Conheci tarde o livro de Euclides. Por dever de ofício, primeiro, por paradoxal sedução, depois. Não creio que tenha verdadeira leitura para quem não conheça o Brasil. Precisamente o Brasil que Euclides inventa escrevendo-o por paixão de geógrafo e empenhamento jornalístico e político. Em todos os sentidos, “Os Sertões” é um livro não só singular, mas insólito. É como uma estátua da ilha de Páscoa na paisagem, nem sequer literária, brasileira. Está aquém e além da literatura. Certas descrições são célebres (o higrômetro). O todo, inóspito, abrupto, arcaico, tornou-se mítico.
É um livro que o leitor deve construir com o material apenas elaborado do autor que está ao mesmo tempo fora do seu texto e dentro dele. A revolta de Canudos, que devia ser uma mera excrescência da sua ficção ctônica e antropológica, revela-o a si mesmo como um Homero bárbaro, como todos os Homeros. A crônica de um episódio excêntrico de um mundo excêntrico converte-se, graças à sua paixão cívica e ética, em adivinhação e compaixão proféticas por conta do futuro. A crônica de um Brasil como o avesso do Paraíso. Com Antônio Conselheiro como um redentor sem redenção.
Eduardo Lourenço, Folha de S. Paulo, São Paulo, 1º de dezembro de 2002. Caderno mais!