Correspondência ativa de 1905

Sumário

Manaus, 12 de janeiro de 1905

Afonso Arinos

Somente hoje posso mandar-te uma breve notícia — tais as atrapalhações, tais os embaraços que nos saltearam aqui, nesta ruidosa, ampla, mal-arranjada, monstruosa e opulenta capital dos seringueiros. Eu escrevo-te doente. Consequências do glorious clime de não sei se ilustre ou se ingênuo Bates. Este delicioso clima traduz-se num permanente banho de fibras dos buritis e nas artérias o sangue frio das sucuruiúbas. Não o suporto. A febrícula de 38° que me assaltou é menos um caso patológico que um incidente físico — o sangue precipita-se como o mercúrio dos termômetros — e a febre aparece apenas como um reflexo da canícula.

Daí a minha ânsia de partir, buscando a forte diversão do meu duelo com o deserto na majestosa arena de 500 léguas que nos dá o Purus. Mas esta ansiedade vivo a matá-la todos os minutos, vendo a todo o momento a minha grande boa vontade a tropeçar e a cair batida por não sei quantos pormenores e questões secundárias com que não contava. Felizmente a gente é boa. Em que pese ao cosmopolitismo excessivo desta Manaus — onde em cada esquina range um português, rosna um inglês ou canta um italiano — a nossa gente ainda os domina com as suas formosas qualidades de coração e a mais consoladora surpresa do sulista está no perceber que este nosso Brasil é verdadeiramente grande porque ainda chega até cá.

Realmente, cada vez mais me convenço que esta deplorável rua do Ouvidor é o pior prisma por onde toda a gente vê a nossa terra. Mas… ponto. Em outra carta serei bem mais extenso. Propositadamente nada te digo, hoje, da gente e da terra. Qualquer ponto que eu escolhesse me levaria muito longe e o fim único desta é mandar-te saudades, infinitas saudades, e um grande abraço (um abraço apertado bem perto de 22° de latitude!) do teu

Euclides

Em tempo — Muitas recomendações à Exma. sra. assim como a todos os bons amigos daí.

E.

Manaus, 13 de janeiro de 1905

José Veríssimo

Meu bom amigo,

escrevo-lhe dissentindo abertamente da sua opinião sobre este singularíssimo clima da Amazônia ― e embora ela, já de si mesmo valiosa, tenha o reforço de Wallace Walleis, Maury e quantos cuidaram deste assunto, não posso forrar-me à experiência dolorosa neste instante ― menos pela sujeição da coluna mercurial desde ontem firme em 30°, que por um completo aniquilamento orgânico ― me revela as exigências excepcionalíssimas de uma aclimação difícil. Em carta neste momento escrita ao Arinos disse que quem resiste a tal clima tem nos músculos a elástica firmeza das fibras dos buritis e nas artérias o sangue frio das sucuriúbas. E, sem o querer, achei o traço essencial deste portentoso habitat. É uma terra que ainda se está preparando para o homem ― para o homem que a invadiu fora de tempo, impertinentemente, em plena armação de um cenário maravilhoso. Hei de tentar demonstrar isto. Mostrarei, talvez, esteiando-me nos mais secos números meteorológicos, que a natureza, aqui, soberanamente brutal ainda na expansão de suas energias, é uma perigosa adversária do homem. Pelo menos em nenhum outro ponto lhe impõe mais duramente o regime animal. Neste perpétuo banho de vapor todos nós compreendemos que se possa vegetar com relativa vantagem, mas o que é inconcebível, o que é até perigoso pela soma de esforços exigidos, é a delicada vibração do espírito e a tensão superior da vontade a cavaleiro dos estimulantes egoísticos. É possível que uma maior acomodação me faça pensar de outro modo, mais tarde. Neste momento, porém ― em que a pena me escorrega dos dedos inundados ― não sei como traduzir o glorious clime de Bates. Não há exemplo de um adjetivo desmoralizado (felizmente em inglês!).

Falta-me o tempo para continuar neste desabafo, o único que me permite o ambiente irrespirável. Preciso dar-lhe breve conta de mim.

Entreguei a sua carta ao dr. Goeldi e não preciso dizer-lhe como me recebeu ele, e que duas horas inolvidáveis passei a seu lado pelos repartimentos e entre as maravilhas de um dos mais notáveis arquivos do mundo. Mais tarde, e talvez pela imprensa, direi a minha impressão integral.

Escrevo-lhe às carreiras, sem tempo e sem saber como… não dizer, como evitar o tumulto de coisas que desejava contar-lhe. Se o fizesse, deixaria de escrever não sei quantas outras cartas e não sei quantos ofícios.

Levo ― nesta Meca tumultuária dos seringueiros ― vida perturbada e fatigante. Ao mesmo tempo que atendo a sem número de exigências do cargo, sofro o assalto de impressões de todo desconhecidas. Foi um mal esta parada obrigatória, que não sei até quando se prolongará: perdi uma boa parte de movimento adquirido, para avançar no deserto. Mas resignei-me, bem certo de que a minha velha boa vontade não afrouxará com tão pouco e confiante na minha abstinência espartana no reagir ao clima. Alguns graus de febre que tive, ao chegar, passaram ― e espero que não tenham sido um lugubremente gentil cartão de vista do impaludismo, pressuroso em atender ao hóspede recém-chegado.

Em outra carta serei bem mais extenso. Agora, é impossível. Escrevo apenas para dizer-lhe que estou bom, animado e seguro de cumprir a missão. Quero que abrace por mim ao nosso grande e querido mestre Machado de Assis, Araripe Júnior, Graça Aranha e João Ribeiro.

Recomende-me muito à Exma. senhora e filhos ― e creia que é com as maiores saudades que lhe mando um abraço

Euclides da Cunha

Manaus, 14 de janeiro de 1905

Ao barão do Rio Branco

Saúdo a V. Exa. ― e confirmo a minha carta de 8 em que dei breve notícia do que temos feito. Pouco há que aditar nesta. Apenas quanto ao traçado real do Chandless, a que me referi ― nossos informantes insistentemente se referem a um outro afluente, a montante do Araçá, e que por muito tempo teve o nome do notável explorador. Vê-se bem como variam os pareceres sobre assuntos tão simples ― impondo a todas as informações o corretivo de uma observação ulterior, direta.

Colhi sem número de outros dados sobre a estrutura e importância mineralógica de alguns terrenos que atravessaremos ― e entre eles os que se referem a grandes bacias de carvão de pedra nas cercanias do Riscala.

Tais esclarecimentos, nem sempre uniformes, aceito-os apenas como indicação para o exame local, mais tarde.

Num ponto, porém, os mais práticos conhecedores daqueles lugares se uniformizam: não devemos demorar muito a nossa partida. Perdida a quadra favorável do começo da enchente, teremos de desempenhá-la através dos mais imprevistos obstáculos. Assim a nossa estada nesta cidade deve dilatar-se no máximo até princípios de fevereiro.

Quando disse aí a V. Exa. que em 5 ou 6 meses poderíamos realizar todos os trabalhos contava com o aproveitamento completo daquela quadra, que dia a dia vamos perdendo, a braços com muitas dificuldades no adquirirmos meio de transporte. O sr. coronel Belarmino já deve ter prestado a V. Exa. amplas informações sobre este ponto. Mas ainda que sigamos em meados de fevereiro tenho ainda a certeza de efetuar os trabalhos, com relativa presteza, permitindo a nossa volta em agosto, e sem prejuízo ao rigor das operações.

Ontem, aproveitando o primeiro céu propício que nos apareceu desde a nossa chegada, determinamos, em circunstâncias favoráveis, o ângulo horário do sol, ou, em tempo, a hora média de Manaus ― da qual deduzimos um primeiro estado absoluto dos nossos cronômetros sobre o tempo local.

Continuamos insistentemente nestes trabalhos ― e em diários exercícios de levantamento expedito que nos afeiçoem o mais possível aos levantamentos rápidos. Todos os meus companheiros continuam admiravelmente dispostos à nobre tarefa que V. Excia. lhes confiou.

Sempre com verdadeira veneração, subscrevo-me

Euclides da Cunha

Manaus, 16 de janeiro de 1905

Meu ilustre amo dr. Oliveira Lima

Como com a exiguidade da minha letra para mandar-lhe algumas notícias entre os pequenos limites deste cartão.

Falta-me o tempo para a felicidade de uma longa conversa consigo. Quanta coisa a dizer! — o desapontamento que me causou o Amazonas, menos que o Amazonas que eu trazia na imaginação; a estranha tristeza que nos causa esta terra amplíssima, maravilhosa e chata, sem um relevo onde o olhar descanse; e, principalmente, o tumulto, a desordem indescritível, a grande vida à gandaia dos que a habitam… Estou numa verdadeira sobrecarga de impressões todas novas, todas vivíssimas e empolgantes. Preciso de uma situação de equilíbrio para o espírito. Quando a conseguir lhe escreverei longamente, o que será para mim verdadeira felicidade.

Não faltará, então, o tempo. A nossa estagnação do Rio, não se acabou; moveu-se apenas 3000 milhas, para Manaus. Aqui estamos quase que de braços cruzados, expectantes! Os peruanos chegaram com as lanchas arrebentadas, exigindo consertos que atrasarão 2 meses! Imagina as contrariedades e até dissabores que isto nos causa. Levar meses de inércia e de amolecimento nesta Cápua canicular dos seringueiros! E eu vinha num belo arremesso, ansioso por me encontrar, frente a frente, com o deserto!…

Resigno-me. Felizmente em que pese ao clima, — e para mim incompreensível gloriou clime, de Bates — vou indo bem. Mande-me notícias suas. Respeitosas saudações à Exma. sra. e receba apertado abraço de

Euclides

Manaus, 18 de janeiro de 1905

Muito de propósito, Porchat, escrevo-te nas aperturas deste cartãozinho para mandar-te notícias minhas.

Tenho medo da saudade…

Temos que ela se expanda livremente em quatro páginas. É o que mais me dói nesta vida aventureira: as imagens dos amigos constantemente evocadas e cada vez mais impressionadoras à medida que se aumentam as distâncias. Quero escrever-te a correr, como quem foge de uma tortura.

Como vão os teus?

Eu, firme na minha envergadura esmirrada e seca, faço neste clima canicular prodígios de salamandra. Vou bem. Nem o mais ligeiro abalo, agora. Fiz as pazes com o sol do Equador e adapto-me admiravelmente na atmosfera úmida e quente, feita para as fibras das palmeiras e os nervos dos poetas. Manda-me notícias de todos e não te esqueças nunca do

Euclides

Manaus, 22 de janeiro de 1905

Dr. Edgard Jordão

Recebi a sua conferência, aqui, nesta cidade, onde me prendem os trabalhos preparatórios para a próxima viagem às cabeceiras do Purus; e, apesar das perturbações do momento, não me forrei à ansiedade de a ler.

Foi uma felicidade. Não o digo sob o grande abalo, muito compreensível, que meu causou a sua tão nobilitadora simpatia, senão inspirado pela imagem surpreendedora de um belo e robusto espírito que irrompe daquelas páginas tão desassombradamente triunfantes.

Permiti-me um lance de vaidade; revi-me um pouco naquelas ousadias e no fulgor da sua palavra, e, por momentos, volvidos perto de quinze anos, escutei o eco longínquo de muitos ideais desaparecidos. Ora, esta só evocação justificaria o meu mais fervente agradecimento, excluída e a cativante gentileza com que me nomeou, alevantando-me aos mais altos cimos do espírito nacional.

Mas o que sobretudo me surpreendeu na sua oração forma o desgarre revolucionário, o aprumo de pensar e uma esplêndida rebeldia de conceitos, revelando-me, improvisadamente, um desses trabalhadores muito jovens, mas aos quais nós, que vamos enfraquecendo no meio da jornada, cedemos de muito nosso bom grado o passo, confiando-lhes — com o maior carinho e com o maior entusiasmo — a defesa das nossas mesmas aspirações.

Não o lisonjeio; não quero agradá-lo.

Estou a dois passos do deserto e nas vésperas de uma viagem, inçada de tropeços, dessas em que a gente leva carta de prego para o Desconhecido.

Talvez, não volte. Falo, portanto, como quem se confessa. Falta-me até o tempo para alisar a sensaboria dessa folga delicadeza entrajada das frases engomadas do bom-tom.

Escrevo-lhe como a um irmão mais moço, a quem nunca vi — e sinto-me verdadeiramente feliz, considerando que ele será em breve uma componente nova das nossas energias intelectuais, tão desfalecidas nestes dias.

Manda-lhe um grande abraço de amo. e admor.

Euclides da Cunha

Manaus, 22 de janeiro de 1905

Porchat

Mando-te um grande abraço e muitas recomendações a todos os teus. Escrevo-te à carreira e por não lutar inutilmente com as saudades. Falta-me de todo o tempo — totalmente absorvido pelos mil nadas de profissão. De sorte que esta carta — uma carta escrita por mim, e do Amazonas! — que deveria aí chegar dilacerada de pontos de admiração — aí chega massudamente familiar só para te dizer que estou bom e desejo notícias tuas. Mais tarde, então, conversaremos.

Quero também pedir-te um favor: recebi do dr. Edgard Jordão, um belo discurso, e nesta data escrevi-lhe, agradecendo. Não sabendo, porém, onde ele assiste — enderecei a carta para a Tipografia Andrade e Melo, onde foi impresso o trabalho. Quero que veles sobre esta carta de modo que seja recebida.

Perdoa-me o laconismo. Mais tarde — ainda que escreva das tristes solidões onde me vou perder — hei de dar-te longas notícias.

Adeus. Muitas saudades aos teus. Um abraço a todos os amigos. Creia sempre no teu

Euclides

[Manaus, 23 de janeiro de 1905]

[Ao barão do Rio Branco]

Escrevo a V. Exa. apenas para dizer-lhe que aqui continuamos sem novidades aguardando as instruções que ainda não chegaram, assim como a solução do pedido anteriormente feito relativo à aquisição dos avisos de guerra e lanchas. Fora desviar, sem vantagem compensadora, a atenção de V. Exa. o alongar-se relatando os dados e informações que tenho colhido sobre as regiões do Purus. Como já tive a honra de declarar em carta anterior, nenhum deles, a meu parecer, exclui a observação direta. São em geral duvidosos e não raro controvertidos.

Aguardo, por isso, ansiosamente, o dia da partida. Mas, infelizmente, prevejo que mesmo depois de aplainadas as nossas dificuldades quanto à aquisição de meios de transporte nos restará demora forçada esperando que se aprontem as comissões peruanas, tal a morosidade verdadeiramente inexplicável com que se estão reparando as suas lanchas nos estaleiros de Belém.

Aguardando sempre as determinações de V. Exa., subscrevo-me com a maior consideração

Euclides da Cunha

[Manaus, 1905]

Domício da Gama

Mal tenho tempo de escrever-te. Manaus, onde eu julgava ficar tão poucos dias e onde estacamos de improviso, a braços com os maiores empecilhos na aquisição de meios de transporte é hoje para mim uma Cápua abrasadora, trabalhosa, que me devora energias, menos pelo excesso de felicidade que pela sobrecarga de preocupações. Imagina esta situação de parada forçada e inaturável na minha engenharia de César. Quis chegar, observar e voltar, mas cheguei e parei. Estaquei à entrada de meu misterioso deserto do Purus; e, para a maior infelicidade, depois de caminhar algumas três milhas, caí na vulgaridade de uma grande cidade estritamente comercial de aviadores solertes, zangões vertiginosos e ingleses de sapatos brancos. Comercial e insuportável. O crescimento abrupto levantou-se de chofre fazendo que trouxesse, aqui, ali, salteadamente entre as roupagens civilizadoras, os restos das tangas esfiapadas dos tapuias. Cidade meio caipira, meio européia, onde o tejupar se achata ao lado de palácios e o cosmopolitismo exagerado põe ao lado do ianque espigado… o seringueiro achamboado, a impressão que ela nos incute é a de uma maloca transformada em Gand.

Imagina como atravesso estes dias agravados pela canícula de 30° à sombra e à noite… na constância formidável de uma estufa. Daí a moléstia, em que pese à minha organização de salamandra.

Escrevo-te com febre, uma febre monótona em que o termômetro se arrasta traiçoeiramente, com uma lentidão medrosa, a 37° e 38° — resolvi diariamente solicitara aliança perigosa de um médico. Do teu

Euclides

[Manaus, 1º de fevereiro de 1905]

[Ao barão do Rio Branco]

Saúdo a V. Exa. e tenho a honra de lhe enviar o incluso esboço, cópia fiel de um outro que me deu o sr. general José Siqueira de Menezes, recém-vindo da Prefeitura do Alto Purus. Foi organizado por um caucheiro inteligente e conhecedor daquelas paragens. Como verá V. Exa., não tem escala, verdadeira caricatura da terra, é feita consoante a norma comum adotada por todos os vaqueanos — mas, a meu parecer, bastante claro e expressivo não só no designar os vários pontos habitados, e afluentes, como pela indicação segura de muitos varadouros, completada com os tempos indispensáveis às respectivas travessias.

Entre vários esclarecimentos, nele se vêem os nomes dos dois galhos extremos do Purus em cuja intersecção W. Chandless parou, sem os batizar. Nota-se que num deles, Cujar, o varadouro para a bacia ulterior do Ucaiale é, talvez, no máximo, de um quilômetro (15 minutos de marcha naturalmente pouco acelerada), distância inapreciável ante a vastidão dos vales dos dois grandes rios. Verifica-se também, com maior clareza do que nas demais cartas, a existência, entre o Purus e o Juruá, de numerosos varadouros, sobretudo entre os tributários S. Rosa e Envira — assim como a breve travessia de ½ dia entre os último afluentes do Juruá e o Ucaiale.

Muitos outros elementos descortinará a lúcida atenção de V. Exa. neste esboço, cuja fidelidade me foi garantida pelo digno general Siqueira de Menezes.

Confrontados, ele e a carta impressa no Boletim da Sociedade de Geografia de Lima, da qual V. Exa. tem uma ampliação feita por mim, notam-se numerosos pontos de contato, parecendo, entretanto, que o esboço atual sobre ser mais pormenorizado é muito mais seguro nas designações locais e disposição geral da rede hidrográfica das cabeceiras.

De qualquer modo, são novos elementos destinados a ulteriores verificações no decorrer da nossa viagem.

Aqui continuamos aguardando que se removam as últimas dificuldades para a a partida.

Apresentando a V. Exa. os protestos da mais elevada consideração, subscrevo-me

Euclides da Cunha

Manaus, 2 de fevereiro de 1905

Meu bom amigo dr. José Veríssimo

Felicidades, muitas felicidades e a todos os seus. Escrevi-lhe talvez há uns dez dias, de sorte que posso ser breve neste bilhete destinado apenas a apresentar-lhe os meus bravos companheiros de expedição. Lá estou ladeado pelo tenente Argolo Mendes (ajudante substituto) e dr. Arnaldo Cunha (auxiliar técnico). Ao lado destes, os comandantes da nossa tropa de 30 praças (dez vezes menos do que a dos imortais de Leônidas!) alferes Antônio Cavalcanti e Francisco Lemos. Ao fundo, em ordem sucessiva da direita, o encarregado do material, coronel R. Nunes, o dr. M. da Silva Leme, secretário, o dr. Tomás Catunda, médico, e o fotógrafo E. Florence. Aí estão os homens. Quantos voltarão? Qual o primeiro a desertar do pequeno grupo cheio de desassombro e esperanças?…

Aqui estamos, aguardando ainda o dia da partida que talvez ainda de delongue, tão vagarosamente se estão aplainando as dificuldades que encontramos. A propósito ocorre-me um confronto bem eloquente. O grande explorador W. Chandless, inglês, quando chegou a Manaus, a fim de explorar esse mesmíssimo rio Purus, encontrou da parte do Governo provincial e até do povo o mais eficaz e poderoso auxílio. E estávamos em pleno fervor da Questão Christie! E Chandless era inglês! e Chandless era um simples sócio viajante da Sociedade Geográfica de Londres!

Nós, brasileiros, revestidos de uma comissão oficial, encontramos empeços indescritíveis! Certo, temos mudado muito, meu ilustre amigo…

Corrijo um tópico da minha carta anterior. Escrevendo-a sob uma temperatura exaustiva de 30 graus, não tolhi algumas amargas considerações sobre este clima. Era uma impressão passageira. Já estou meio reconciliado com ele. Já compreendo um pouco o glorious clime de Bates, o delightful clime de Wallace e até o céus de opalas de Mornay. Desde o dia 13 que nã aponto a temperatura sequer de 28°! e neste janeiro afogueado temos tido manhãs primaveris e admiráveis.

Noutra carta conversaremos melhor. Isto é um bilhete, à carreira. — Muitas lembranças a todos os seus. Saudades a todos os amigos — e creia sempre no

Euclides da Cunha

Manaus, 5 de fevereiro de 1905

Cartão-postal

A Machado de Assis

[Anverso]: Casebre com coqueiros [Reverso]:

Nesta choupana de roça,
De aparência tão tristonha,
Mora, às vezes, uma moça
Gentilíssima e risonha.
E o incauto viajante
Quase sempre não descobre
A moradora galante
De uma choupana tão pobre
E passa na sua lida,
Para a remota cidade,
Deixando, às vezes, perdida
Num ermo, a Felicidade…

Manaus, 14 de fevereiro de 1905

[cartão]

Ao amo dr. Firmo Dutra

Euclides da Cunha saúda e agradece.

[Manaus — 14 de fevereiro de 1905]

Ao amo dr. Firmo Dutra

Euclides da Cunha saúda e agradece.

[Cartão]

Manaus, 20 de fevereiro de 1905

[telegrama]

Ao visconde de Cabo Frio

Ante extraordinária demora peruanos consultei se posso seguir na frente conforme exemplo outras comissões mistas. Urge vinda instruções nossa partida urgentíssima.

Manaus, 10 de março de 1905

Coelho Neto

Quando fui hoje ao correio para assistir à abertura da mala do “Gonçalves Dias” levava a preocupação absorvente de encontrar cartas de casa porque vai para dois meses que não as recebo. Nem uma! Mas (temperamento singular o meu, feito para todas as dores e para todas as alegrias) recebi toda garrida, embora vestida de preto, a tua carta gentilíssima. E foi como uma janela que se abrisse de repente no quarto de um doente… Obrigado, meu esplêndido companheiro de armas! Jamais avaliarás os resultados da tua verve tumultuada neste meu tédio lúgubre de Manaus. Manaus ― ha uma onomatopeia complicada e sinistra nesta palavra ― feita do soar melancólico dos cabarés e da tristeza invencível do Bárbaro. Não te direi os dias que aqui passo, a aguardar o meu deserto, o meu deserto bravio e salvador onde pretendo entrar com os arremessos britânicos de Livingstone e a desesperança italiana de um Lara, em busca de um capítulo novo no romance mal-arranjado desta minha vida. E eu devia estar dominando as cabeceiras do rio suntuoso, exausto nos primeiros boleios dos Andes ondulados. Mas, que queres? Manietaram-nos aqui as malhas da nossa administração indecifrável e só a 19 ou 20 deste receberemos as instruções que nos facultarão a partida. Imagina, se puderes, as minhas impaciências. Esta Manaus rasgada em avenidas, largas e longas, pelas audácias do Pensador, faz-me o efeito de um quartinho estreito. Vivo sem luz, meio apagado e num estonteamento. Nada te direi da terra e da gente. Depois, aí, e num livro: Um Paraíso Perdido, onde procurarei vingar a Hiloe maravilhosa de todas as brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século XVIII. Que tarefa e que ideal! Decididamente nasci para Jeremias destes tempos. Faltam-me apenas umas longas barbas brancas, emaranhadas e trágicas. Vamos a outro assunto. Chegou tarde o teu pedido sobre a próxima eleição da Academia. Já o Veríssimo me comunicara a renúncia do Vicente, indicando-me o Sousa Bandeira. Mandei-lhe o meu voto pelo vapor passado. Entretanto da tua carta à dele medearam apenas 30 e poucas horas que foram do avançamento do “S. Salvador” sobre o “Gonçalves Dias”. Caprichos da fortuna.

Não te esqueças de ir com tua Senhora visitar as minhas quatro enormes saudades na minha fazendinha de Laranjeiras. Escreve-me sempre e sempre. As tuas cartas serão recebidas mesmo no Alto Purus.

12º filho! Não sei se devo dar-te parabéns por esse transbordamento de vida. Neste tempo e nesta terra as criancinhas deviam nascer de cabelos brancos e um coração murcho, meu velho Coelho Neto. De mim penso que uns restos de mocidade nacional estão nas almas de meia dúzia de sexagenários dos bons tempos de outrora. Entre esses desfibrados e jovens imbecis tenho às vezes, vontade de perguntar a um Andrade Figueira, a um Lafayette e a um Ouro Preto se já fizeram vinte anos. Ma façamos ponto, alto! neste rolar pelo declive do meu pessimismo abominável.

Adeus. Até a volta, porque, ― infalivelmente ― ainda te apertará em um abraço o teu

Euclides da Cunha

[Manaus, 10 de março de 1905]

Exmo. sr. barão do Rio Branco

Saúdo a V. Exa., e confirmo o meu telegrama de anteontem no qual declarei, respondendo ao que V. Exa. teve a bondade de enviar-me, que a diminuição forçada da verba suplementar de cinquenta contos, que eu requisitara, não constitui impedimento à nossa partida, embora aumentasse as dificuldades que nos rodeiam. Pela comunicação oficial que hoje envio ao Exmo. sr. visconde de Cabo Frio, verá V. Exa., documentados, os fundamentos da minha afirmativa. Realmente, satisfeitas todas as despesas que já fizemos e todas as que temos de fazer — em que se incluem os vencimentos de todo o pessoal até ao fim de março, compra de lancha, batelão e canoas etc. — ainda nos restará a quantia de quarenta contos livres, com os quais hei de fazer face a muitos imprevistos e aos gastos da navegação, orçados, aproximadamente em 200$ por dia.

De qualquer modo estou em condições de seguir e é bem possível que ao receber V. Exa. esta carta já esteja a comissão em marcha. Temo apenas que se retardem demais os reparos da lancha peruana, e que o dever de aguardá-la faça que se percam alguns dias. Prevendo este contratempo, tenho — respeitadas todas as exigências das nossas relações obrigatoriamente cerimoniosas — insistido com o comandante A. Buenaño, chefe da Com. peruana, do Purus, para que se ativem aqueles reparos e, de acordo com o que ele me tem prometido, espero que estejamos todos prontos na data conveniente, isto é, quatro ou cinco dias depois do recebimento das instruções.

Já vamos um pouco tarde — em plena vazante — e certo depararemos tropeços que não teríamos de houvéssemos seguido em janeiro, como sempre pensei. A Boca do Chandless será, talvez, o mais remoto ponto que alcançamos com a navegação em lancha, e dali a montante teremos de prosseguir em canoa, muito vagarosamente. Previ, porém, todas as dificuldades. Caso me seja fornecida em tempo a lancha da Marinha (de 2 pés de calado) que aqui existe, poderei contar com muitos quilômetros mais de navegação a vapor, facilitando consideravelmente os trabalhos. Não tive, porém, até agora, resposta do telegrama que neste sentido passe a V. Exa. Mas, ainda que não obtenha aquela embarcação, julgo ainda praticável o reconhecimento e adotei para isto todas as medidas, que fora longo minudear, garantidoras do êxito desejado.

Antes de partir escreverei a V. Exa. Darei então mais amplos esclarecimentos sobre a nossa situação real.

De V. Exa. Comp. crdo. e amo. e abrdo.

Euclides da Cunha

P. S. — dei à lancha e ao batelão os nomes de “Cunha Gomes” e “Chandless”, justa homenagem aos abnegados exploradores do Javari e de Purus.

Manaus, 10 de março de 1905

Meu ilustre amo. dr. José Veríssimo

Não lhe posso definir a satisfação que me causou a sua carta — magníficas palavras de amigo que as 3000 e tantas milhas que nos separam tornaram, mais solenes e ouvidas por mim com verdadeira comoção. Aqui estou no meu posto sempre animado, sempre pronto à minha arrancada atrevida com o desconhecido. Mas que torturas, meu amigo, nesta longa parada com que eu não contava! Podia estar longe, podia estar nesta hora dominando as cabeceiras do Purus! E ainda não parti — e somente no dia 19 deste chegarão as instruções!! Pontos de admiração deveria espalhar nestas linhas? Como é difícil o ter-se boa vontade e disposição para servir a este país! O que sobretudo me impressiona, agora, é o havermos perdido a melhor quadra para a subida. Estamos em plena vazante — e temos que muito antes da foz do Chandless a nossa marcha, por mais aferrada que ela seja, tenha de encalhar na vasa dos baixios. Certo não me fraqueará o ânimo: marcharei a pé para o meu objetivo. Mas nem quero imaginar os empeços, as dificuldades, os perigos e até as torturas que nos esperam…

Vou, felizmente, bem. A minha reconciliação com o clima de Manaus é completa; e isto eu já disse na segunda carta que lhe escrevi, e que já deve ter recebido. Não tenho, infelizmente, tempo para continuar neste assunto. Preciso responder a outros tópicos da sua carta.

Também senti muito não ter conhecido o dr. Barroso Rebêlo. Saltei em Belém como um cego — numa lancha oferecida pelo senador Lemos —; tomei um carro oferecido pelo mesmo e andei vertiginosamente pelas majestosas estradas acompanhado por um representante do mesmo senhor. Não tive um minuto para procurar o oposicionista destemeroso. Assim mesmo fiz uma das minhas rebeldias: ao passar por uma rua, li num letreiro Folha do Norte — e com surpresa do companheiro mandei parar o carro, saltei, e fui cumprimentar a redação.

Afirmo-lhe que “o homem não me empolgou”. Fiquei-lhe grato pela gentileza, nada mais.

Quanto à eleição da Academia, lamentei o recuo do Vicente. Penso como o sr.: voto no dr. Sousa Bandeira, que sempre considerei um belo espírito, sincero e robusto. Mas tempos desfalecidos que atravessamos precisamos de tais companheiros.

Não se esqueça de ir com a sua família, sempre que desejarem dar um passeio, até a minha fazendinha de Laranjeiras, onde vivem as minhas quatro grandes e permanentes saudades.

Acha bom o título Um Paraíso Perdido para o meu livro sobre a Amazônia? Ele reflete bem o meu incurável pessimismo. Mas como é verdadeiro!? — Machado de Assis, Araripe Júnior, João Ribeiro, Teixeira de Sousa (aliás, de Melo), Jaceguai, Domício da Gama, de nenhum deles me esqueço. Abrace-os por mim. E adeus. Muitas recomendações a todos os seus.

Creia sempre na afeição sincera do

Euclides da Cunha

[Manaus, 1905]

[A Artur Lemos]

Se escrevesse agora esboçaria miniaturas do caos incompreensíveis e tumultuárias, uma mistura formidável de vastas florestas inundadas de vastos céus resplandecentes.

Entre tais extremos está, com as suas inumeráveis modalidades, um novo mundo que me era inteiramente desconhecido…

Além disso, esta Amazônia recorda a genial definição do espaço de Milton: esconde-se em si mesma. O forasteiro contempla-a sem a ver através de uma vertigem.

Ela só lhe aparece aos poucos, vagarosamente, torturantemente.

É uma grandeza que exige a penetração sutil dos microscópios e a visão apertadinha e breve dos analistas: é um infinito que deve ser dosado.

Quem terá envergadura para tanto? Por mim não a terei. A notícia que aqui chegou num telegrama de um meu novo livro, tem fundamento: escrevo, como fumo, por vício. Mas irei dar a impressão de um escritor esmagado pelo assunto. E, se realmente conseguir escrever o livro anunciado, não lhe darei título que se relacione demais com a paragem onde Humboldt aventurou as suas profecias e onde Agassiz cometeu os seus maiores erros.

Escreverei Um Paraíso Perdido, por exemplo, ou qualquer outro em cuja amplitude eu me forre de uma definição positiva dos aspectos de uma terra que, para ser bem compreendida, requer o trato permanente de uma vida inteira.

Manaus, 14 de março de 1905

Ao distintíssimo mestre e bom amigo Machado de Assis

Euclides da Cunha

Muito afetuosamente e com as maiores saudades, saúda-o; promete escrever-lhe mais longamente e envia-lhe o seu voto para a próxima eleição da Academia.

[Cartão de visita. Impresso: Euclides da Cunha]

Manaus, 14 de março de 1905

[cartão de visita]

Ao distintíssimo mestre e bom amigo Machado de Assis

Euclides da Cunha

Muito afetuosamente e com as maiores saudades, saúda-o; promete escrever-lhe mais longamente e envia-lhe o seu voto para a próxima eleição da Academia.

Manaus, 15 de março de 1905

Argolo

Não desço para não agravar o calo. Comunique-me o que houver digno de nota. Até logo.

Recado do amo e comp.

Euclides
P.S. ― Diga ao Lima que me mande o ofício do dr. Catunda sobre os remédios de que ontem ele me falou, e o teu sobre as canoas.

Manaus, 15 de março de 1905

À Academia Brasileira de Letras

Para a vaga de José do Patrocínio

voto no Ilmo. dr. Vicente de Carvalho

Euclides da Cunha

Manaus, 17 de março de 1905

Domício da Gama

Beijo-lhe as mãos pela grande bondade com que atendeu ao meu telegrama pedindo notícias da minha família. Passei-o coagido, sob o império de preocupações torturantes; há quase 2 meses que não tinha uma carta de casa!

Felizmente, estou tranquilo e posso devotar-me, folgadamente, à minha tarefa. Estou pronto. Aguardo apenas as instruções (que chegarão depois de amanhã, no Espírito Santo) para seguir. Infelizmente o chefe peruano, do Purus, insistentemente me pede para seguirmos juntos, e como a sua lancha talvez se demore um pouco, já estou contando com mais alguns dias de demora, aqui. De qualquer modo, ao chegar esta aí, já estarei bem avantajado no rumo temerário da minha empresa. Vou animado, e bem firme na convicção de dominar as cabeceiras do grande rio; e como não creio que os hemetozoários e filárias cobicem a minha organização estéril e seca, de nervoso, o triunfo será inevitável.

Às voltas com preocupações e trabalhos de toda a sorte, esquecem-me às vezes os meus próprios interesses. Exemplo: o sr. barão do Rio Branco, espontaneamente, entendeu mandar gratificar-me pelos serviços que prestei, aí, antes da nomeação. Nunca mais pensei nisto. Recebi um telegrama da minha mulher, a este respeito, para mandar-lhe uma procuração que aí devia chegar antes do fim do mês, para que não caísse em exercícios findos aquela gratificação, que importa em quatro contos e duzentos. Mas não atendi a tempo ao pedido. A procuração que vai por este vapor, só aí estará de 6 a 8 de abril.

Para remover o inconveniente passei ontem a ela um telegrama, autorizando-a a receber aquela quantia, no Tesouro. Não sei se será eficaz. No caso contrário peço a sua intervenção, expondo o caso ao ministro, que providenciará com a justiça habitual.

Nada posso contar desta terra. Escrevo num batelão em consertos, no meio de um estrépido estonteador de martelos e serrotes. Nem sei como alinhavo estas linhas. Escreverei de mais longe. Creia sempre na afeição sincera do

Euclides da Cunha

Manaus, 17 de março de 1905

À Academia Brasileira de Letras
Para a vaga de

José do Patrocínio

voto no Ilmo. dr. Heráclito Graça

Euclides da Cunha

Manaus, 18 de março de 1905

Meu grande mestre e amigo Machado de Assis

Felicidades! Em carta registrada, que lhe mandei por intermédio de José Veríssimo, já tive o prazer de enviar o voto ao dr. J. C. de Sousa Bandeira, para a vaga de José do Patrocínio, obedecendo ao que me recomendou em telegrama o barão do Rio Branco.

Este voto vai em duplicata, refletindo uma situação dúbia em que me acho, e que o sr. terá de resolver aí, conforme as circunstâncias. Realmente, remeto para uma mesma vaga dois votos, um para Vicente de Carvalho, outro para Heráclito Graça.

A razão é que, havendo eu sugerido ao primeiro a apresentação de sua candidatura na eleição passada, firmei, de algum modo, com ele, um compromisso permanente. Despertei-lhe uma aspiração; não posso abandoná-lo. Trata-se de um querido amigo a quem estimo pelo coração e pelo talento — e como pode acontecer que ele (a despeito do insucesso anterior) se apresente ao novo pleito, entendo que devo ir, espontaneamente, ao encontro desta hipótese.

Confio à sua argúcia finíssima de adestrado psicólogo o justificar esse exagero da afeição, ou mais esta minha esquisitice no considerar as coisas desta vida.

De qualquer modo a solução é simples: se o Vicente for candidato na eleição para a cadeira do Patrocínio, é dele o meu voto; se não for (o que é quase certo) voto com o máximo prazer em Heráclito Graça, a quem não conheço pessoalmente, mas a quem tanto admiro e prezo como notável sabedor da nossa língua.

Estou nas vésperas da partida; e não lhe posso contar as preocupações que me lavram o espírito, num entrechocar de coisas tão opostas e que vão das grandes esperanças, que me arrebatam fortemente para o desconhecido, às saudades dolorosíssimas, que tanto me atraem às paragens onde está neste momento toda a minha felicidade.

Propositadamente abrevio as cartas às pessoas que estimo. Doem-me muito, neste momento, todas as boas recordações… A dureza da minha missão temerária qusse que me impõe o olvido dos belos corações que tanto desejo que batam, um dia, outra vez, ao meu lado. Felizmente me alenta uma certeza absoluta e inexplicável de que voltarei. Hei de voltar. Hei de abraçá-lo ainda e aos bons amigos aos quais peço que transmita as minhas saudades. Creia sempre na maior veneração e verdadeira estima do

Euclides da Cunha

Manaus, 19 de março de 1905

José Veríssimo

Meu ilustre amigo,
desejo-lhe muitas felicidades e a todos os seus.

Depois de escrita a carta que lhe mandei pelo vapor passado, recebi uma outra do dr. Sousa Bandeira e um telegrama do barão do Rio Branco relativamente às próximas eleições da Academia. Já remeti os votos: o de Sousa Bandeira, na carta precitada, que seguiu registrada — e o da eleição seguinte (vaga de José do Patrocínio) por este vapor. Votei em Heráclito Graça — condicionalmente — isto é, desde que Vicente de Carvalho não seja candidato. Explico bem o caso na carta que nesta data envio ao nosso querido mestre. Aproxima-se o dia da minha partida; e, certo, eu a realizaria logo depois da chegada das instruções se não houvesse de aguardar que se aparelhem os peruanos. Não sei bem que tempo gastarão ainda. Noto que têm pouca pressa. Não se agitam. Quedam numa adorável placidez, em que se partem todas as minhas impaciências. Espanhóis ardentíssimos, álacres e ruidosos pra as zarzuelas e para todas as requintadas troças desta desmandadíssima Manaus — são quíchuas, quíchuas morbidamente preguiçosos quando se trata de partir. Chego a imaginar que não os interessa a empresa ou que mal a toleram, contrariados. E como nos querem mal! O interessante é que cheguei a esta conclusão, paradoxalmente, mercê da minha finura nativa de caboclo ladino. Porque cada um desses amáveis sujeitos, ao encontrar-nos, todo se desfaz em sorrisos, em multiplicados cumprimentos e em dizeres açucarados. Fica-lhes velado, no âmago, o malquerer traiçoeiro. Afinal me ajeito à minha esgrima; disfarço-me; e vibro, como posso, a ironia terrível da cordialidade hipócrita e temerosa em que vivemos. O futuro confirmará, talvez, essas conjeturas; e sem o aguardar, eu, se fosse governo, trataria de garantir as três largas brechas do Javari, do Juruá e do Purus, por onde deslizarão um dia, ao som das águas, as suas frotas velozes de lanchas e de canoas… Não veja nisto apreensões patrióticas, que não tenho. Mas uma conclusão positiva: não há país no mundo que como o Peru e o Brasil vizinhem em paragens tão majestosamente opulentas. O conflito — quaisquer que sejam os paliativos atuais da arbitragem — arrebentaria como uma larga generalização das rixas insanáveis do seringueiro e do caucheiro, absolutamente irreconciliáveis.

Peço-lhes muito — e estendo o pedido particularmente à sua Exma. senhora — que visitem sempre as minhas 4 imensas saudades, no retiro das Laranjeiras onde, idealmente, passo o melhor do meu tempo.

Não sei se ainda lhe escrevi daqui. Não cessarei de dar-lhe notícias. Faça o mesmo, porque é sempre com a satisfação mais íntima que recebe notícias suas, o seu, muito cordialmente,

Euclides da Cunha

Manaus, 20 de março de 1905

Exmo. sr. barão do Rio Branco

Cumprimento a V. Exa. e exponho os pontos essenciais de nossa situação, nas vésperas da nossa partida. Conforme as minhas comunicações anteriores, organizei a expedição de acordo com o restrito da verba que me coube e determinação expressa de V. Exa. Assim, o nosso material flutuante, composto de uma lancha a vapor (à parte a da marinha que ainda não está em nosso poder), um batelão e seis canoas, está pronto e tenho certeza que bastará às exigências principais da navegação e efetuar-se, embora sem o conforto e melhores requisitos que teria se dispuséssemos de maiores recursos.

Noto, felizmente, da parte dos companheiros boa vontade e ânimo capazes de compensarem tais desvantagens, e conservo, por isto, a antiga segurança de êxito que sempre tive.

Infelizmente, porém, seguimos já muito tardiamente — em plena vazante, de sorte que, atendendo à circunstância imperiosíssima do tempo que temos de reaver, e tendo de harmonizá-la com as instruções recém-chegadas — não poderão efetuar-se os trabalhos de reconhecimentos hidrográficos, com a continuidade indispensável. Explicando melhor: para executar desde já aquela operação seria mister que viajássemos somente durante o dia, o que duplicará o tempo de nossa chegada ao terminus da navegação regular, por maneira a torná-la inatingível nesta estação. Resolvemos, por isto, navegar dia e noite, fazendo durante o dia, as observações necessárias, registrando os trechos estudados, e deixando para a volta, em que poderemos viajar somente durante o dia, o encargo de uma revisão geral calcada sobre a carta de W. Chandless, na qual se farão as correções e ampliações que comportar. É a solução única imposta pelas circunstâncias: e de modo algum ela afetará o rigorismo dos trabalhos, desde que tanto na ida, como na volta, se fixem, astronomicamente, os pontos principais do rio. Além disto, como evidentemente as posições geográficas dependem, sobretudo, do estado dos cronômetros, e o acidentado da viagem perturbará a marcha daqueles, impõem-se muitas paradas obrigatórias para determinação de sucessivos estados absolutos. Também, como meio único de reduzir a extensa série de causas perturbadoras, e inevitáveis erros decorrentes de transportes cronométricos, devem-se multiplicar tanto quanto possível as observações em caminho de modo que as diferenças de longitudes, sucessivamente adquiridas, muito apropriadamente, facultem maior exatidão nos resultados finais, mercê de uma larga subdivisão das causas perturbadoras. Justifico assim o alvitre acima exposto visando aproveitar um tempo que nos é tão evidentemente escasso.

Ulteriormente farei uma resenha das dificuldades que aqui se nos antolham para a organização definitiva da partida. Pormenorizá-las agora seria tomar a V. Exa. um tempo, que sei preciosíssimo e dedicado a muitas outras questões. Limito-me, por isso, à apresentação daquele traçado plenamente geral da nossa marcha e dos nossos trabalhos. Em caminho, sempre que puder e houver matéria digna de nota, escreverei a V. Exa., tendo bem presente a recomendação verbal que aí me fez.

Apresentando os meus protestos da maior consideração, subscrevo-me,

De V. Exa. comp. crdo. e amo. obrdo.

Euclides da Cunha

Manaus, 20 de março de 1905

Rangel (10 ½ da noite)

Só — inteiramente só — na saleta estreita da tua bucólica tebaida… Ou melhor, eu e algumas sombras: frei João de São José, o estrênuo Ricardo Franco, o meticuloso Lacerda e Almeida e não sei quantos outros mais… Calcula, se puderes, a nossa grande orgia silenciosa e formidável — de velhos sucessos acabados e estupendos lances para todo o sempre extintos. O velho frade, castamente voltaireano, com o seu belo dizer castíssimo conta-me os casos antigos da Amazônia velha; o impávido tenente-coronel de engenheiros; as suas quatro ou cinco odisseias sertanejas; e o maior explorador de todos os tempos e de todos os países, o molde secular de todos os Livingstones e de todos os Stanleys, a sua peregrinação maravilhosa do “equador visível” aos últimos rebentos meridionais da Mantiqueira!

E vão-se lentamente escoando as horas nesta palestra esquiliana e sem palavras… O Firmo saiu: está neste momento prosaicamente decaído sob o olhar adoravelmente fulminante de uma noiva. Lá dentro o Manuel, cotovelos fincados na mesa, cabeceia deploravelmente sobre uma cartilha de ABC, amarrotada — e um grande, um misterioso silêncio rendilhado de fugitivos rumores de folhagens agitadas de leve — torna mais solene esta esmagadora quietude. Certo, se de momento em momento, um angustiado espirro da bronquite crônica do teu galinho, o “louquinho” no diagnóstico do Firmo, não me chamasse à realidade chatamente térrea, eu veria abrir-se misteriosamente a tua estante da esquerda e dela irromper o torturado Rollinat, de braço dado com

l’éternelle dame en blanc qui voit sans yeux et rit sans lèvres,

tal augusta placidez que nesta hora morta avassala inteiramente a tua encantadora vila…

Então lembro-me de ti —, imagino-te ao lado do melhor entre os melhores corações que te idolatram — e toda a minha saudade se extingue numa grande e nobilizadora inveja — tão grande que só este pecado de invejar a tua felicidade de filho bastaria para que se me abrissem todos os céus (se os céus existissem) — com toda a minha incorrigível impiedade.

A nossa partida está próxima. Chegaram ontem as instruções — e desde que se realize a reunião dos comissários — iremos rumo feito para o desconhecido.

A minha frota: duas lanchas (uma ainda problemática), um batelão e seis canoas — flutua triunfalmente ao extremo do igarapé de São Raimundo — e teve ontem o batismo de uma tempestade.

Nunca imaginei que este rio morto escondesse, traiçoeiramente, ondas tão desabridas. Uma rajada viva de sudoeste imprime-lhe as crispações ensofregadas de um mar — e que mar! Um mar entre barrancas em que as vagas desencadeadas se desatam em corredeiras impetuosas de torrentes…

Felizmente resistiram galhardamente os meus navios. É que dentro deles está a “fortuna de César”. Realmente. Creio tanto no meu destino de bandeirante, que levo esta carta de prego para o desconhecido com o coração ligeiro. Tenho a crença largamente metafísica de que a nossa vida é sempre garantida por um ideal, uma aspiração superior a realizar-se. E eu tenho tanto que escrever ainda…

Li na Província do Pará as tuas generosas palavras a meu respeito. És um coração! Não exultou, lendo-te, a minha vaidade — uma infeliz sacrilegamente apedrejada em toda a parte e que nem sei como ainda vive! — mas o orgulho, o grande orgulho de possuir a tua simpatia.

Um favor, mas favor sacratíssimo, de irmão. Na rua do Cosme Velho 91 (atual Rua de Francisco Octaviano), Laranjeiras — moram as minhas 4 enormes Saudades — a minha mulher e os meus três pequenos. Peço-te que os procures e lhes dês notícias minhas.

Antes de seguir, hei de escrever-te outra vez. Responda-me.

Receberei a carta mesmo em caminho, por intermédio do Firmo, que a enviará.

Adeus, Rangel. Apresenta os meus respeitos à tua boa mãe; peço-te que me recomendes aos amigos (não terás grande trabalho nisto) — e que te não esqueças nunca do

Euclides da Cunha
P.S — O Firmo é o que desde o primeiro dia imaginei: um companheiro adorável.

Mas sob outros pontos de vista — um paradoxo, o mais estranho paradoxo vivo que tenho encontrado: atravessa os dias a esbravejar, à maneira de Schopenhauer, contra o sexo frágil — e invariavelmente, das 7 às 10, todas as noites entoa o mea culpa do noivado, contrito, sob o olhar carinhoso e vigilante da futura sogra… Magnífico!

[Boca do Acre, 4 de maio de 1905]

[Ao barão do Rio Branco]

Saúdo a V. Exa. desejando-lhe felicidades. Aqui chegamos ontem sem novidades e reataremos amanhã a nossa marcha para a frente. Nada de interessante tenho a relatar a V. Exa., à parte as dificuldades, previstas, da viagem. Em que pese ao comunicado com o comissário peruano, na boca do Purus, estamos realizando todo o levantamento hidrográfico dia e noite, a partir de Cachoeira, e persistiremos neste trabalho até o fim de sorte que o nosso contralevantamento, corrigindo ligeiros deslizes, traçará bem regularmente o curso de todo o rio. Descobrimos já alguns senões bem grandes nas cartas existentes, que se me afiguram todas calculadas no Chandless — que, sendo admirável como primeiro traçado, é deficiente como trabalho definitivo. Ulteriormente, enviarei a V. Exa., esboçados, os frutos que conseguimos, e outros dados. Agora é impossível. A nossa partida é urgentíssima e mal me basta o tempo para a apressar. O rio está baixando consideravelmente. Acredito, entretanto, que ainda navegaremos até Catai ou muito perto. Há, felizmente, da parte do comissário peruano, a maior disposição, uma grande firmeza e a mesma boa vontade. Desta identidade de vistas tem resultado a maior cordialidade que, acredito, persistirá. Sinto bastante não poder prosseguir. Mal posso escrever estas linhas e envio a V. Exa., em nome dos meus companheiros de trabalho, as mais respeitosas saudações, pedindo ao mesmo tempo que acredite na maior consideração do compatriota […]

Euclides da Cunha

Manaus, 11 de maio de 1905

[telegrama]

Domício da Gama

Peço encarecidamente notícias minha família

Saudações Saudades

Euclides da Cunha

[Novo Destino, 17 de maio de 1905]

[A Rio Branco]

Saudando a V. Exa., e desejando-lhe felicidades, tenho a satisfação de lhe comunicar que aqui chegamos — sem que o menor incidente tenha alterado a regularidade da nossa marcha e o curso de nossos trabalhos. Amanhã cedo prosseguiremos, buscando a boca do Chandless, onde ainda acredito que chegaremos de lancha, apesar de vazante crescente do rio. Não preciso dizer a V. Exa. que a comissão peruana tem, por sua vez, seguindo ao nosso lado, cumprido admiravelmente o seu dever, reinando entre os seus membros e os da nossa a mais perfeita harmonia. Estou convencido do êxito de nossa missão. Mesmo que não consigamos ultrapassar, nas lanchas, a boca do Chandless e tenhamos de prosseguir em canoas — e por fim a pé — dominaremos até princípios de julho todas as cabeceiras do Purus, descendo para Manaus com os primeiros repiquetes da enchente. Na travessia que realizamos temos conseguido muito, já pelo que diz respeito à retificação de muitos trechos, visivelmente errados, deste rio, já pelos resultados do exame dos terrenos, cuja constituição é absolutamente desconhecida da ciência. Nenhum destes dados, porém, tem um caráter de urgência justificando uma comunicação imediata. Assim esta carta (escrita às pressas e talvez destinada a extraviar-se porque vou confiá-la ao primeiro portador que descer) tem o fim único de comunicar a V. Exa. a nossa situação nesta data. Já calculei os pontos principais da linha a que V. Exa. se referiu e procurarei fixá-los pela observação astronômica.

Terminando, desejo a V. Exa. todas as felicidades e subscrevo-me com a maior consideração.

Euclides da Cunha

Boca do Chandless, 25 de maio de 1905

José Veríssimo

Meu bom amigo, — tenho dois minutos para lhe dizer: estou bom e a braços com inopinadas dificuldades resultantes de uma partida tardia de Manaus.

O Purus, daqui para cima, mal tem profundidade para uma montaria modesta. A montante estão onze vapores e lanchas encalhados! As nossas seguiram o destino comum. O deserto agarrou-me covardemente, pelas costas, meu bom amigo!

Mas não vacilo. Hoje conferenciarei com o comissário peruano sobre a situação — e hei de apresentar-lhe o meu alvitre único: para a frente, mesmo que seja a pé. Felizmente estou forte, ou melhor, com a minha saúde invariável, de sempre. Muitas saudades a todos os seus — e se puder dê estas notícias minhas aos meus. Lembranças aos amigos. Seu sempre

Euclides da Cunha

Boca do Chandless, 25 de maio de 1905

[Ao Pai]

Mal tenho tempo de dizer-lhe que estou bom.

Aproveito um portador apressado que desce em canoa para Manaus, porque o Purus vazou exageradamente, prendendo no seu leito quase seco os vapores que aqui estavam. O mesmo sucedeu às nossas lanchas. Teremos que continuar em canoas. Começam os trabalhos. Felizmente estou bom assim como todos os companheiros. O clima é benigno, neste ponto; e se não fossem os mosquitos infernais que nos devoram estaríamos perfeitamente.

Muitas saudades a Adélia e Otaviano.

É impossível escrever-lhes agora. Ao sr. mesmo nem sei como consegui mandar estas linhas escritas sobre a bota e diante de um portador que me pede pelo amor de Deus para terminar.

Saudades, muitas saudades!

Abraços do filho amo.

Euclides

Novo Lugar (Acampamento da Comissão Administrativa brasileira), 5 de junho de 1905

Meu Pai

desejo-lhe muitas felicidades. Aqui cheguei bem — assim como os companheiros. Vimos em viagem penosíssima, de canoas, mas não tenho um só doente, um só escoriado entre a minha gente. Continuo animado, apesar do naufrágio do nosso batelão, no dia 21 de maio, que me obrigou a dividir a comissão. Sigo somente com o Arnaldo e o médico. E vamos melhor. Estamos agora em regiões povoadas por peruanos. Mas neste sentir-me fora da nossa terra tenho novo alento, maior entusiasmo e segura resolução de seguir. Conto com o êxito. No máximo em dois meses atingiremos as cabeceiras e estaremos de volta.

Não posso, infelizmente, conversar mais longamente com o sr. O portador que encontrei vai muito apressado e apenas me concedeu poucos minutos para uma notícia.

Lembranças e saudades a todos.

Abençoe ao filho e amigo

Euclides

[Funil, 8 de junho de 1905]

[Ao barão do Rio Branco]

Cumprimento a V. Exa. de Novo Lugar — sede provisória da Comissão Administrativa brasileira — parti ontem chegando hoje, pela manhã a este sítio. Vim só. Tornando-se necessário que eu demorasse três dias em Novo Lugar para um melhor acondicionamento dos nossos gêneros em uma nova canoa grande — permiti ao chefe da comissão peruana que viesse na frente — ao modo que a nossa comissão aqui chegou isolada. E foi bom. Como sabe a V. Exa., neste sítio houve o fuzilamento de vários peruanos em outubro de 1904. As sepulturas estão próximas — de sorte que ontem, logo depois da chegada, toda a comissão peruana seguiu para o improvisado cemitério. Nada haveria de estranhável no fato, significando uma piedosa homenagem a compatriotas infelizes — se não a completasse um outro, denunciando outras disposições. Na sepultura rasa do centro foi posta no sucedâneo de grande cruz de madeira uma folha de zinco onde se traçaram, a tinta verde, estes dizeres:

† 10-1904

F. La Fuente
F. Ruiz
d. Ocampa
P. Reategui
M. Montalbáu

Peruanos fusilados y quemados
por bandoleiros brasileiros

Este ato, praticado com a aquiescência do chefe peruano, ligado a outros anteriores, faz-me concluir que vou entre irreconciliáveis inimigos. O sr. Pedro Alex Buenaño sobrecarrega-me de atenções; é para mim todo sorrisos e cumprimentos e eu seria verdadiramente injusto se lhe apontasse a menor incorreção. Mas domina-o uma irreprimível paixão patriótica — e como nem sempre os seus atos são bem ponderados —, começo a entrever complicações capazes dos piores resultados. Por exemplo: hoje hei de encontrá-lo e dificilmente poderei suportar as expansões da sua dor caso — como é de prever — ele dirija a conversação para tal assunto. Pretendo evitar, de pronto, qualquer troca de ideias sobre a questão, fazendo-lhe por minha vez sentir quão dolorosa será ela para mim. Mas conhecedor do temperamento do meu colega — envio desde já a V. Exa. esta comunicação que mais tarde talvez sirva para explicar muitos acontecimentos. Um incidente explicativo: no dia 6 do corrente, na sede da Comissão Administrativa, conversávamos eu e o com. Borges Leitão e o sr. D. Pedro Buenaño, que ali fora retribuir a visita feita pelo comissário brasileiro. Num dado momento, aproximou-se o sr. Pedro Joaquim de Sta. Ana — e, com surpresa nossa, o sr. Buenaño recusou-lhe a mão. Explicou depois (pedindo-nos desculpas) que o fizera porque o referido Sta. Ana tomara parte nos conflitos com os peruanos. Assim avaliará bem V. Exa. o caráter e o estado de espírito daquele companheiro de trabalhos. Não posso continuar. Escrevo na proa da minha canoa prestes a seguir porque devo encontrar-me hoje com aquela comissão.

Euclides da Cunha

Novo Lugar (Acampamento provisório da Comissão administrativa de Alto Purus), 5 de julho de 1905

Exmo. sr. barão do Rio Branco

Cumprimento a V. Exa. e tenho a honra de comunicar que cheguei ontem aqui, vindo da boca do Chandless de onde parti, com a comissão peruana, no dia 30 de maio, ao meio-dia. Fez-se a travessia mais rapidamente do que eu imaginava, considerando-se a morosidade das canoas de voga e as paradas obrigatórias para o levantamento feito a princípio com a luneta de Lugeol e bússola. Nenhum incidente desagradável, à parte os tropeços naturais que se prevêem.

No dia 3 encontramos, abarrancados à margem esquerda do rio, a Comissão administrativa peruana, perto do ponto em que encalhou a lancha Fênix que lhe conduzia os materiais.

Nada ali recordava um acampamento militar. Os soldados, alojados em cabanas de paxiúba, feitas às pressas no chão mal destocado de uma derrubada recente, lembravam uma turma de caucheiros, vestidos de todos os modos e num abandono que consternou profundamente ao meu colega de comissão, d. Pedro Buenaño. O comissário tenente-coronel Masul Bedaya (gentilíssimo no trato) não tem, absolutamente, envergadura para as responsabilidades e tropeços da tarefa que lhe deram.

Deixamo-los no mesmo dia, depois de uma parada de umas horas que aproveitei em examinar 38 volumes nosso, que vinham despachados na Fênix.

Entre o Chandless e aquele ponto a região é deserta, aparecendo junto às margens uma ou outra barraca abandonada. Dali até aqui, porém, muito mais povoada de brasileiros. Porto de Mamoriá, fronteira de Cassianã e Novo Triunfo são três sítios florescentes, de laboriosos e robustos cearenses que firmam bem nestes lugares o domínio da nossa terra. Envio a V. Exa. a cópia do “croquis” do levantamento do trecho entre as duas comissões.

Está apenas orientado e, como todo o esboço, pouco dirá quanto às distâncias. Levantei-o a relógio e a bússola — porque no dia 2, reconhecendo a morosidade que nos acarretava a Lugeol, propus ao chefe peruano e ele aquiesceu, que apressássemos deste modo — corrigindo-se quaisquer deslizes no contralevantamento.

Com as nossas canoas carregadíssimas, o primeiro processo (que aplicarei na volta) nos demoraria consideravelmente. Pelo esboço que tive a honra de mandar verá V. Exa. que vamos um pouco além do levantamento ligeiro das instruções. E é necessário: todas as plantas que por aí existem do Purus são cópias desonestas de trabalho primitivo, de Chandless — e convencido agora desta circunstância, farei todos os esforços no sentido de retificá-la, embora de maneira incompleta.

A Comissão brasileira — felizmente — é o reverso da peruana, tem ordem e uma direção firme. Foi para nós verdadeira felicidade o encontrá-la — pelos auxílios que espontaneamente nos ofereceu e prestou o comandante Borges Leitão. Pretendo prosseguir amanhã. Mas como encontramos o médico daquela Comissão seriamente doente, de maneira a ser logo entregue aos cuidados do da nossa, temo que tenhamos de nos demorar mais algum tempo — o que nos contraria bastante. Escrevo, como sempre, a V. Exa. de afogadilho e com a atenção dispersa, tendo que velar e cuidar sobre tanta coisa. Conto, por isso, que me desculpe sempre todas as incorreções. Em comunicação anterior dei conta do naufrágio do nosso batelão de gêneros e da resolução forçada de dividir a comissão. A parte que ficou com o ajudante substituto, na praia de S. Brás, está em boas condições e aparelhada para aguardar a minha volta. Aquela divisão, imposta pelas circunstâncias, veio revelar-me os graves inconvenientes das numerosas comissões nestes lugares. Vamos agora menos apercebidos de recursos, e melhor. Estou convencido de que a maneira única de se trabalhar eficazmente em tais expedições — é a velha maneira de Chandless: um engenheiro (dois no máximo) e alguns remadores robustos: fora disto cai-se num círculo vicioso deplorável: muita gente para o transporte de gêneros, muitos gêneros para o sustento da gente.

Ontem à noite, com uma altura meridiana apenas, a beta do Centauro, determinei a latitude deste ponto — 9° 6’ 02” latitude (Novo Lugar). Vou repetir o trabalho de hoje. Quanto à outra coordenada ainda não pude firmá-la, porque ainda não se firmou a marcha de nossos cronômetros, depois do abalo do naufrágio. Pela comparação com os da comissão peruana, verifiquei que possuímos ainda um em muito boas condições e com ele espero fazer alguma coisa aproveitável. Vou com a atenção despertada para o ponto do Purus atravessado, digo, em que passa a ortodrômica Javari-Inhambari, e esclarecido pelos cálculos que enviei a V. Exa. em comunicação anterior.

A Comissão peruana de reconhecimento está acampada na praia fronteira, não tendo sido aceita a hospedagem que lhes ofereceu de pronto o comandante Borges Leitão. Espera-me, para prosseguirmos juntos amanhã.

Sempre que houver um portador — como neste momento — escreverei a V. Exa. dando notícias nossas, embora o tenha de fazer sempre rapidamente.

Tenho escolhido alguns dados interessantes, acerca dos sucessos que aqui se desenrolaram entre brasileiros e peruanos. Mas falta-me de todo o tempo para continuar. Não consigo reter mais o portador que se presta a levar esta carta.

Vamos todos bem. Não tenho sequer um escoriado entre os que me acompanham nesta tarefa pesada, e penso que assim sucederá até ao fim. Desejando as maiores felicidades a V. Exa., subscrevo-me com a mais elevada consideração.

De V. Exa. comp., criado ato. ador.

Euclides da Cunha

[Manaus, 19 de outubro de 1905]

[Ao barão do Rio Branco]

Cumprimento a V. Exa. e comunico chegada nesta cidade cumprida comissão todos seus pontos essenciais. Segui até vale Ucaiale atravessando varadouro Curiuja investindo até se esgotarem completamente gêneros e as águas, tendo porém informações certíssimas sobre a pequena parte não percorrida. Planta rio até cabeceiras levantada duas vezes subida e descida, retificando-se muitos pontos cartas existentes. Determinadas coordenadas pontos principais. Salvo ligeiras moléstias todos bons nessa cidade. Ativarei trabalhos escritório. Breve oficiarei longamente a V. Exa. sobre estes assuntos mas estou pronto desde já dar informações que forem necessárias sobre região atravessada.

Respeitosas saudações

Euclides da Cunha

[Telegrama]

[Manaus, 1º de novembro de 1905]

[Ao barão do Rio Branco]

Cumprimento a V. Exa. desejando-lhe felicidades assim como a Exma. família. Hoje receberá V. Exa., aí, juntamente com esta, um ligeiro relatório dos nossos trabalhos e a primeira planta que desenhamos dos nossos levantamentos. Infelizmente não tivemos tempo de reduzi-la; mas a escala, quase topográfica, em que está traçada, tem o valor de mostrar mais claramente a posição geral da terra. Verá V. Exa. que aquelas longínquas regiões estão muito mais povoadas do que se acreditava.

Devemos começar amanhã — em companhia do comissário peruano — a redação da carta definitiva. Discordamos em muitos pontos quanto às coordenadas. Mas tais divergências, mui ligeiras, de poucos minutos, não poderão ter consequências prejudiciais, segundo penso. Além disso teremos um fiscal ou um juiz que muito aprendemos a venerar nesta viagem, o ilustre Chandless, talvez o mais honesto e pertinaz entre todos os geógrafos que têm estudado a nossa terra. Na planta que hoje enviamos há muitas correções a fazer-se, mas não serão grandes, apenas em alguns minutos em latitude e longitude — em alguns pontos. Assim, poderá ser consultada com segurança, ficando V. Exa. desde já com o conhecimento pleno de todo o Alto Purus.

Estamos ativando os nossos trabalhos, a fim de seguirmos quanto antes para essa capital. Então, a viva voz, completarei, nos seus pontos mais delicados, as informações que dei a V. Exa. quanto às relações das duas comissões, e fatos que ocorreram no Alto Purus em 1904.

Com a mais elevada consideração, subscrevo-me.

Euclides da Cunha

Manaus, 8 de novembro de 1905

José Veríssimo. Meu ilustre amigo

Afasto por um momento a papelada que me esmaga, para escrever-lhe esta, num cantinho da minha mesa de trabalho. Mas ainda desta vez nada lhe poderei contar, senão que estou bom, embora pressinta que os longos dias de ansiedade, de misérias e triunfos passados nas cabeceiras do Purus me prejudicaram a vida. Misérias e triunfos… somente à viva voz lhe poderei contar como fundi aquelas coisas antinômicas, numa batalha obscura e trágica com o deserto. Além disto, estas coisas não se podem contar quando se tem a cabeça a doer de logaritmos.

Até breve. Saudades — profundas saudades a todos. Muitas recomendações à sua Exma. família e receba apertado abraço do

Euclides da Cunha

[Manaus], 9 de novembro de 1905

[cartão de visita]

Firmo

peço-te um punhado de favores:

1° ― manda-me o retrato e as […]

2° ― venha logo ― às 2 horas até aqui trazendo o desenhista. Recado do teu

Euclides

Manaus, 10 de novembro de 1905

Firmo

O dr. Teixeira não me deixou sair, ontem.

Não apareceu o desenhista; e como não sei onde ele mora peço-te que o procures fazendo que ele venha aqui, no escritório, até as 11 horas sem falta. Desculpa-me este abusar da tua bondade, e até logo

Recado do

Euclides

[Manaus, 22 de novembro de 1905]

[A Rio Branco]

Completamente absorvido pelos trabalhos de escritório tenho feito a V. Exa. comunicações muito rápidas, apenas sobre assuntos que não podem ser delongados. Somente à viva voz, aí, poderia apresentar mais amplos esclarecimentos sobre o Alto Purus, além dos que, estritamente técnicos, são matéria do relatório oficial que estamos ultimando.

Mandei fazer um álbum com cerca de cem fotografias, complemento natural dos nossos trabalhos, para que se ajuíze melhor sobre a terra e povoadores daqueles lugares.

A que vai aí, como amostra, define bem a fisionomia e a atitude de um desconhecido land lord do Alto Purus.

Muito provavelmente partiremos daqui nos primeiros dias de dezembro. Desculpe-me V. Exa. a rapidez com que vai sendo escrita esta carta e creia na maior veneração.

Euclides da Cunha

Manaus, 30 de novembro de 1905

Exmo. sr. barão do Rio Branco

Cumprimento respeitosamente a V. Exa. e envio-lhe, de acordo com o que me ordena num dos seus telegramas, o retrato do tenente-coronel da Guarda Nacional José Cardoso da Rosa. Como verá V. Exa. ele foi oferecido pela própria viúva daquele nosso patrício ao encarregado de Material desta comissão, e poderá ser reproduzido aí. Procurando eu, subsequentemente, a referida sra., que é a sogra de Fritz Carral, consegui a fotografia deste ousado caucheiro que mais tarde enviarei.

Não consegui infelizmente o retrato do sr. coronel Ferreira de Araújo, e lamento não me haver ocorrido o pensamento de fotografá-lo, quando estive hospedado no seu grande e belíssimo barracão da “Liberdade”, de que tiramos várias vistas.

Os nossos trabalhos estão terminados, faltando apenas ultimar o Relatório que está sendo feito por mim e, apenas traduzido e em poucos trechos modificado, pelo comissário peruano.

Felizmente não houve nas nossas coordenadas divergências capazes de nos separarem numa desarmonia prejudicial. Os levantamentos topográficos das duas comissões, em vários trechos, são até de uma concordância surpreendente.

Continuamos a manter, aquele meu colega e eu, a mais completa correção nas relações pessoais e oficiais; e devo declarar a V. Exa. que a simples circunstância de estar na minha terra me tem feito requintar nas atenções que lhe dispenso.

Desejando a V. Exa. todas as felicidades, subscrevo-me sempre com a maior consideração.

De V. Exa. comp. crdo. ato. e obrdo.

Euclides da Cunha

Manaus, 2 de dezembro de 1905

Exmdo. sr. barão do Rio Branco

Cumprimentando respeitosamente a V. Exa., tenho o prazer de apresentar-lhe o meu colega dr. Adolfo Lima, auxiliar da Prefeitura do Alto Purus, que gentilmente se prestou a entregar a V. Exa. a desgraciosa lembrança que vai junto a esta. O dr. Lima dará a V. Exa. notícias nossas.

Pedindo que me recomende à Exma. família, subscrevo-me com a maior veneração de

V. Exa. comp. crdo. ato. e obrdo.

Euclides da Cunha

Manaus, 2 de dezembro de 1905

Rodrigo Otávio

Felicidades!

Pedi ao meu colega dr. Adolfo Lutz, para te entregar a triste figura que aí vai. Até breve. Dentro em breve te abraçará

Euclides da Cunha

[Manaus, 10 de dezembro de 1905]

Firmo

Saudações.

Não estranhe a minha ausência.

Estou muito sobrecarregado de trabalhos.

Recado do

Euclides