Abraham Ortelius, Joan Martines, ou Thevet, sendo os mais falsos desenhadores do Novo Mundo, foram exatos cronistas de seus primeiros dias. A figura do continente deformado, quase retangular, com as suas cordilheiras de molde invariável, rios coleando nas mais regulares sinuosas, e amplas terras uniformes, ermas de acidentes físicos, cheias de seres anormais e extravagantes – é, certo, incorretíssima. Mas tem rigorismos fotográficos no retratar uma época. Sem o quererem, os cartógrafos, tão absorvidos na pintura do novo typus orbis, desenhavam-lhe as sociedades nascentes; e os seus riscos incorretos, gizados à ventura, conforme lhos ditava a fantasia, tornam-se linhas estranhamente descritivas. Num prodígio de síntese, valem livros. A impressão que se nos amortece, e vai partindo-se no volver das páginas mais vigorosas, ali desfecha num golpe único do olhar. E vemos, como não no-lo mostrariam os mais lúcidos historiadores, os aspectos dominantes do regímen instituído pela conquista das recém-descobertas regiões.
Considere-se o antigo Vice-reinado do Peru.
Ninguém o compreende, de pronto, sem a sugestão de uma daquelas informes caricaturas continentais, que lhe resumem, exagerando-os, os traços incisivos. Sob todas as faces, da administrativa à política, à civil e à religiosa, a sua aparência mais viva é a de suas velhas cartas: monstruosa, artificial, extravagante… O desenhista que lhe riscou, do Panamá à Patagônia, a costa ocidental, maciça, inarticulada, quase sem dobras, perlongando. inteiriçamente, o Mare magelanicum, descreveu-lhe ao mesmo tempo, com um traço, a sociedade rudimentar, sem órgãos, duma grande simplicidade tribal, ou primitiva; e ao figurar-lhe no levante, por vezes com áureas iluminuras, as minas numerosas, as serranias auríferas, as lagoas doiradas, os palácios argênteos guardando os tesouros incalculáveis dos Incas, denunciou o objetivo exclusivo de seus novos povoadores.
De fato, ali não se fundou uma colônia, no significado que, já naquele tempo, lhe sabiam dar os portugueses. A terra, indivisa e sem fins, não se abria ao exercício das atividades, firmando-se a correlação entre as suas energias desencadeadas pelas culturas e as forças sociais consecutivas. Era uma inexpressiva e vasta propriedade. Não era, ainda, um domínio de Espanha, ou o prolongamento ultramarino, onde ela se refugiasse naquele ameaçador entardecer da Idade Média, carregando o seu velho fanatismo católico, a sua lealdade feroz e a sua ferocidade cavalheiresca, abalados aos primeiros fulgores da Reforma. Era um feudo. Um donativo papal a um rei. O maior dos latifúndios sancionado por uma bula. Uma sesmaria que se explorava de longe, desastradamente, de dentro do Escurial; e mandada por um magnífico feitor, que era a sombra passiva do soberano longínquo, o Vice-rei.
Sabe-se no que consistiu a exploração. Delatam-na, melhor que os historiadores, os cartógrafos. No mapa de Descaliers não se vê um rio, ou uma serrania, não se lobriga um acidente físico; vêem-se cidades maravilhosas, vêem-se minas estupendas, e sobre umas e outras, pisoando-as, uns tremendos batalhões de castelhanos barbudos, a tropearem em arrancadas violentas.
Não há concisão fulminante, de Tácito, que valha aqueles riscos lapidários…
Com efeito, a diretriz intorcível da colonização espanhola, traçou-a a primeira tropa de Pizarro, que entrou pelo Peru e caminhou cem léguas para saquear um templo. O processo não variou. Não podia variar. Ali estavam, diante dos conquistadores, gratuitas, requerendo-lhes o só trabalho de apanhá-las, as riquezas surpreendentes da imponente teocracia que ruíra desde o primeiro assalto; e eles volveram, logicamente, em recuo obrigatório, às formas primitivas da atividade militar, sob o impulso irresistível, e até material, do passado milenário que os estonteava.
Assentou-se, então, o regímen daquela centralização estúpida, que lanceiam os pontos de admiração de todos os historiógrafos.
Mas era compreensível. O Vice-rei, procurador bastante de um proprietário, devia, de fato, enfeixar todas as atribuições, das que entendiam de simples casos administrativos, aos assuntos da guerra, às delicadas exigências da justiça. Além disto, o grande ajuntamento ilícito, de soldados e exatores, adscrito a um esforço único, sem funções especializadas, amorfo e inconsistente chegando, acampando, saqueando, saindo – não tinha as exigências complexas de uma sociedade, ou, sequer, de um esboço de sociedade.
Mostram-no as próprias leis, que os regulavam, vedando-lhes a todos, do Vice-rei ao último intendente, o se ligarem à paragem nova pelos vínculos da família, ou da propriedade. Nem um palmo de terra os prendia ao Novo Mundo; nem uma afeição os vinculava a seus destinos.
Os recém-vindos alheavam-se, por sistema, dos hábitos e interesses do país. Naquele saquear-se uma civilização estranha, baqueada, impunha-se-lhes a atividade exclusiva de atestarem os galeões da metrópole com todos os seus efeitos. Fora inconveniente qualquer adaptação, favorecida pelo cruzamento, aparelhando os povoadores de outros atributos de resistência aos novos cenários que se lhes abriam. O título de espanhol, título único a todos os empregos, devera conservar-se intacto na sua mais áspera rigidez nativa, blindado pelo orgulho característico da raça, como um privilégio e uma necessidade política. Embaixo, o filho do país, embora o aparelhassem qualidades superiores, submetia-se ao pecado original de ali ter nascido. O forasteiro mais achamboado e bronco fulminava-o com uma frase, que rompeu séculos, entre o espanto dos cronistas, concentrando a fórmula mais altaneira e pejorativa de um domínio:
Eres criollo y basta…
Deste modo, ia formando-se o agregado absurdo, que era uma espécie de anômalo inorganismo social, sem tendências pessoais definidas, crescendo apenas mecanicamente, como as pedras crescem, pelas superposições sucessivas das levas que partiam de Cádiz.
Daí, a instabilidade. A mínima vontade individual rebelde, combalia-o. A sua história, nos primeiros dias, reduzida a monótona resenha de intermitentes revoltas, traduz-se num círculo vicioso fatigante: qualquer capitão feliz, gérmen ancestral dos caudilhos futuros, ao voltar de uma campanha vitoriosa, contra os Incas remanescentes, tornava-se um perigo público que era preciso afastar… inventando-se outra expedição, que o distraísse.
Por exemplo: o primeiro esboço de subdivisão política do incomensurável domínio, a gobernación de Nueva Toledo, que seria mais tarde o Chile – não atendeu a um princípio elevado de governo. Foi um recurso de ocasião e um meio desesperado, aventando-se entre pavores, de afastar Diego Almagro, o perigoso sócio de Pizarro, para as solidões longínquas do estreito de Magalhães.
Multiplicavam-se sucessos semelhantes. E o domínio castelhano, na América do Sul, consistindo na vasta pilhagem de uma sociedade morta – difuso, inarticulado, informe – como no-lo desenham os antigos cartógrafos, antes de organizar-se ia decompondo-se lastimavelmente.
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Então criou-se a Audiência e Chancelaria Real de La Plata, ou de Charcas, que seria mais tarde a Bolívia, desligando-se daquele conjunto amorfo, como se desliga um mundo de uma nebulosa.
A velhíssima imagem impõe-se. Realmente, ali houve, sobretudo, um fato de evolução: o primeiro sinal da vida no ajuntamento gregário, cuja significação política se perdia, indeterminada, no vago de um conceito geográfico imaginoso. Não há mesmo, talvez, nenhum outro em que melhor se comprazam os que se aventuram a estender aos sucessos sociais o princípio universal da redistribuição da matéria e da força.
Mas não nos delongaremos por aí.
Falam por si mesmos os acontecimentos, no revelarem que a Bolívia foi, entre todas as repúblicas espanholas, a primeira que se delineou em um passado longínquo, rodeando-se, desde o princípio, com os mais notáveis elementos de uma organização poderosa.
As Cédulas Reais que a constituíram, e entre todas a de 29 de agosto de 1563, são o inesperado exemplo de uma resolução da metrópole castelhana, na América, que se discutiu e se afirmou sobranceira aos caprichos da vontade real ilimitada. Retratam a primeira medida governamental, digna deste nome, subordinando-se, esclarecidamente, às exigências do meio. Os seus motivos resultaram de fatores físicos, tangíveis: a distância, e os sérios embaraços de comunicações entre a sede litorânea do governo, em Lima, e as paragens remotas, no levante. Entre estas e aquela, aprumam-se os paredões das cordilheiras, ásperos, abruptos, não raro impraticáveis, alongando os caminhos no torneado das vertentes, agravando-os nos pendores, estirando-os, monotonamente, pelo desnudo das punas enregeladas.
Deste modo, o alvará da metrópole sancionava uma condição imposta pela harmonia natural.
Destaque-se bem este caso: determinou-o a mais imponente fatalidade física de todo o Novo Mundo.
A Bolívia é uma criação dos Andes.
A Cédula Real, definitiva, de 26 de maio de 1573, rematando a gênese do novo distrito, primeiro esboço de uma articulação no organismo inteiriço e rudimentar do Vice-reinado, demonstra-o, claramente, ao prescrever-lhe os limites. Considerando-a, observa-se que as suas divisas ocidentais, ajustando-se às cordilheiras, são claras. Pormenorizam-se, nomeiam-se, especificam-se até nas veredas que por ali serpeiam; e a serrania de Vilcanota, último contraforte da cadeia principal, pelo oriente, tornou-se, por isso mesmo, a última barreira oriental da antiga Audiência de Los Reyes, ou de Lima, no Departamento de Cuzco, traçando-se, rigorosamente, como um limite arcifínio indestrutível. Ao passo que nos quadrantes de N E. e S. E., a entestar os domínios portugueses, a nova Audiência se expandia em extremas incaracterísticas: ao norte, as regiões ainda misteriosas, inçadas de infieles genericamente designados pelos nomes de chunchos e mojos; ao sul, os terrenos do Paraguai, e as províncias de Tucuman e Juries, que hoje se integram na Confederação Argentina. E atendendo-se que estas últimas se segregaram, naquela ocasião, da gobernación transandina do Chile, que se já formara, trai-se, ainda neste incidente, o determinismo natural daquele repartimento político administrativo – no propósito manifesto de incluírem-se na nova circunscrição todos os territórios cisandinos.
De feito, a magistral dos Andes orientais era a única divisória compreensível e estável das duas Audiências, de Lima e de Charcas, uma e outra ilimitadas nos outros rumos defrontando no poente a vastidão do Pacífico, e no levante as terras indivisas dos domínios lusitanos.
Ora, esta subdivisão, a princípio quase apenas judiciária, e resultante imediata do antagonismo entre a centralização antiga e a estrutura da terra, traduziu-se depois como o primeiro estalo no aparelho inteiriço e patriarcal do Vice-reinado.
Realmente, o tribunal supremo instituído em La Plata, destinado a multiplicar-se em doze outros, ulteriores, desde Buenos Aires até Nova Granada, balanceava, não só por Ordenança expressa da metrópole, como pela autonomia advinda daquele afastamento no âmago da terra, a influência do delegado real.
O governo tornara-se mais complexo; e progrediu, diferenciando-se mais e mais, à medida que o sistema regulador preexiste, sem plasticidade para o regímen que nascia, se quebrantava, ou desaparecia, num decaimento inevitável.
Não é preciso exemplificar. Não há, neste lance, a voz dissonante de um só historiador.
Toda a evolução dos Estados hispano-americanos acentua-se e desdobra-se no triunfo gradual e contínuo daqueles governantes mais aditos ao povo, sobre o prestígio tradicional dos Vice-reis, em fases tão golpeantes, nos seus efeitos, que já muito antes de 1810 estes últimos se reduziam a platônicas figuras, meramente decorativas, porque o Conselho das Índias, na Espanha, e as Audiências pretoriais, na América atribuíam-se todos os misteres de governo.
Assim germinaram com a Bolívia os fatores iniciais da independência hispano-americana.
O próprio internamento favorecia-lhe a marcha gradativa para uma harmonia superior de energias autônomas, ao mesmo passo que a distância da costa a libertava da emigração tumultuária, ou atraída pelo anseio exclusivo da vida aventurosa, em cata da fortuna. A cordilheira foi – materialmente – um cordão sanitário. Ao menos, um desmedido aparelho seletivo: para afrontá-la e transpô-la, requeriam-se atributos excepcionais de coragem, pertinácia, vigor. E transpondo-as os mais volúveis forasteiros fixavam-se, forçadamente, ao solo, tolhidos pelas próprias dificuldades da volta.
Ao mesmo tempo, naquelas terras interiores, os jesuítas fundaram as suas mais notáveis Missões, resguardando o elemento indígena, que se dizimava no Peru sob o tríplice assalto simultâneo das guerras, dos repartimentos e das mitas. Viram-se, então, desde logo, fronteirando-se, o melhor das gentes forasteiras e o aborígine. O cruzamento entrelaçou-se como em nenhuma outra possessão espanhola. Surgiu uma gente nova, mais robusta, mais estável, equilibrando-se ao meio, e refletindo, a par dos atributos físicos da aclimação, mais firmes tendências para o domínio e para a luta nos dilatados cenários que se lhe ofereciam.
Ora, por mais díspares que fossem tais estímulos, rompentes do temperamento impulsivo dos mestiços recém-formados -retificou-os, depois, harmonizando-os numa admirável solidariedade de esforços e destinos, uma outra circunstância positiva incontrastável.
Não há obscurecê-la: a contigüidade dos domínios de Portugal, no levante, foi, desde o século XVII, um reagente enérgico para a organização autônoma da Bolívia. As forças, que no litoral peruano se dispersavam e dispartiam em tumultos e revoltas intestinas, ali se compunham num movimento geral e instintivo de defesa. Leiam-se os cronistas do tempo. Os bolivianos acordaram na história aos prolongados rumores de uma invasão. Adestraram-se desde cedo num tirocínio de batalhas. Uniram-se sob o império de uma ameaça, que durou dois séculos. Evoluíram, transfigurando-se, num persistente apelo às energias heróicas do caráter. E disciplinaram-se: os portugueses, no Oriente, eram, sem o saberem, os carregadores incorruptíveis do grande ayuntamiento nacional que se formava.
Estudando-se a constituição territorial da Bolívia, ao chegar-se a Cédula Real de 2 de novembro de 1661 que lhe segregou as províncias de Tucuman e do Paraguai, para constituírem a Audiência pretorial de Buenos Aires, nota-se, ainda uma vez, com a ordenança, aparentemente arbitrária, da metrópole, obedeceu a motivos externos, prementes, inadiáveis.
A Audiência de Charcas não diminuía, mutilada; consolidava-se, concentrando-se. Definia-se. Indeterminada, a princípio, nos quadrantes de N. E. e S. E., apenas demarcada no ocidente pelos Andes, lindava-se, agora, rigorosamente, em toda a banda do sul. Permanecia, certo, indefinida em toda a amplitude das terras setentrionais; mas, neste definido, define-se, eloquentemente, a sua missão histórica. Realmente, a invasão portuguesa, estacionando à margem esquerda do rio Paraguai, alongava-se de suas cabeceiras para o norte – indefinidamente – assoberbando o Mato Grosso e seguindo as linhas naturais do Guaporé e do Madeira até ao Amazonas…
Ora, a Audiência de Charcas foi o bloco continental que lhe contrapôs a Espanha.
Devia ser, como ela, indefinida na direção do norte.
Salientemos bem este fato, preeminente no atual litígio: o território oriental de Charcas era, no dizer enérgico de um de seus mais famosos presidentes, la barrera de todo el Alto Perú, [ 13 ] ante a vaga assaltante dos invasores, que o ameaçavam na orla extensíssima do levante.
É natural que as leis do Livro 2º da Recopilación das Índias, de 1680, sistematizando, ou corrigindo, as cédulas e ordenanças anteriores, no estabelecerem as raias das circunscrições, em que, largamente, ia fragmentando-se o Vice-reinado, traçassem à de Charcas, em pleno contraste com as linhas mais firmes de outros rumos, as mais distensas e vagas no quadrante de NE.
Os seus dizeres são significativos:…
Partiendo términos por el septentrión con la Real Audiencia de Lima y Provincias no descubiertas… por el levante con el mar del Norte y línea de demarcación entre las coronas de los reynos de Castilla y de Portugal por la parte de las provincias de Santa Cruz del Brasil.
Desta forma, as suas extremas setentrionais, apenas definidas nas terras mais abeiradas da cordilheira, a defrontarem as do departamento de Cuzco, ampliavam-se logo, indeterminadamente, para o norte, no difuso de uma penumbra geográfica, provincias no descubiertas. E o que pode afigurar-se de restritivo neste rumo desaparece de todo naquele desafogo largo para o levante. A lei é límpida: os limites por ali iriam até onde fosse a linha de demarcação entre Portugal e Espanha.
As províncias ainda não descobertas, mostra-o o próprio impreciso desta expressão crepuscular, predestinavam-se a extinguir-se, ou a recuar, continuadamente, ante o simples desenvolvimento de uma divisa oriental, que se dilataria, margeando a meridiana, sem termos prefixos, até aonde se estendessem as terras lusitanas, a extinguir-se no Atlântico Norte.
Não há interpretação mais lógica. Todos os antecedentes a esteiam, inabalável.
A fatalidade física, tangível e rijamente geognóstica, que apontamos, há pouco, como determinante da constituição territorial da Bolívia, harmoniza-se, neste caso, com as leis sociais mais altas.
A sua missão histórica erigindo-a, no levante, em barreira protetora dos domínios castelhanos, traçou-lhe desde o princípio, naturalmente – no indeterminado das paragens ainda ignotas, ou no descubiertas, uma diretriz inflexível para o norte, acompanhando, num movimento heroico, os rastros da expansão lusitana.
Eram marchas paralelas, de objetivo dilatado, e cujo termo não poderia prefixar-se.
A zona de ação da Audiência devotada à defesa das possessões espanholas ampliar-se-ia consoante se ampliasse a do adversário pertinaz que ela tinha de defrontar (até por ordem expressa da metrópole, como veremos depois) em todo o desmedido de uma fronteira internacional.
Deste modo, a posse virtual daqueles territórios, de que ela se revestiu historicamente, posse perigosíssima e grave, submetida às responsabilidades tremendas de uma campanha perene, destaca-se, sem dúvida, superior à posse efetiva e pacífica que, acaso, sobre eles ela exercitasse mais tarde.
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Entretanto, são aquelas províncias não descobertas, constituídas dos terrenos ocidentais do Madeira, em toda a faixa desatada da foz do Mamoré à semidistância daquele, que se lhe contestam, e formam a presente zona litigiosa.
Vimos-lhe, no capítulo anterior, a superfície enorme. E, se nos alongássemos numa exposição analítica, mostraríamos que ela se esboçou quando se lindaram, em 1680, as audiências convizinhas, em que se tripartiu o Vice-reinado do Peru – como um território relegado à apropriação futura, consoante a capacidade delas, e neutro naquela divisão audiencial. Provincias no descubiertas são palavras que ressoam, monotonamente, nos deslindes de 1680. Entre a Audiência de Quito, que formaria depois o Equador e se estendia naquele tempo para o sul até ao médio Ucayali; a de los Reyes, ancestral do Peru, expandida para leste até as margens do Inambari, limitando rigorosamente a diocese de Cuzco; e a de Charcas, expressão histórica da Bolívia, limitada em todos os sentidos, exceto no que lhe marcava um papel preeminente na evolução americana – encravava-se a massa continental, ignota, impérvia e misteriosa, velada quase até aos nossos dias, em toda a área que se alarga entre o médio Madeira e o Javari.
Portanto, no ventilarem este ponto, com os decrépitos testemunhos coloniais dos séculos XVI e XVII, uniformes apenas no darem uma expressão legal à ignorância absoluta que havia acerca daqueles lugares, os Estados colitigantes só podem iluminar, ou esclarecer, o assunto, de uma maneira originalíssima: apelando para os dados mais obscuros, dúbios e vacilantes, ou vendando-se com aquela espessa noite geográfica, onde, como vimos, tanto se atarantaram, tontos, “às cegas”, às encontroadas, completamente perdidos no escuro, os negociantes de 1750.
Com efeito, não há prodígios de perquirição sutil e tenaz que nos revelem, por exemplo: até onde se estendiam, ou sequer, onde se localizavam os prófugos infieles, Chunchos e Mojos, cujas terras se incluíam nas de Charcas, ladeando as províncias não sabidas.
Os recursos cartográficos são, neste caso, desesperadores.
Prescrevem aos misteriosos aborígines os mais vários e contrapostos habitats ora às ourelas direitas do Ucayali; ora às do Beni; ou, mais distantes, a estirarem-se pelas ribas do Amazonas.
Os selvagens vagabundos são, evidentemente, os mais erradios dos selvagens, vagueando ao mesmo tempo pelas selvas e pelos mapas.
Por outro lado, os documentos escritos, memórias, roteiros, ou crônicas, e até os mais lisamente legais – cédulas, ordenanças, ou ofícios – engravescem e multiplicam sobremaneira todas as dúvidas.
Aprende-se a ignorar, lendo-os. Recordam típicos compêndios de erros. Sistematizam o absurdo. A mentira ressalta-lhes divinizada nos mais românticos devaneios. Nas suas linhas faz-se uma filtração pelo avesso: a inteligência penetra-as, límpida; atravessa-as, torturada; sai impura. Cada página é um diafragma, por onde se nos insinuam, por endosmose, todas as sombras do passado. No emperramento de seus termos duros, descontínuos a despeito da pobreza de vírgulas, onde as idéias se desunem, desarticulando-se, deformadas ou decompostas, retrata-se, irritantíssima, uma espécie de gagueira gráfica, visível; e não há espírito que se equilibre nas suas vacilações, nas suas alternativas, no vaivém de seus repetimentos intermináveis, nos seus hiatos distensos, nas suas pasmosas confusões originárias. Ali todas as opiniões encontram um texto favorável. A verdade é bifronte. Firmam-se todos os critérios. As deduções irradiam. Os conceitos geográficos disparam. Lemos aquelas milhares de páginas; cirandamo-las: não fica uma partícula de realidade. Fica uma preocupação: esquecê-las no menor prazo possível.
Cada um daqueles cronistas, cada um daqueles geógrafos, ou mesmo historiógrafos, cada um daqueles pequenos proprietários do Caos, como os estigmatizaria Carlyle, é um desordeiro que se faz mister afastar pata que se não perturbe o pleito.
Afastemo-los.
O deslindamento tem recursos mais positivos, mais lúcidos, mais sérios.
Esboçamos, retilínea e inquebrável, a diretriz histórica da Bolívia.
Vejamos como ela se acentua e se ajusta em todos os seus pontos aos elementos mais rigorosos no refletirem os intuitos da metrópole.
CUNHA, Euclides da. Peru versus Bolívia. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/peru-versus-bolivia/. Acesso em: [data]. Texto-base: CUNHA, Euclides da. Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1.