Estouro da boiada por Franklin Távora

Franklin Távora

Desta tribulação veio arrancá-la um estrupido vasto, medonho, após um tiro que ressoara na imensa solidão. A larga margem do rio estremeceu, com uma onda sonora interior: os terremotos devem produzir o som cavernoso que saiu naquele instante do chão rudemente percutido. Quem não soubesse o que era, julgaria que um cataclismo, revolvendo as entranhas da terra, ia abrir covas profundas, goelas tenebrosas que imediatamente se iluminariam, deixando passar fogo e lavas abrasadoras. O tiro tinha sido dado por Andorinha contra Lourenço; o ruído subterrâneo não fora produzido senão pela corrida da boiada que arrancara da beira do rio, espantada pela denotação do tiro.Foi então tudo confusão e borborinho. O fato de arrancar uma boiada é vulgar para os que conhecem a vida sertaneja; mas sempre infunde pavor, ainda nos que melhor sabem esta feição daquela vida. Quando uma boiada arranca, uma boiada de duzentas e trezentas cabeças, pouco depois de ter deixado o pasto usual, isto é, quando está em quase todo o vigor, e não tem ainda perdido, pelo cansaço, parte das forças ganhas na vida livre do sertão, não fica incólume e ileso o que encontra à sua frente. O chão arrasa-se, porque as moitas desaparecem e os arbustos acamam-se torcidos ou quebrados sob seus pés. Os espinheiros ficam lisos. Onde não havia nem uma trilha, nem uma aberta, mostram-se, depois, entradas novas, que o homem aproveita algumas vezes. As longas cortinas de cipós pendentes das folhagens das grandes árvores, esfrangalhadas, despedaçadas, ou deslocam-se das alturas donde as suas flores namoravam o sol e o azul etéreo, e vêm alcatifar, confusas e revolvidas, o chão, ou, partidas ao meio, oscilam dali em retalhos que resistiram à invasão das centenas de cabeças bicornes que, através desses floridos cortinados com que a natureza decora o teto e as abóbadas dos sombrios paços das espessuras, abriram improvisa passagem, no desespero do pânico bruto. Tudo leva do rojo a mole ambulante, na disparada…

Por alguns momentos, ouviu-se, agora perto, depois mais longe, o rude bater dos chifres das reses, uns contra os outros, o som soturno que despedia de si o chão violentamente contundido pelas patas daqueles animais unidos, aconchegados, conforme soem correr em semelhantes ocasiões, o estalar dos ramos, o rechinar das folhas, o espadanar das lamas por onde iam eles rompendo, sem empate nem medida, no varjado esplêndido.

TÁVORA, Franklin. Estouro da boiada. In: Lourenço: chronica pernambucana. Rio de Janeiro: Garnier, 1902. 295 p. (Litteratura do Norte, 3) In: EUCLIDESITE. São Paulo, 2019. Artigos. Disponível em: https://euclidesite.com.br/artigos. Acesso em: [data]. Ortografia atualizada.
Ver também
Estouro da boiada por Rui Barbosa, José de Alencar e Euclides da Cunha.