Ao longo de uma estrada

Margem do Turvo — novembro de 1901

Considero, à porta da capuaba de pau a pique e taipa em que abriguei, este trecho torturante da estrada de Taboado, onde me colheu a noite.

E penso, desapontado, nas três mil léguas das quarenta e oito estradas romanas, estendidas, irradiantes, pela terra feito uma rede aprisionadora e forte desenrolada em roda da coluna fulgente do miliarum aureum, que centralizava o Forum.

O viajante abalava por uma delas, a Via Flaminia, por exemplo, e contorneava todo o norte da Itália; entrava na Panonia; varava, adiante, a Moeda e a Tracia, seguindo por Heracléa até Constantinopla; e daí para a Bitínia, para a Capadócia, para Antióquia, atravessando o Tauros, e para a Sina, a Palestina e o Egito; inflectindo, afinal, vivamente, à direita, perlongando todo o norte da África, de Alexandria a Tânger.

Neste longo percurso — atravessando pantanais e montanhas sobre paredões de pedra ou galerias subterrâneas, pisava o chão duro dos stracta enrijados, a cimento, cobertos pelas gláreas de saibro sobre que se estendiam os ladrilhos largos dos silhares.

Por ali disparavam as quadrigas velozes, como sobre raias unidas, e o pedestre desviava-se, a salvo, sobre as calçadas laterais de basalto, das margines, ladeadas de bancos intervalados e cômodos.

A viagens transcorriam rápidas naquelas avenidas continentais, animadas e vibrantes, onde estrepitava a galopada dos correios precipitando-se para as Gálias ou para a Síria, e derivavam, vagarosas, as caravanas dos mercadores, estacando às vezes para que de permeio lhe passassem céleres, no ritmo acelerado da estratégia de César, as coortes das legiões.

Há dois mil e tantos anos…

É natural que nos entristeçam hoje, contemplando este trecho medonho de estrada, tortuoso e estreito, invadido de mato, rolando em aclives vivos, afundando em grotões, enfiando, feito num túnel, pelos tabocais que o cobrem, ou diluindo-se, impraticável, em tremedais extensos; — um picadão malgradado, de dezenas de léguas, atravessando todo o Estado de S. Paulo até ao Mato Grosso.

Dir-se-á que os tempos são outros, outros os nossos recursos, e que a linhas férreas substituem com vantagem aquelas construções monumentais da engenharia antiga, com maior economia de esforços e resultados incomparavelmente maiores.

*

Mas esta estrada de Taboado que, pelo seu traçado, é a mais importante não já de S. Paulo mas do Brasil inteiro, merecia trabalhos excepcionais. Tem um caráter continental tão frisante que devíamos, tanto quanto possível, aproximá-la de uma estrada romana.

Desenvolvendo-se do Jaboticabal ao porto do Paraná, que a batiza, o seu prolongamento levá-la-ia, recortando o divortium aquarum do Amazonas e do Paraguai, a Cuiabá, quase no centro geométrico da América do Sul. Teria, então, um comprimento de duzentas léguas escassas e se fosse construída — não diremos com o luxo estupendo dos caminhos antigos, nem mesmo como os modernos planck-roads do Canadá — mas larga e abaulada, declives atenuados, atoleiros para sempre desfeitos com aterros firmes e drenagem completa, faixas reforçadas por uma macadamizacão pouco espessa embora, pontes que não constringissem a vazão do rio nas estreitezas de uma economia extravagante, e tendo, regularmente espaçados, estações e postos de segurança garantindo e policiando o tráfego; assim constituída, aquela estrada duplicaria em poucos anos a vitalidade nacional.

Não idealizamos.

Entre os coeficientes de redução do nosso progresso, avulta uma condição geográfica, que toda a gente conhece.

O Brasil é compacto. Falta-lhe penetrabilidade. Falta-lhe esse articulado fundo das costas, essa diferenciação do espaço que em todos os tempos e lugares da Grécia antiga a Inglaterra de hoje e ao Japão, reage vigorosamente sobre as civilizações locais.

Por outro lado, completando os inconvenientes de um aparelho litoral inteiriço, a sua estrutura geológica, matriz do facies topográfico — antemurais graníticas precintando planaltos — impropria-o ainda mais ao domínio franco.

Daí todo o esforço despendido para se modificar esta fatalidade geográfica.

Em torno do problema da viação geral do Brasil tem-se travado discussões entre as mais interessantes de toda a engenharia.

Começaram em 1870. Tiveram a princípio, como objetivo exclusivo, o abandono do perigoso desvio pelo Prata que, de 1850 a 1866, através de longa série de desastres diplomáticos enfeixados afinal numa campanha feroz, tornava precárias as comunicações com o Mato Grosso.

Apareceram, então, os traçados de Palm e Lloyd, B. Rohan, Antonio Rebouças e outros que variando apenas no escolher os diversos vales como linhas naturais de penetração, visavam, estreitamente estratégicos, alcançar o Paraguai, pelo sul daquele Estado remoto. Apenas Monteiro Tourinho ampliou o problema, sem o melhorar, com a idealização ousada de uma linha férrea das Sete Quedas, no Paraná, ao porto de Arica, no Pacifico.

Depois a questão se esclareceu melhor. Sem perder o ponto de vista militar, tornou-o apenas incidente de aspiração mais alta.

Surge o nome de Pimenta Bueno. O grande engenheiro firma, em 76, acompanhando a divisória das águas do Tietê e do Mogi-Guaçu, com o ponto obrigado de Santa Ana do Paranaíba, o rumo realmente prático das nossas comunicações com a capital de Mato Grosso.

Os que se sucederam, a própria comissão de cinco notáveis — Rio Branco, Beaurepaire-Rohan, Buarque de Macedo, Raposa e Honório Bicalho — não encararam com maior lucidez o assunto.

A linha planeada, que a Companhia Paulista, infelizmente, acompanhou somente até Araraquara, permaneceu inteiriça, completa, sem comportar a variante mais breve, e cortando mesmo, vitoriosamente, depois, as paralelas desse grande trângulo da viação geral, que André Rebouças ideou, como um desafio ao nosso progresso máximo, no futuro.

Não pormenorizaremos estes vários traçados.

Notemos apenas que em todos eles os dignos mestres tiveram a obsessão permanente da locomotiva, rápida e triunfante, suplantando tão desmarcadas distâncias. Agiram num plano superior demais. Foram sobremaneira teóricos, e olvidando o aspecto econômico, dominante na questão, parece terem imaginado que a simples chegada das vias férreas bastasse para que surgissem os elementos vitais e a matéria-prima da mais civilizadora das indústrias: o povoamento, a produção intensa e o tráfego continuo.

Mas este despertar de energias em regiões despovoadas requer um prazo longo demais para os capitais que nele se arriscam, jogando contra o futuro.

Mostra-o, entre nós, uma experiência de trinta anos.

As nossas duas melhores estradas de penetração, aparelhadas pelos recursos acumulados de um progresso crescente, a Paulista e a Mogiana, inauguradas em 72 e 75, no avançarem para Mato Grosso e Goiás mal ultrapassam, hoje, um terço e a metade das distâncias.

Entretanto, organizaram-se na quadra certo mais pujante do nosso desenvolvimento econômico, que o gênio do Visconde do Rio Branco domina, e tiveram, nos anos subsequentes, o amparo da riqueza crescente de S. Paulo.

A primeira afastou-se do mesmo traçado civilizador de Pimenta Bueno, seguindo ilogicamente para Barretos, desviando-se de uma rota entregue hoje ao avançamento, naturalmente moroso, da estrada de Ribeirãozinho. Mas dado que persistisse no primitivo rumo e fosse encontrando sempre nas novas paragens atingidas as mesmas condições de vida, só alcançaria Cuiabá num prazo mínimo de sessenta anos.

E ainda quando, escandalosamente otimistas diante do nosso desfalecimento econômico, reduzíssemos aquele prazo, não pagaríamos o traço bem pouco animador que caracteriza a distensão das nossas redes de estradas de ferro.

De fato, nenhuma busca o centro do país visando despertar as energias latentes que o afastamento do litoral amortece. Progridem arrebatadas por uma lavoura extensiva que se avantaja no interior à custa do esgotamento, da pobreza, e da esterilização das terras que vai abandonando.

Povoam despovoando. Não multiplicam as energias nacionais, deslocam-nas. Fazem avançamentos que não são um progresso. E alongando para a frente os trilhos, à medida que novas terras roxas abrolham em novos cafezais, vão, ao acaso, nesse seguir o sulco das derribadas, deixando atrás um espantalho de civilização tacanha nas cidades decaídas circundadas de fazendas velhas…

Este fato, que ninguém contesta, [ 1 ] define bem as anomalias de um desenvolvimento e de um progresso contestáveis. Reflete o vício de uma expansão em que não colaboram as forças profundas do país, porque vai da periferia para o centro, sobre não ter o caráter francamente nacional, a pouco e pouco extinto no vigor das correntes intensivas de imigrantes que, diante da nossa indiferença fatalista pelo futuro, já vão assumindo o aspecto de uma invasão de bárbaros pacíficos.

Deste modo uma estrada de rodagem digna de tal nome, para o Mato Grosso, principalmente agora que o automobilismo libertou a velocidade do trilho, não seria apenas o melhor leito para a futura via férrea e o melhor meio de nos emanciparmos do Prata, neste fase incandescente da política sul-americana, mas ainda, sob aspecto mais grave, um belo laço de solidariedade prendendo-nos aos patrícios dos sertões e revigorando uma integração étnica, já consideravelmente comprometida.

*

E a tarefa é, relativamente, fácil.

Temos um termo de comparação expressivo na única estrada de rodagem de todo o Brasil, a da “União e Indústria”.

Desenvolvida de Juiz de Fora a Petrópolis, com um percurso de 147 quilômetros, esta admirável avenida, macadamizada de feldspato e quartzo, que outrora faria inveja às melhores ruas das nossas capitais, é uma grande lição.

Surgiu da vontade de ferro de um homem — Mariano Procópio — e foi executada em condições desfavoráveis: de um lado as dificuldades técnicas decorrentes da feição alpestre do Rio de Janeiro e Minas, de outro a carência de aparelhos e maquinismos, que hoje existem, sendo o próprio britamento das pedras feito desvantajosamente, à mão, o que encarecia sobremodo os materiais empregados.

Mas foi feita — larga, de oito metros, abaulado o leito resistente e firme perfeitamente drenado, decorado de obras de arte em que se salienta a ponte das Garças sobre o Paraíba, e inflectindo em curvas capazes dos maiores retângulos de atrelagem, ou atenuando, malgrado o acidentado dos lugares, os esforços de tração, graças a um máximo de 3% para os declives.

É natural que sobre ela as diligências de cerca de três toneladas, corressem, rápidas, com a velocidade média de 17 quilômetros por hora, o que permitia o percurso total das suas vinte e duas léguas em muito menos de um dia.

Ora, uma estrada identicamente modelada, para Mato Grosso, seria apenas oito vezes e meia maior.

Realmente, dando-se aos caminhos de Jaboticabal a Cuiabá, um desenvolvimento de 0,20 sobre a linha reta, o que não é pouco para uma estrada de rodagem, vemos que a sua extensão total importará em 1.250 quilômetros ou 190 léguas.

Com estes dados, confrontadas as duas empresas, verifica-se que todas as vantagens são pela última.

Dois Estados, o de Mato Grosso e o de S. Paulo, e a União, por igual interessados, certo balanceiam numa proporção maior, a energia única de um homem, sobretudo considerando-se que a intervenção da última acarretará a diminuição da mão-de-obra pelo emprego de engenharia militar e contingentes do exército. Além disso, os tempos mudaram, estando a engenharia aparelhada de elementos incomparavelmente mais eficazes.

Ainda mais, o dilatado do desenvolvimento seria em grande parte compensado pela disposição mais acessível do terreno.

De fato, percorridos os 435 quilômetros que vão de Jabuticabal à margem direita do Paraná, fronteira ao Taboado, mercê de uma ponte de 880 metros sobre o grande rio, a única obra de arte dispendiosa a executar, a estrada se desdobrará, a partir de Santa Ana, pelo vale do Aporé; e, deixando-o, irá deparar regiões ainda mais praticáveis, estendendo-se em cheio sobre esse divortium aquarum do Amazonas e do Paraguai, tão pouco acentuado e de relevos tão breves que os tributários dos dois rios quase se anastomosam em nascentes comuns. E se considerarmos que em todo este percurso lhe sobejam, nos seixos rolados de inumeráveis cursos de água e nos afloramentos de quartzitos, materiais que suplantam na facilidade do britamento, e na duração, o gnaisse granítico da “União e Indústria”, vemos que, de feito, numerosíssimas condições favoráveis rodeiam a abertura desse caminho admirável, imposto por exigências sociais e políticas tão imprescindíveis e urgentes.

Quando isto suceder — dando-se mesmo às diligências, numa marcha diária de dez horas, uma velocidade média de doze quilômetros, a travessia de Jabuticabal a Cuiabá será feita, folgadamente, em dez dias — precisamente um terço, portanto, do que hoje se gasta na volta de quinhentas léguas pelo Prata.

Ademais, ficaram por uma vez removidos todos os embaraços, todos os empeços inesperados da travessia num rio que, pelos atritos perigosos que tem originado, e despertará, é o Bósforo alongado na América do Sul.

E se isto não acontecer — então, parafraseando uma frase célebre, é que decididamente nos faltam “um grande engenheiro, um grande ministro e um grande chefe de Estado”, para a realização das grandes obras. [ 2 ]

[ 1 ] Este artigo é hoje, felizmente, falso. Em cinco anos mudamos muito. A E. F. do Noroeste, lançada vigorosamente para Mato Grosso, revolucionará muito breve a situação econômica e política da América do Sul. Extinguirá o Bósforo Platino… (N. do A.)
[ 2 ] Este artigo, repitamos, aí fica apenas como um documento. Ninguém o traçaria mais, hoje, felizmente. (N. do A.)
CUNHA, Euclides da. Ao longo de uma estrada. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/contrastes-e-confrontos/ao-longo-de-uma-estrada. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 18 jan. 1902. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. In: Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 103-9.