, para vencerem as águas torrenciais do Pardo até alcançarem pelo Taquari e pelo São Lourenço aquele longínquo objetivo depois de uma navegação de cerca de quatro mil quilômetros — e os que demandavam, a partir de Belém, sempre ao arrepio das águas do Amazonas, do Madeira e do Guaporé, numa travessia de mais de setecentas léguas, iam apostados a luta formidável com os baques das catadupas, com o acachoar das itaipavas, com a monotonia inaturável das varações remoradas, com o choque das correntes e com os torvelinhos dos peraus. Venceram-nos; e o planalto dos Parecis, expressivo divortium aquarum, de onde irradiam caudais para todos os quadrantes, teve, em pleno contraste com este caráter físico dispersivo, uma função histórica unificadora que só será compreendida quando o espírito nacional tiver robustez para escrever a epopéia maravilhosa das Monções.
Entretanto, demoravam-lhes no ocidente paragens que seriam facilmente percorridas sem aquela extraordinária dissipação de esforços.
A queda do maciço brasileiro, irregular e abrupta noutros pontos e originando regimes fluviais perturbadíssimos, que alguns rios, como o Tocantins e o S. Francisco, prolongam quase ao litoral, ali se desafoga na maior expansão em longitude da América do Sul, precisamente na zona em que a viva deflexão dos Andes para o ocidente propiciou uma área à maior bacia hidrográfica da terra. Daí o remansado e o desimpedido dos seus fartos tributários. O Purus e o Juruá são, depois do Paraguai e do Amazonas, os rios mais navegáveis do continente. Descidas as vertentes orientais dos últimos contrafortes andinos, onde lhes abrolham as fontes, e repontam as suas únicas cachoeiras, volvem as águas num declive que o mais rigoroso aparelho às vezes não distingue. Ajustam-se à rara uniformidade dos terrenos. tão eloquentemente exposta, à mais breve contemplação de um mapa, no paralelismo dos grandes cursos de água que correm entre o Madeira e o Javari, drenando lentamente a região desimpedida que prolonga os piamos bolivianos e onde a natureza equilibrada esconde as opulências de uma flora incomparável nos labirintos. dos igarapés…
Mas ninguém a procurou. A metrópole que firmara a posse da terra nas cabeceiras do Rio Branco, do Rio Negro, no Solimões e no Guaporé com as paliçadas e os pedreiros de bronze dos velhos fortes de S. Joaquim,. Marabitanas, Tabatinga e Príncipe da Beira — quatro, enormes escudos desafiando a rivalidade tradicional da. Espanha — evitara por completo (como se recuasse ante a ferocidade, tão fabulada pelos cronistas, dos muros irradios) aqueles longínquos tratos do território — até que no-las desvendassem, em 1851, Castelnau e o tenente da marinha norte-americana F. Maury.
Foi uma revelação. O descobrimento coincidia com uma renascença da atividade nacional. Na imprensa, o robusto espírito prático de Souza Franco aliara-se à inteligência fulgurante de Francisco Otaviano nessa propaganda irresistível pela franquia do Amazonas a todas as bandeiras, a que tanto ampararam o lúcido critério de Agassiz, as pesquisas de Bates, as observações de Brunet e os trabalhos de Souza Coutinho, Costa Azevedo (Ladário) e Soares Pinto, até que ela desfechasse no decreto civilizador de 6 de dezembro de 66.
Tavares Bastos, não lhe bastando, à alma varonil e romântica, o tê-la esclarecido com o fulgor das melhores páginas das Cartas de um solitário, transmudava-se num sertanista genial: perlustrou o grande rio trazendo-nos de lá um livro, O Vale do Amazonas, que é um reflexo virtual da hiloe portentosa e é ainda hoje o programa mais avantajado do nosso desenvolvimento. Ora, neste largo expandir de novos horizontes, um explorador tenaz, Chandless, traçou repentinamente a diretriz de um objetivo definido. Levara-o até lá, no trecho onde os grandes rios misturam as suas águas na anastomose das nascentes, o intento de descobrir uma passagem do Acre para o Madre-de-Dios — o velho problema da ligação das bacias do Amazonas e do Paraguai. Não o resolveu. Fez mais: sugestionado pelas maravilhas naturais, transformou-se num pioneiro salteado de ambições e fundou ali o primeiro estabelecimento que fixou o homem à terra; enquanto um mateiro destemeroso, Manoel Urbano da Conceição, um quase anônimo, como o é a grande maioria dos nossos verdadeiros herois, batia longamente o reticulado inextricável dos furos e, desvendando as nascentes de todos os tributários do Purus, preparava a um outro dominador de desertos, o coronel Rodrigues Labre, grande parte do terreno para um rápido e intensíssimo povoamento.
De feito, foi uma transfiguração. Em pouco, sucessivas vagas de imigrantes reproduziam em nossos dias o tumulto das entradas do século XVIII.
O látex das seringueiras, o cacau, a salsa, a copaíba e toda a espécie de óleos vegetais, substituindo o ouro e os diamantes, alimentavam as mesmas ambições insofregadas.
A terra, até então entregue às tribos erradias, teve em cerca de dez anos (1887) uma população de 60.000 almas, ligando-se as suas mais remotas paragens de Sepatini e Hintanaam a Manaus, pela Companhia Fluvial de Amazonas, com um primeiro desenvolvimento de 1.014 milhas, logo depois de distendidas na navegação dos tributários superiores que vão do Ituxi ao Acre. E por fim uma cidade, uma verdadeira cidade. Lábrea, repontou daquela forte convergência de energias trazendo desde o nascer um caráter destoante do de nossos povoados sertanejos — com o requinte progressista de uma imprensa de dois jornais, o Purus e o Labrense, e o luxo suntuário de um teatro concorrido, e colégios, e as ruas calçadas e alinhadas: a molécula integrante da civilização aparecendo, repentinamente, nas vastas solidões selvagens…
Ora, estes sucessos, que formam um dos melhores capítulos da nossa história contemporânea, são, também, o exemplo mais empolgante da aplicação dos princípios transformistas às sociedades. Realmente, o que ali se realizou> e está realizando-se, é a seleção natural dos fortes. Para esse investir com o desconhecido não basta o simples anelo das riquezas: requerem-se, sobretudo, uma vontade, uma pertinácia, um destemor estoico e até uma constituição física privilegiada. Aqueles lugares são hoje, no meio dos nossos desfalecimentos, o palco agitadíssimo de um episódio da concorrência vital entre os povos. Alfredo Marc encontrou, nas margens do Juruá, alguns parisienses, autênticos parisienses, trocando os encantos dos boulevards pela exploração trabalhosa de um seringal fartíssimo; e acredita-se que o viajante não exagerou. Lá estão todos os destemerosos convergentes de todos os quadrantes. Mas, sobrepujando-os pelo número, pela robustez, pelo melhor equilíbrio orgânico da aclimação, e pelo garbo no se afoitarem com os perigos, os admiráveis caboclos do norte que os absorverão, que lhes poderão impor a nossa língua, os nossos usos e, ao cabo, os nossos destinos, estabelecendo naquela dispersão de forças a componente dominante da nossa nacionalidade.
E o que deve acontecer.
Volvendo ao paralelo que, pouco há, indicamos, ao notarmos a súbita parada da expansão norte-americana no far-west, levemo-lo às últimas consequências.
Por uma circunstância realmente interessante, os ianques, depois de estacionarem largos anos diante das Rochosas, saltaram-nas, vivamente atraídos pelas minas descobertas na Califórnia, precisamente no momento em que nos avantajávamos até ao Acre. O paralelismo. das datas é perfeito. No mesmo ano de 1869, em que nos prendíamos por uma companhia fluvial àquelas esquecidas fronteiras, eles se ligavam ao Pacifico pela linha férrea do Missouri, audaciosamente locada nas cordilheiras e nos desertos.
Emparelhamo-nos, neste episódio da vida nacional, com a grande república.
Aceitemos, por isto mesmo, uma lição de Bryce. Traçado magistralmente o quadro da expansão ianque, o historiador nos demonstra que, diante do exagerado afastamento da costa oriental, as gentes localizadas nas novas terras do Pacífico formariam inevitavelmente uma outra nacionalidade, se os recursos da engenharia atual lhes não houvessem permitido uma intimidade. permanente com o resto do país.
O nosso caso é idêntico, ou mais sério.
As novas circunscrições do Alto Purus, do Alto Juruá e do Acre devem refletir a ação persistente do governo em um trabalho de incorporação que, na ordem prática, exige desde já a facilidade das comunicações e a aliança das idéias, de pronto transmitidas e traçadas. na inervação vibrante dos telégrafos.
Sem este objetivo firme e permanente, aquela Amazônia onde se opera agora uma seleção natural de energias e diante da qual o espírito de Humboldt foi empolgado pela visão de um deslumbrante palco, onde mais cedo ou mais tarde se há de concentrar a civilização do globo, a Amazônia, mais cedo ou mais tarde, se destacará do Brasil, naturalmente e irresistivelmente, como se despega um mundo de uma nebulosa — pela expansão centrífuga do seu próprio movimento.