Conjecturas

Entre os enredos prováveis que em breve embaralharão a luta do Extremo Oriente avulta, a ressaltar em destaque sobre todas as conjecturas, uma ação interventiva da Inglaterra.

Tudo a sugere. A parte um sem número de outras circunstâncias, mostram-na, com toda a clareza de um traçado geométrico, os itinerários seguidos pelas duas grandes nacionalidades no Velho Mundo.

A princípio marcharam paralelamente: o inglês pelo Egito, pelo Afeganistão, pela Índia; o russo pelo norte do Turquestão e pela Sibéria em forma a defrontar o Pacífico; e, certo, teriam no Tibete e na China propriamente dita uma larga superfície isolante, que devia garantir a imiscibilidade de suas poderosas vagas invasoras, se uma delas, a russa, não houvesse de inflectir forçadamente para o sul, tendendo para um encontro, que será um conflito.

De feito, a rota do eslavo para o Oriente — a mais lenta e a maior de todas as invasões — não denuncia, como a do saxônio, um excesso de vida, porém a mesma necessidade inflexível de viver. Não obedece a um traçado sistemático e seco; não vai num percurso de gentes disciplinadas avançando adstritas à retitude de programas prefixos — e um espraiamento largo a assoberbar fronteiras, o refluxo desordenado e em massa de um povo rudemente repelido num final espantoso de batalhas.

Realmente, a guerra de Criméia fechou o ocidente da Europa à Rússia e despenhou-a sobre a Ásia. A típica bonomia política de Napoleão III, com servir tão complacentemente aos interesses da Inglaterra, em 1853, afigura-se hoje um lance aquilino de estadista maquiavélico, porque toda aquela campanha recorda um reconhecimento armado preparando meio século mais tarde uma luta titânica a’ adversária secular da França.

Era fácil prevê-la. O colosso moscovita, vencido, ficara inteiramente bloqueado: o Bósforo interdito sequestrava-o nos seus estepes, sem saída; e a indústria triunfante das raças vitoriosas malsinava-lhe, suplantando-lho, o desenvolvimento econômico incipiente. A Rússia, com a sua estrutura social variadíssima e imperfeita e a sua atividade ainda tateante entre a servidão e a liberdade, seria para sempre vencida pelo trabalho organizado e pelas riquezas estáveis de todo o resto da Europa.

Mas dominou a situação gravíssima. Contornou-a; transmudou todo aquele recuo num avançamento; e abalou para o levante num movimento de flanco admirável entre ameaçador e pacífico, porque não lho estimulava ou inspirava apenas o velho sonho guerreiro de Pedro, o Grande, a conquista do mar, senão também o anelo de deparar em outras terras novos centros produtivos, de cultura. Ao revés da expansão britânica na Índia, não buscava mercados para o desafogo de indústrias que não tinha, mas novas áreas de produção industrial e agrícola, onde as caravanas anuais dos mujiques das Terras Negras — dois milhões de homens periodicamente postos fora dos lares pela miséria — encontrassem o abrigo salvador dos territórios ferozes que demoram além dos plainos estéreis do Turquestão ou da Sibéria.

Para a sua grande vida vacilante e distensa procurou a base econômica da China — uma Canaã vastíssima…

E assim se traçou a “estrada do império” o transiberiano, menos um caminho comercial do que um dreno desmedido canalizando para a Rússia européia toda a força vital da Ásia conquistada.

Para isso se demasiou em esforços em que as empresas militares mal se destacam entre os prodígios de uma diplomacia incomparável.

Não há resumi-los. Diante dos hábeis diplomatas, de Mouravieff a Cassini, abria-se o desconhecido: o Império do Meio, com a sua contextura política indecifrável, onde a autoridade periclitante de uma dinastia intrusa mal se equilibra entre os Kanatos anárquicos da Mongólia — e a força religiosa dos lamas do Tibete. Neste sistema desfalecido, em que divergem os poderes mal unidos pela identidade das crenças difundidas na amplitude do budismo, penetrou a componente dominante da política russa, que os equilibrou ou os dirigiu, ou os anulou pelo contraste dos interesses em jogo; de sorte que a breve trecho a nacionalidade, que se perdia na grandeza inútil da Sibéria, tendo no Pacifico, em Petropavlosky, uma saída única obstruída pelos gelos, se dilatou para o sul até Vladivostock; firmou-se depois, mais avantajada, em Porto Arthur — de onde assoberbando todo o vale do Amur, abrangeu a Manchúria, e conquistou o protetorado franco da Mongólia, onde se estréia a suserania do Tibete…

Em cinqüenta anos expandiu-se em superfície capaz de cobrir a de toda a Europa ocidental de onde refluíra em 1853.

Foi um triunfo e um revide.

Completa-os — fato sugestivo, ainda que desvalioso — uma destas minúcias pinturescas tão em destaque as vezes entre os maiores acontecimentos.

De fato, o último aspecto desta estupenda hipertrofia territorial recorda-lhe o ponto de partida. A extremidade peninsular de Liao-Tong — neste momento o mais ruidoso palco do drama russo-japonês — é a miniatura da Criméia. Ali ainda se retrata, estereotipado no desmantelamento da terra, o cataclismo geológico que destacou o Japão da Coréia, deixando-lhes de permeio a rumaria esparsa das “Dez mil ilhas”, que fervilham entre Fuzan e Nangasaki. A ponte extrema da peninsular Kuang-Tong, a “espada do regente”, embebida no mar à feição de gládio desmedido, denteia-se de numerosas enseadas ou reentrâncias nos ásperos costões de micaxisto… Numa delas o acesso se faz por uma passagem estreita, breve angustura de taludes a pique à maneira de brecha de muralha.

E lá dentro, no encerro da baía, as falésias a prumo desatam-se em cortinas unidas, encimadas de baluartes, desenrolam-se ou entrelaçam-se entrincheiramentos, acompanhando os sulcos das ravinas, e os cerros torreados crivam de fortalezas as alturas…

É Porto Artur — a Sebastopol ameaçadora do Pacífico.

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Ora, esta expansão vitoriosa contrabate, de um lado, os interesses imediatos do Japão transfigurado nos últimos trinta anos, com uma vida intensíssima a desbordar no âmbito de suas ilhas para o cenário maior do continente fronteiro — e de outro aos interesses futuros da Inglaterra na Índia, sobre a qual descerá direta e esmagadoramente o peso morto formidável deste antigo mundo restituído à história.

Daí a luta — a luta às claras do Japão, arrojando na Manchúria todo o seu exército, e a luta surda da Inglaterra, mal disfarçada sob a forma meio diplomática, meio militar, da missão do Tibete, que neste momento chega aos muros de Lhassa, a “impenetrável”.

Mas neste investir com a capital interdita do budismo, as armas inglesas vão bater precisamente no centro irradiante das inspirações superiores da diplomacia moscovita. De fato, toda ela, a despeito da sua complexidade e das infinitas muralhas em que enleou a metade da Ásia, tem consistido em destacar o prestígio eslavo entre a fidelidade precária dos chineses à dinastia reinante e a aversão nacional à expansão econômica do Ocidente. Teve que harmonizar coisas opostas: captar a confiança da primeira, protegendo-a ou dirigindo-a, e ao mesmo tempo o apoio da grande maioria do povo, em quem o nacionalismo antidinástico é um caso particular de xenofobia, o ódio ao estrangeiro, que o caracteriza.

Ora, o instrumento desta maquinação — a maior e mais vasta de quantas intrigas rememora a história foi o mais alto fator da vida oriental, o clero búdico, a oligarquia teocrática de Lassa, o árbitro pré-excelente de todas as questões asiáticas.

Tudo mais está num plano subordinado; os nove mil quilômetros de rails que prendem Porto Arthur a Petersburgo; os possantes locomóveis que correm hoje pelos plainos da Mongólia, arrastando pesadíssimos trens e resolvendo o problema da rápida viação sem trilhos; as cidades russas emergentes com os seus nomes caracteristicamente russos por toda a Manchúria; as operações em vasta escala do Banco Russo-Chinês, açambarcando todas as finanças do Oriente; e todo o vasto acampamento que perlonga as vias férreas, onde em cada estação se abarraca uma sotnia de cossacos; todas estas formas materiais e imponentes do domínio têm a garantia maior da aliança habilmente estabelecida, desde 1901, entre o papa ortodoxo do Neva e o imperador teocrático de Lhassa.

Graças a ela, desenvolveu-se o protetorado russo na Mongólia e a suserania virtual do czar sobre toda a China. E quando a corte mandchu, rudemente molestada pela última intervenção européia, se acolheu sob o amparo da Rússia, desvendou-se inteiramente> diante da Europa surpreendida, a aliança singularíssima entreabrindo uma nova fase na história do Oriente.

Delatou-a incidente expressivo. O chefe do budismo, o super-homem tibetano, modificou a cerimônia tradicional com que através dos séculos ele consagra os poderes supremos da Ásia: o chanceler de Lassa, conduzindo os presentes simbólicos do domínio, não se dirigiu mais a Pequim. Dirigiu-se para a Livadia.

Era a sagração do czar — logo depois sancionada pela própria dinastia mandchu com o tratado confidencial de julho de 1902. E o enorme bloc russo-búdico, descendo esmagadoramente sobre a Ásia meridional, cerrou todas as passagens à expansão inglesa.

Compreende-se, então, a última entente cordialíssima entre a Inglaterra e a França, rematando tão de improviso uma rivalidade secular. Não no-la explicam as simples tendências galófilas do antigo príncipe de Gales. A política inglesa é a menos sentimental das políticas, e embora a inquinassem os nossos belos defeitos latinos, o seu aparelho complexo repele todos os influxos pessoais. A explicação reponta das linhas anteriores. A arrogância britânica, tão desafiadora ainda há pouco em Fashoda, transmudou-se em dócil cortesia, porque se lhe antolhava, depois do problema africano resolvido no Transvaal, o problema asiático, mais sério e quase misterioso no intricado de infinitas incógnitas.

Previu próxima e inevitável deslocação da sua força para a Ásia, a enterreirar um antagonista que além da própria robustez lhe tem às portas, separado pelas seis horas de travessia da Mancha, um aliado respeitável. Era-lhe preciso remover todas as interpretações inconvenientes da aliança franco-russa. Daí as suas transigências quanto aos pontos controvertidos em Sião, o abandono dos projetos de linhas férreas contrapostos aos interesses franceses no sudoeste chinês, assim como as suas imprevistas concessões do norte da África e na Terra Nova — e sobretudo o afogo, a ânsia, a vibratibilidade perfeitamente latina com que se precipitam os debates do acordo anglo-francês, na Câmara dos Comuns. De qualquer modo, deixando o seu esplêndido isolamento, o Reino Unido enfraquecerá os compromissos franceses na dupla aliança e poderá abalançar-se à maior das guerras.

A situação é clara.

Se a Rússia for vencida, não terá o apoio do Ocidente num trabalho de paz que lhe salve ao menos uns restos de domínio. A convenção anglo-japonesa de julho de 1902, tão denunciativa do largo descortínio de Chamberlain, e destinada sobretudo a fechar as estradas da Índia e do Pacífico à Rússia, terá todos os seus efeitos, e o governo de Mikado ficará largamente compensado do amargo desapontamento daquele ilógico tratado de Simonosaki, em que as nações interventoras, entoando um vae victoribus! extravagante, lhe remataram as vitórias sobre a China, obrigando-o a respeitar a integridade territorial do vencido. A Coréia, o Império da Manhã Serena, cairá inteiramente na órbita do Sol Levante…

E se a Rússia triunfar — o historiador futuro terá de narrar uma campanha tão anormal, tão vasta e cheia de titânicas batalhas, que todos os recontros e assaltos desta rude refrega, desencadeada agora no Oriente, surgirão apequenados, feitos simples combates de vanguardas.

CUNHA, Euclides da. Conjecturas. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/contrastes-e-confrontos/conjecturas. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O País, Rio de Janeiro, 3 ago. 1904. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. In: Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 52-6.