Aconteceu em agosto: casos e causos das Semanas Euclidianas
Todos os anos surgem nas Semanas Euclidianas figuras que de folclóricas passam a lendárias e, num desses anos surgiu um jovem maratonista que sem saber virou uma lenda, contada aos que chegam por aqueles que nem o conheceram, mas eu o conheci e vivi esse episódio.
A figura era exótica, ao menos para aquele momento, se bem que todos nós, em algum momento, em algum episódio ou para alguém, parecemos estranhos.
O sujeito chegou todo faceiro, dono da situação, vestido de cowboy, numa época em que esse estilo não era moda e vestir-se assim era motivo de muita gozação, de muito preconceito. Para se ter uma idéia, Chitãozinho e Xororó eram apenas nomes de pássaros e não existia música sertaneja, só música caipira.
O protagonista não usava calça jeans, mas calça rancheira, um cinto com uma enorme fivela, camisa xadrez, botina igual a dos retireiros de leite e chapéu de couro, nada novo, tudo muito surrado. Seu nome, até hoje não sei. Acho que ninguém ficou sabendo, pois fazia questão de chegar se apresentando com aquele sotaque tipicamente do interior paulista:
– Meu nome é Zé do Boi e sô da cidade de Borborema.
Fazia questão de acrescentar a seu nome, o da sua cidade. Foi assim que Borborema entrou para o mapa do Estado, pois não há um sobrevivente daquela época que não tenha pesquisado sobre ela.
Zé do Boi chegou e não conversou, foi logo apavorando com seu jeitão de homem da roça, valente, destemido. Costumava nos dizer que em Borborema só tinha homem bravo e que lá:
– Macho que é macho não bebe mer, mastiga a abeia.
Gostava de coisas e músicas completamente diferentes dos demais jovens e isso foi fazendo com que prestássemos atenção nele. Não tinha vergonha de seu jeitão, de suas roupas, sotaque, ou origem. Muito seguro de si, foi conquistando o respeito de todos, ninguém mais o olhava com estranheza, mas sim com admiração e os rapazes até com inveja, pois ele começou a ganhar muito espaço entre as garotas. Era o próprio “bendito fruto entre as mulheres”.
Passados dois dias já era a figura mais popular daquela Semana Euclidiana e não tardou para sua fama ultrapassar as salas de aula e chegar até a população de São José do Rio Pardo. Contava “causos” como ninguém e tudo verdadeiro, vivido por ele. Ao ouvir a leitura feita por um professor do emblemático “estouro da boiada”, em Os sertões, não se fez de rogado, levantou-se durante a aula e disse em alto e bom tom pra quem quisesse ouvir:
– Esse Eucrides assistiu o estouro da boiada em Borborema e o vaqueiro que ele fala era o meu vô!!!
Em toda roda que tivesse mais de cinco pessoas, lá estava ele contando seus feitos de coragem, explicando detalhadamente como tinha laçado uma novilha, montado num touro bravo ou pego uma onça pintada.
Foi quando alguns rapazes da cidade, os quais estavam envolvidos ano após ano com a Semana Euclidiana e com suas garotas, pois já tinham muitos amigos entre os jovens maratonistas, resolveram se servir da coragem do Zé do Boi.
Já estávamos no final da Semana Euclidiana e o exemplo de coragem foi procurado com o nobre intuito de roubarem um porco num sítio para que fosse feito um churrasco de despedida para os maratonistas na chácara do pai de um dos rapazes da cidade. Cabe aqui lembrar que coisa semelhante já havia sido feita em anos anteriores com as galinhas criadas pelas irmãs do colégio, onde as moças gentilmente ficavam alojadas, mas um porco… era muita ousadia e precisava de coragem.
Procuraram o representante de Borborema e expuseram o plano, que de imediato foi aceito e traçado as minúcias. Já tinham o sítio onde ocorreria o furto, o carro para o transporte, o local para preparar o churrasco, só faltava mesmo era quem pegaria o porco; isso ficou por conta do Zé do Boi, que explicou como faria, o que seria necessário e, de quantos auxiliares iria precisar para a limpeza após o churrasco, pois a proeza da caçada seria realizada por ele.
O ponto de saída do grupo e também de chegada, era a praça em frente ao colégio Euclides da Cunha e também próximo ao colégio das irmãs, onde as garotas estavam alojadas.
Encostou um Opala Comodoro branco daqueles de impor respeito, toda a operação era acompanhada por todos os maratonistas, muita gente tentou dissuadir o grupo daquela “ideia de jerico”, mas nada podia tirar o brilho do grande feito do Zé do Boi. E lá foram. Junto ao Opala seguiu um outro carro de apoio: moral é claro, totalizando em torno de oito pessoas.
Nos fundos do tal sítio passava o Rio Pardo, havia chovido horas antes, a noite não tinha luar, tudo estava escuro como breu e os únicos sons produzidos eram coaxares e pipilos e o forte som das águas do rio que, naquele momento, era intenso devido à cheia.
Um clima pesado foi se instalando junto aos aventureiros, que minutos antes ouviam música, falavam alto e o Zé do Boi contava proezas.
O terreno estava encharcado, era um lamaçal só e ninguém enxergava nada, nesse momento alguém teve a ideia de acender um isqueiro para iluminar o caminho e pôde perceber que cada um ia para um lado, foi quando se ouviu o disparo de um tiro, seguido por uma grande gritaria e um tremendo corre- corre.
Zé do Boi, ao correr, caiu numa grande poça d’ água. D deixando toda a valentia de lado, rogava aos céus:
– Valei-me meu São Binidito que eu num sei nadar. Eu num quero morre afogado no Rio Pardo, me leva pra Borborema, que é lá que eu quero morrê. Se eu saí vivo, juro que nunca mais conto papo…
Só parou de gritar quando um dos colegas o ajudou a levantar-se; correu tanto que deixou pra trás o carro, que o alcançou na estrada.
Foi assim que chegaram de volta à praça: enlameados, sem o porco e desesperados, pois um deles estava ensaguentado, possivelmente atingido pelo tal tiro, ao menos era o que todos pensavam.
O Zé do Boi desapareceu naquela mesma noite, nunca mais tivemos notícias dele, mas é sempre lembrado pelo “antológico, mitológico, bestialógico caso do roubo do porco, talvez a mais singular e emblemática aventura da Semana Euclidiana”, segundo o nosso querido Coletivo Euclidiano.