Um velho problema

Li há tempos alentada dissertação sobre um singularíssimo direito expresso em velhas leis consuetudinárias da Borgonha. Direito do roubo…

Recordo-me que, surpreendido com tal antinomia, tão revolucionária, sobretudo para aquela época, ainda mais alarmado fiquei notando que a patrocinava o maior dos teólogos, S. Tomás de Aquino; e com tal brilho e cópia de argumentos, que a perigosa tese repontava com a estrutura inteiriça de um princípio positivo. Realmente a repassava uma nobre e incomparável piedade, fazendo que aquela extravagância resumisse e espelhasse um dos aspectos mais impressionadores da justiça.

Tratava-se, ao parecer, de um código da indigência; e os graves doutores, no avantajarem-se tanto, rompendo com nobre rebeldia as barreiras da moral comum, para advogarem a causa da enorme maioria de espoliados, chegavam à conclusão de que a opulência dos ricos se traduzia como um delitum legale, um crime legalizado. Impressionava-os o problema formidável da miséria na sua feição dupla — material e filosófica — pois é talvez menos doloroso refletido nos andrajos das populações vitimadas, que na triste inópia de elementos da civilização para o resolver.

E como lhes faleciam, mais do que hoje nos falecem, elementos para a extinção do mal, justificavam aos desvalidos num crudelíssimo título de posse a todos os bens — a fome.

O indigente tornava-se um privilegiado afrontando impune toda a ortodoxia econômica. O roubo transmudava-se, do mesmo passo, num direito natural de legítima defesa contra a Morte e num dever imperioso para com a Vida.

Mas não foram além deste expediente, e dessas declamações, os piedosos doutores. Tolhia-os, senão a situação mental da Idade Média imprópria a uma apreciação exata do conjunto do progresso humano, a mesma ditadura espiritual do catolicismo, na plenitude de força, e para o qual a miséria — eloquentíssima expressão concreta do dogma do pecado original — era sempre um horroroso e necessário capital negativo, avolumando-se com as provações e com os martírios para a posse anelada da bem-aventurança, nos céus…

Por outro lado, os pensadores leigos do tempo, e os que os encalçaram até ao século XVIII, não partiram esta tonalidade sentimental Mais sonhadores que filósofos, o que os atraía era o lado estético do infortúnio, a visão empolgante do sofrimento humano, a que nos associamos sempre pela piedade. Os seus livros, pelos próprios títulos hiperbólicos, à maneira dos das novelas do tempo, retratam uma intervenção brilhante e imaginosa, mas inútil. São como títulos de poemas. De fato, na Utopia de Thomas Morus, na Oceana de Hallis, ou na Basilíade de Morelly, a perspectiva de uma existência melhor, oriunda da riqueza equitativamente distribuída e dos privilégios extintos, irrompe num fervor de ditirambos, aos quais não faltam, para maior destaque, prólogos arrepiadores de agruras e tormentas indescritíveis…

As medidas propostas raiam pelos exageros máximos da fantasia: do nivelamento absoluto de João Libburne, ao platonismo adorável de Fontenelle e ao niilismo religioso de Diderot; e para lhes não faltar grotesco, esse cruel e antilógico grotesco imanente às mais trágicas situações, culmina-as o desvairado comunismo de Campanella com os seus trezentos monges, trezentos ascetas barbudos e melancólicos, tentando uma república igualitária que seria o desabamento de todas as conquistas do progresso.

Ora, tudo isto caracteriza bem o completo desequilíbrio das almas rudemente trabalhadas pelas doutrinas opostas e de todo desapercebidas, então, de uma síntese filosófica que ao mesmo passo as emancipasse do apego tradicional ao catolicismo, cuja missão findara, e dos impulsos demolidores da metafísica triunfante.

Assim, ao arrebentar a crise decisiva de 1789, não é de estranhar ficasse inapercebido, e talvez sacrificado, o grande problema que desde Pitágoras e Platão vinha agitando os espíritos. E que a grande revolução, inspirada pela filosofia social do século XVIII, oferece o espetáculo singular de repudiar, desde os seus primeiros atos, os seus próprios criadores. A consideração de Guizot é profunda: nunca uma filosofia aspirou tanto ao governo do mundo e nunca foi tão despida do império.

Os filósofos foram, de pronto, suplantados, na agitação revolta dos panfletos e da retórica explosiva dessa literatura política sempre efêmera, com ser modelada pelos desvarios repentinos da multidão. A sólida estrutura mental de um d’Alembert antepôs-se o espírito imaginoso e pueril de um Vergniaud, e aos sonhos desmedidos de Mably e excesso de objetivismo do trágico casquilho que passeou pelas ruas de Paris a deusa da Razão…

De sorte que a última pancada do antigo regime — já longamente solapado e prestes a cair por si mesmo — se fez com excesso de energias que atirou sobre os destroços da ordem antiga as ruínas da ordem nova planeada. Exclusivamente atraída pelo programa, que se lhe afigurava enorme e pouco valia, de derruir as classes privilegiadas, a Revolução firmou, nos “direitos do homem”, um duro individualismo que na ordem espiritual significava a negação dos seus melhores princípios e na ordem prática equivalia a destruir as corporações populares, isto é, a única criação democrática da Idade Média.

“Os direitos do homem… No entanto, a fórmula superior daquela filosofia, visava, de preferência, através da solidariedade humana crescente, exatamente o contrário — os deveres do homem”. Mas era exigir muito à loucura política do momento. Fazia-se mister, antes de tudo, que as franquias recém-adquiridas tivessem um traço incisivamente antiaristocrático. Que o camponês, absolutamente livre, fosse absolutamente dono da quadra de terra onde nascera e onde tanto tempo jazera aguilhoado à gleba feudal; enquanto o burguês das cidades pudesse agir libérrimo, dispondo a bel-prazer de todos os seus bens, despeado do liame das jurandes.

E o trono vazio dos Capetos teve em roda a concorrência tumultuária de não sei quantos milhões de liliputinianos reis…

Despojados o clero e a aristocracia de suas propriedades (não raro precárias como privilégios sujeitos aos caprichos do poder monárquico) ficou em seu lugar — intangível, absoluta e sacratíssima — a propriedade burguesa, para a qual o ilustre Condorcet não encontrara limites no texto que forneceu à Convenção.

Por isto, a breve trecho, se patenteou a inanidade das reformas executadas; ao invés de um número restrito de privilegiados, nos quais o egoísmo se atenuava com as tradições cavalheirescas da nobreza, um outro, maior e formado pela burguesia vitoriosa, mais inapta ainda a compreender a missão social da propriedade, ávida por dominar na arena livre que se lhe abria, e tornando maior o contraste entre a sua opulência recente e a situação inalterável do proletariado sem voto naquele tumulto e destinada apenas a colaborar anonimamente na epopeia napoleônica, quando em breve, culminando a catástrofe revolucionária, o mais pequenino dos grandes homens surgisse, concretizando a reação disfarçada do antigo regime, e fosse restaurar, entre os fulgores de uma glória odiosa, o anacronismo da atividade militar.

Destruída desta maneira a obra memorável da Convenção, vê-se, contudo, que ela tinha latentes e aguardando apenas um meio propício, os princípios de uma distribuição mais equitativa da fortuna. Para o rígido Camus a propriedade “não era um direito natural, era um direito social”; acompanhava-o neste conceito o romântico Saint-Just; e sobre todos, mais incisivamente, num dizer claríssimo que lhe dá as honras de um precursor do coletivismo moderno, o incomparável Mirabeau atirava na anarquia das assembleias estas palavras singularmente austeras:

Le proprietarie n’est lui-même que le premier des salariés. Ce que nous appelons vulgairement la proprieté n’est autre chose que le prix qui lui paye la societé pour les distribuitions qu’il est chergé de faire aux autres individus par ses consommations et ses depenses. Les proprietaires sont les agents, les economes du corps social.

Estas frases admiráveis, porém, que ainda hoje, transcorridos cento e tantos anos, são a síntese de todo o programa econômico de socialismo, ninguém as ·escutou. De modo que à massa infelicíssima do povo, a quem a revolução libertara para a morte despeando-a da gleba para jungi-la ao carro triunfal de um alucinado, restavam ainda, como nos velhos tempos, apenas as fórmulas enérgicas, mas inócuas, de alguns doutores canonizados; e em pleno repontar do século XIX (quando a filosofia natural já aparelhara o homem para transfigurar a terra) um triste, um repugnante, um deplorável, e um horroroso direito: o direito de roubo…

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Mas esta filosofia natural, tão crescentemente revigorada e favorecendo tanto, no século que passou, o ascendente industrial, era por si mesma — isolada no campo das suas investigações — inapta à verdadeira solução do problema. Dizem-no os insucessos de todos os que o consideraram esteando-se nela, das estupendas utopias de Saint-Simon e dos seus extraordinários discípulos, às alienações de Proudhon, às tentativas bizarras de Fourier e ao soçobro completo da política de Luís Blanc.

Fora logo acompanhá-los. Se o fizéssemos, veríamos que, malgrado todos os recursos das ciências, eles pouco se avantajaram aos sonhadores medievais: o mesmo agitar de medidas fantásticas, e tão radicais, algumas, abalando tanto os fundamentos da sociedade, a começar pela organização da família, que acerretavam ante novos elementos perturbadores e novas faces à questão, dando-lhe um caráter por igual revolucionário e complexo capaz de a tornar perpetuamente insolúvel.

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Assim ela chegou até meados do último século — até Karl Marx — pois foi, realmente, com este inflexível adversário de Proudhon que o socialismo científico começou a usar uma linguagem firme, compreensível e positiva.

Nada de idealizações: fatos; e induções inabaláveis resultantes de uma análise rigorosa dos materiais objetivos; e a experiência e a observação, adestradas em lúcido tirocínio ao través das ciências inferiores; e a lógica inflexível dos acontecimentos; e essa terrível argumentação terra-a-terra, sem tortuosidades de silogismos, sem o idiotismo transcendental da velha dialética, mas toda feita de axiomas, de verdadeiros truísmos, por maneira a não exigir dos espíritos o mínimo esforço para a alcançarem, porque ela é quem os alcança independentemente da vontade, e os domina e os arrasta com a fortaleza da própria simplicidade.

A fonte única da produção e do seu corolário imediato, o valor, é o trabalho. Nem a terra, nem as máquinas, nem o capital, ainda coligados, as produzem sem o braço do operário. Daí uma conclusão irredutível: -a riqueza produzida deve pertencer toda aos que trabalham. E um conceito dedutivo: o capital é uma espoliação.

Não se pode negar a segurança do raciocínio.

De efeito, desbancada a lei de Malthus, ante a qual nem se explicaria a civilização, e demonstrada a que se lhe contrapõe consistindo em que “cada homem produz sempre mais do que consome persistindo os frutos do seu esforço além do tempo necessário à sua reprodução” — põe-se de manifesto o traço injusto da organização econômica do nosso tempo.

A exploração capitalista é assombrosamente clara, colocando o trabalhador num nível inferior ao da máquina. De fato, esta, na permanente passividade da matéria, é conservada pelo dono; impõe-lhe constantes resguardos no trazê-la íntegra e brunida, corrigindo-lhe os desarranjos; e quando morre — digamos assim — fulminada pela pletora de força de uma explosão ou debilitada pelas vibrações que lhe granulam a musculatura de ferro, origina a mágoa real de um desfalque, a tristeza de um decréscimo da fortuna, o luto inconsolável de um dano. Ao passo que o operário, adstrito a salários escassos demais à sua subsistência, é a máquina que se conserva por si, e mal; as suas dores recalca-as forçadamente estoico; as suas moléstias, que, por uma cruel ironia, crescem com o desenvolvimento industrial — o fosforismo, o saturnismo, o hidrargirismo, o oxicarborismo — cura-as como pode, quando pode; e quando morre, afinal, às vezes subitamente triturado nas engrenagens da sua sinistra sócia mais bem aquinhoada, ou lentamente — esverdinhado pelos sais de cobre e de zinco, paralítico delirante pelo chumbo, inchado pelos compostos de mercúrio, asfixiado pelo óxido de carbônico, ulcerado pelos cáusticos dos pós arsenicais, devastado pela terrível embriaguez petrólica ou fulminado por um coup de plomb — quando se extingue, ninguém lhe dá pela falta na grande massa anônima e taciturna, que enxurra todas as manhãs à porta das oficinas.

Neste confronto se expõe a pecaminosa injustiça que o egoísmo capitalista agrava, não permitindo, mercê do salário insuficiente, que se conserve tão bem como os seus aparelhos metálicos, os seus aparelhos de músculos e nervos; e está em grande parte a justificativa dos socialistas no chegarem todos ao duplo princípio fundamental:

Socialização dos meios de produção e circulação;

Posse individual somente dos objetos de uso.

Este princípio, unanimemente aceito, domina toda a heterodoxia socialista — de sorte que as cisões, e são numerosas, existentes entre eles, consistem apenas nos meios de atingir-se aquele objetivo. Para alguns, e citam-se apenas João Ligg e Ed. Vaillant, os privilégios econômicos e políticos devem cair ao choque de uma revolução violenta. É o socialismo demolidor que, entretanto, menos aterroriza a sociedade burguesa. Outros, como Emilio Vendervelde, se colocam numa atitude expectante: as reformas serão violentas ou não, segundo o grau de resistência da burguesia. Finalmente, outros ainda — os mais tranquilos e mais perigosos — como Ferri e Colajanni, corretamente evolucionistas, reconhecendo a carência de um plano já feito de organização social capaz de substituir, em bloco, num dia, a ordem atual das coisas, relegam a segundo plano as medidas violentas, sempre infecundas e só aceitáveis transitoriamente, de passagem, num ou noutro ponto, para abrirem caminho à própria evolução.

Ferri, em belíssimo paralelo entre o desenvolvimento social e o terrestre, mostra como os imaginosos cataclismos de Cuvier, perturbaram, sem efeito, a geologia para explicarem transformações que se realizam sob o nosso olhar, sendo os grandes resultados, que mal compreendemos no estreito círculo da vida individual, uma soma de efeitos parcelados acumulando-se na amplitude das idades do globo. Deslocando à sociedade este conceito, aponta-nos o processo normal das reformas lentas, operando-se na consciência coletiva e refletindo-se pouco a pouco na prática, nos costumes e na legislação escrita, continuamente melhoradas.

Nada mais límpido. Realmente, as catástrofes sociais só podem provocá-las as próprias classes dominantes, as tímidas classes conservadoras, opondo-se a marcha das reformas — como a barragem contraposta a uma corrente tranquila pode gerar a inundação. Mesmo nesse caso, porém, a convulsão é transitória; é um contrachoque ferindo a barreira governamental. Nada mais. Porque o caráter revolucionário do socialismo está apenas no seu programa radical. Revolução: transformação. Para a conseguir, basta-lhe erguer a consciência do proletário, e — conforme a norma traçada pelo Congresso Socialista de Paris, em 1900 — aviventar a arregimentação política e econômica dos trabalhadores.

Porque a revolução não é um meio, é um fim; embora, às vezes, lhe seja mister um meio, a revolta. Mas esta sem a forma dramática e ruidosa de outrora. As festas do primeiro de maio são, quanto a este último ponto, bem expressivas. Para abalar a terra inteira, basta que a grande legião em marcha pratique um ato simplíssimo: cruzar os braços…

Porque o seu triunfo é inevitável.

Garantem-no as leis positivas da sociedade que criarão o reinado tranquilo das ciências e das artes, fontes de um capital maior, indestrutível e crescente, formado pelas melhores conquistas do espírito e do coração…

CUNHA, Euclides da. Um velho problema. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/contrastes-e-confrontos/um-velho-problema. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 1º maio 1904. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. In: Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 97-103.