Transpondo o Himalaia

Um despacho para o War Office transmitiu as informações do coronel Younghusband, acerca da primeira vitória decisiva das tropas que constituem a expedição do Tibete — e aquele telegrama mal desviou a atenção geral, toda entregue à emocionante luta russo-japonesa.

Entretanto, ali estão as primeiras linhas de um drama menos teatral e ruidoso, mas, talvez, mais profundo e de mais imprevistas consequências.

Prática como sempre, a Inglaterra aproveitou as aperturas atuais da Rússia e transpôs a muralha do Himalaia.

Que vai fazer? Adiante, deixada a orla formosíssima do vale de Cachemira, desata-se-lhe o planalto, asperamente revolto, que recorda uma dilatação lateral de enorme cordilheira. Os terrenos ondulam, riçados de gargantas, dobrando-se em vales numerosos e empinando-se em contrafortes crespos de fraguedos, formando-se os pamirs desolados e ásperos, quase despidos, onde uma flora escassa, mal abrolhando entre pedras, reflete todo o excessivo de um clima impiedoso: de verão, calcinando no reverbero fulgurante das soalheiras; de inverno, amortalhando a natureza toda no sudário branco das geadas.

Ali não há firmar-se a mais indecisa continuidade de um esforço. A vida deriva-se tolhida e incompleta, num permanente mal das montanhas.

Dada uma centena de passos, o forasteiro estaca, ofegante, no delíquio de um repentino assalto de fadiga, sentindo que não lhe basta aos pulmões afeiçoados aos ares nativos, toda a atmosfera rarefeita que o envolve. Fala, e mal percebe a própria voz. Grita, e o grito extingue-se logo, sem ecos, num abafamento de segredo. Depara os primeiros habitantes e assombra-se. Está diante de uns originalíssimos colossos-anões, que resumem na estatura meã todos os extremos da plástica: amplos torsos de atletas sobre pernas bambeantes e finas, de cretinos.

Compreende então, de pronto, as terríveis exigências de aclimação deformadora, capaz daquela caricatura horripilante de titãs.

O inglês, desempenado e rijo, tem naqueles lugares, na sua impecável harmonia orgânica, uma condição desfavorável e a fraqueza paradoxal da própria robustez, meio asfixiado num ambiente que lhe não basta. suplanta-o o indígena desfibrado, o chepang, ou o hayn, o monstrengo que vive à custa da redução da vida e da miséria orgânica, largamente satisfeita com uma hematose imperfeitissíma.

Este, sim, lá se equilibra. Não lhe pula o sangue, a escapar-se no afogueado rubor das arteríolas refertas; não o estonteia a vertigem: e o seu pulmão, amplificado à custa da atrofia de todo o organismo, colhe bem, no espaço rarefeito, a exígua meia ração de ar de que precisa.

Chegam-lhe, além disso, a fartar, os aleatórios recursos do solo esterilizado e pobre. E quando não lhe bastassem, lá está, para ampará-lo e transmudar-lhe em benefícios as misérias, a sua religiosidade extraordinária, maior que todas as outras, no sistematizar a renunciação e os sacrifícios.

Realmente, o Tibete — este “teto do mundo”, consoante a hipérbole oriental — tem, na sua maior cidade, Lhassa, o Vaticano do budismo.

A filosofia, que é um prodígio de imaginação e de incoerência — toda baseada na ideia essencial do nada, ao mesmo passo que vê na natureza uma infinita série de decomposições e recomposições sem princípio e sem fim — não podia encontrar melhor cenário, nem mais apropriada gente.

O Tibete é uma vasta Tebaida misteriosa. Um terço de sua população é de lamas — monges miseráveis e repulsivos, vestidos de trapos de mortalhas, meio idiotas e errantes de mosteiro em mosteiro, de povoado em povoado, ou à toa, pelos descampados, a pregarem, alucinadamente, a extinção da personalidade, o dogma do desespero e o tédio universal da vida: enquanto os dois terços restantes se abatem aniquilados, inteligências mortas sob o fardo de deuses e de mundos e de Kalpas seculares da mitologia formidável, que as estonteia e que as esmaga…

Toda essa gente ali se agita, num meio sonambulismo. O viajante encontra, por vezes, em todos os cantos de ruas, à entrada das casas, ou dos templos, incontáveis moinhos, tocados pelos escravos, ou pelos ventos, ou pela água — e tem a ilusão do trabalho. Mas a ilusão apenas. A breve trecho, nota que os cilindros gigantes não esmoem o trigo, ou separam a lã; sacodem, esterilmente, as orações e as fórmulas consagradas que contêm.

As energias escassíssimas das gentes vão-se naquele industrialismo místico da reza.

Então, avalia bem a identidade admirável que no Tibete, associa, indissoluvelmente, o homem e a terra. Lança o olhar em volta. Contempla as paragens desoladas e abruptas, tumultuando em píncaros desnudos, perdidos no silêncio misterioso das alturas, e compreende que para aquele recanto do planeta, alternadamente trabalhado pelos maiores estios e pelos maiores invernos — só mesmo a quietude eterna e a imensidade vazia do Nirvana…

*

Que vai fazer, ali, o inglês?…

Vai defender a Índia. Lorde Curzon, o atual vice-rei, declara-o formalmente; a Índia é uma enorme fortaleza triangular, tendo o Índico como um fosso envolvendo-a por dois lados e, pelo outro, o muro do Himalaia.

Transposto este, está uma esplanada, o glacis, que deve jazer na mais absoluta neutralidade. É a região ao sul do Tibete. Este, porém, abandonando, nos últimos tempos, o seu isolamento milenário, mandou emissários ao tzar, abrindo espontaneamente à política asiática da Rússia um dilatado campo, que se expande, a partir das fronteiras orientais do Turquestão. Deste modo, a Rússia, sobre o glacis, irá ajustar-se, por terra, às lindes da mais imponente das possessões inglesas, bloqueando-lhe daquele lado trezentos milhões de súditos.

Daí, esse movimento de contrapolítica, que o Times resume limpidamente:

A resolução do governo inglês é clara. Para o russo dominante no Turquestão, o Tibete é um pais muito distante, que tem muito perto, a um passo, a Índia. E, embora este passo tenha de dar-se por cima do Himalaia, a grande cordilheira, de modo algum se compara ao imenso planalto enregelado, onde o caminhante opresso, numa altitude de 5.000 metros, calca, durante dois meses, a neve sem ver um homem, sem ver uma única árvore entre os piamos do Turquestão e as primeiras cabanas dos caçadores, a 200 quilômetros de Lassa. Este planalto, e não a cordilheira, é que forma a fronteira setentrional da Índia; e o governo inglês não permite que lha ocupem num movimento ameaçador e contorneante.

A Inglaterra não vai conquistar, povoar, ou colonizar aquele trato do território. O que a Inglaterra não quer, e tenazmente, é que lhe extingam aquele deserto — e que penetre no país, perpetuamente malignado pelo clima, pela imbecilidade dos lamas e pela vadiagem aventureira dos tchandalas, a alma forte e maravilhosa dos russos.

Ressalta, nesta circunstância, o significado interessantíssimo do caso.

A nação mais prática entre todas — onde a inteligência, conforme a frase de Emerson, está numa espécie de materialismo mental, porque nada produz sem se basear num fato positivo — coloca-se, inesperadamente, ao lado da infinita idealização estagnada do budismo…

Porque, afinal, o que convém à política inglesa na Índia é a permanência da sociedade decaída e apática, o vazio da célebre “esplanada” — com tanta seriedade e tão involuntário humorismo exposta pelo previdente Lorde Curzon.

E para isso, armou-se uma expedição, que lá está, há meses, assoberbada de dificuldades de toda a ordem, num solo onde as armas inglesas, encontrando nos tibetanos uma resistência inesperada, ainda não perderam o brilho, somente devido à bravura e à tenacidade inamolgável dos gurkhas e siks do Nepal, os melhores soldados do Velho Mundo.

A tomada de Giantsé, efetuada pelo coronel Younghusband, depois de um rude canhoneio, deu-lhes um ponto estratégico de primeira ordem. Aquela cidade era o primeiro objetivo da campanha. Segundo se colhe de notícias anteriores, o governador da Índia pretendia, expugnando-a, transformá-la num centro de negociações diplomáticas com os grandes lamas e com o Dalai-Lama de Lassa, por maneira a firmar o prestígio britânico, sem maiores dispêndios de sacrifícios.

A este propósito, citou-se, mesmo, o grande lama de Tashe Lumpo, “o grande mestre”, como o denominam, que assiste em Shigtsé a poucas léguas de Giantsé.

Ao que se figura, porém, as tentativas neste sentido fracassaram.

Os últimos despachos noticiam que a expedição, agora sob o mando direto do general MacDonald, segue rumo decisivo para o seu objetivo lógico, para Lassa, para o âmago do país, para a Roma intangível do budismo…

Vai desenrolar-se um dos mais empolgantes episódios da história universal.

Realmente, devem aguardar-se todas as surpresas, e até as revelações mais imprevistas, deste recontro: um conflito entre o povo que melhor equilibra as energias da civilização moderna e a velhíssima raça, onde melhor se conserva o desvairado misticismo das sociedades primitivas.

CUNHA, Euclides da. Transpondo o Himalaia. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/contrastes-e-confrontos/transpondo-o-himalaia. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O Comércio de São Paulo, 15 jul. 1904. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. In: Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 48-51.