Solidariedade sul-americana

A República nos tirou do remanso isolador do império para a perigosa solidariedade sul-americana: caímos dentro do campo da visão, nem sempre lúcida, do estrangeiro, insistentemente fixa sobre os povos, os governos e os “governos” (ironicamente sublinhados ou farpeados de aspas) da América do Sul.

O imperador, em que pese à sua educação imperfeita e às suas sensíveis falhas de estadistas, era o grandes plenipotenciário do nosso bom senso equilibrado e da nossa seriedade. A sua bela meia ciência, toda ornada de excertos hebraicos e das estrelas da astronomia doméstica de Flammarion, mas ansiosamente atraída para o convívio dos sábios e contumaz frequentadora de institutos, era a nossa mesma ânsia, talvez precipitada, mas nobilíssima, de acertar, e a sua bonomia, os seus hábitos modestos e simples, os mesmos hábitos modestos, certo sem brilhos, mas em todo o caso decentes, com que andávamos na história.

Tinha a força sugestiva e dominadora dos símbolos, ou das imagens. Era, para a civilização tão distraída por infinitos assuntos mais urgentes e mais sérios, um índice abreviado onde ela aprendia de um lance os aspectos capitais da nossa vida: o epítome vivo do Brasil.

Talvez não fosse bem certo e carecesse de uma mondadura severa, ou revisão acurada, mas tinha a vantagem de nos determinar uma consideração à parte. Na atividade revolucionária e dispersiva da política sul-americana, apisoada e revolta pelas gauchadas dos caudilhos, a nossa placidez, a nossa quietude, digamos de uma vez, o nosso marasmo, delatavam ao olhar inexperto do estrangeiro o progresso dos que ficam parados quando outros velozmente recuam. E, dada a complexidade étnica e o apenas esboçado de uma sub-raça onde ainda se caldeiam tantos sangues, aquela placabilidade e aquele marasmo recordavam-lhe na ordem social e política a imprescindível tranquilidade de ambiente que, por vezes, se exige, na física, para que se completem as cristalizações iniciadas…

Hoje, não. Sem aquele ponto de referência, a opinião geral desvaira; derranca-se em absurdos e em erros; estonteia num agitar sem sentido, de maravalhas inúteis; confunde-nos nas desordens tradicionais de caudilhagem; mistura os nossos quatorze anos de regime novo a mais de um século de pronunciamentos; e como, durante esta crise de crescimento, nos saltearam e salteiam desastres — que só podem ser atribuídos à República por quem atribuía ao firmamento as tempestades que no-lo escondem — já não nos distingue nos mesmos conceitos. E que conceitos…

Deletreiem-se as revistas norte-americanas, para não citarmos outras, e vejam-se o desabrido da palavra, o cruciante dos assertos e até o temerário de futuros planos de absorção, sempre que acontece tratar-se das sister republics, curioso eufemismo com que se designa vulgarmente o vasto e apetecido res nullius, desatado do Panamá ao cabo Horn.

Para os rígidos estadistas que não nos conhecem, e a quem justamente admiramos, as Repúblicas latinas — “as que se dizem Repúblicas” no dizer dolorosíssimo de James Bryce, patenteiam, impressionadoramente, o espetáculo assombroso de algumas sociedades que estão morrendo. Aplicando à vida superorgânica as conclusões positivas do transformismo, esta filosofia caracteristicamente saxônia, e exercitando crítica formidável a que não escapam os mínimos sintomas mórbidos de uma política agitada, expressa no triunfo das mediocridades e na preferência dos atributos inferiores, já de exagerado mando, já de subserviência revoltante, o que eles lobrigam nas gentes sul-americanas é uma seleção natural invertida: a sobrevivência dos menos aptos, a evolução retrógrada dos aleijões, a extinção em toda a linha das belas qualidades do caráter, transmudadas numa incompatibilidade à vida, e a vitória estrepitosa dos fracos sobre os fortes incompreendidos…

Imaginai o darwinismo pelo avesso aplicado à história…

Ora, precisamos anular estes conceitos lastimáveis, que às vezes nos marcam situações bem pouco lisonjeiras. Porque, ainda os há que excetuam o México disciplinado por Porfirio Díaz e enriquecido por José Ignez, embora abrangido de todo pela órbita comercial e industrial da Norte-América; e o Chile com a sua rígida estrutura aristocrática; e a Argentina, que poucos anos de paz vão transfigurando, sob o permanente influxo do grande espírito de Mitre — um homem que é o poder espiritual de um povo.

Nós ficamos alinhados com o Paraguai, convalescente; com a Bolívia, dilacerada pelos motins e pelas guerras; com a Colômbia e a abortícia república que há meses lhe saiu dos flancos; com o Uruguai, a esta hora abalado pelas cavalarias gaúchas e com o Peru.

Não exageramos. Poderíamos fazer numerosas e até monótonas citações, recentes todas, espalhadas em livros e em revistas, onde se move esta extravagante e crudelíssima guerrilha de descrédito.

Aqui, um secretário de legação — poupemos o seu nome — que na North-American Review patenteia um adorável ciúme ante a expansão teutônica em Santa Catarina e bate alarmadamente a afinadíssima tecla do princípio de Monroe; e demasia-se depois no excesso de zelo de denunciar a nossa apatia de filhos de uma terra onde é sempre de tardea land where it is always afternoon! — e a nossa miopia patriótica que não percebe em Von den Stein, em Hermann Meyer, em Landerberg os caixeiros sábios de Hansa, os batedores sem armas do germanismo; além do pretenso sociólogo — deixemos também em paz o seu nome e o seu livro, que ambos não valem a escolta dos mais desarranjados adjetivos — que pontificando dogmaticamente, genialmente canhestro, acerca do imperfeito da instrução japonesa, aponta-a como inferior a das Repúblicas sul-americanas, “exceto o Paraguai e o Brasil”, recusando-nos, nesta parceria, a mesma procedência alfabética…

Realmente, o que surpreende em tais artigos não é o extravagante das afirmativas; é faltar-lhes, subscrevendo-os, a assinatura de Mark Twain, o mestre encantador da risonha gravidade da ironia ianque.

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Ora esta campanha iminente com o Peru pode ser um magnífico combate contra essas guerrilhas extravagantes.

Fizemos tudo por evitá-la, sobrepondo à fraqueza belicosa da nação vizinha o generoso programa da nossa política exterior nos últimos tempos, tão elevada no sacrificar interesses transitórios aos intuitos mais dignos de seguirmos à frente das nações sul-americanas como os mais fortes, os mais liberais e os mais pacíficos. O recente Tratado de Petrópolis — resolvido há quarenta anos, quase pormenorizado por Tavares Bastos e Pimenta Bueno — todo ele resultado de uma inegável continuidade histórica — é o melhor atestado dessa antiga irradiação superior do nosso espírito, destruindo ou dispensando sempre o brilho e a fragilidade das espadas. Nada exprime melhor a nossa atitude desinteressada e originalíssima, de povo cavaleiro-andante, imaginando na América do Sul, robustecida pela fraternidade republicana, a garantia suprema e talvez única de toda a raça latina diante da concorrência formidável de outros povos.

Mas não a compreendeu nunca a opinião estrangeira, que um excesso de objetivismo leva à contemplação exclusiva do quadro material das nossas desditas, à análise despiedada de tudo quanto temos de mau, à indiferença sistemática por tudo quanto temos de bom: e interpretam-na talvez como um sintoma de fraqueza as próprias nações irmãs do continente.

Desiludamo-las.

Aceitemos tranquilamente a luta com que nos ameaçam, e que não podemos temer.

Não será o primeiro caso de uma guerra reconstrutora. Mesmo quando rematam aparentes desastres, estes conflitos vitais entre os povos, se os não impelem apenas os caprichos dinásticos ou diplomáticos, traduzem-se em grandes e inesperadas vantagens até para os vencidos. A França talvez não monopolizasse hoje as simpatias da Europa sem a catástrofe de 70, que fez a dolorosa glorificação do seu espírito e o ponto de partida de uma regeneração incomparável, toda esteada numa experiência duríssima. Entram muito na glória imortal da Gambeta os planos estratégicos de Moltke.

Tão certo é que as artificiosas combinações políticas, afeiçoadas ao egoísmo dos grupos, se despedaçam nos largos movimentos coletivos, que não abrangem. E nós, afinal, precisamos de uma forte arregimentação de vontade e de uma sólida convergência de esforços, para grandes transformações indispensáveis.

Se essa solidariedade sul-americana é um belíssimo ideal absolutamente irrealizável, com o efeito único de nos prender às desordens tradicionais de dois ou três povos irremediavelmente perdidos, pelo se incompatibilizarem às exigências severas do verdadeiro progresso — deixemo-la.

Sigamos — no nosso antigo e esplêndido isolamento — para o futuro; e, conscientes da nossa robustez, para a desafronta e para a defesa da Amazônia, onde a visão profética de Humboldt nos revelou o mais amplo cenário de toda a civilização da terra.

CUNHA, Euclides da. Solidariedade sul-americana. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/contrastes-e-confrontos/solidariedade-sul-americana. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O País, Rio de Janeiro, 31 maio 1904. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. In: Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 71-4.