O Kaiser

Bismarck, sempre tão penetrante nos conceitos que disparava — disparava é o termo próprio àquela sua ironia férrea, que matava como as balas — definiu, certa vez, a política do segundo império, fantasista e frívola, e tão estonteada na Europa, ou na América, na Itália, ou no México, entre deslumbrantes frivolidades, em que se dissipava o heroísmo tradicional da França:— “Era uma política de gorjetas.”Depois, esculpiu com quatro pranchadas de pena o homem que a inspirava:

Napoleão III, com o seu egoísmo de corretor, incidiu no vício dos antigos diplomatas italianos, que confundiam a diplomacia e a perfídia. Tinha uma política ao mesmo passo bem ponderada e quimérica, complicada e ingênua. Pensando trabalhar para a França, abalou-lhe a liberdade e trouxe durante 20 anos a Europa em contínuo alarma, mercê de suas indefinidas ambições. Faltavam a sua inteligência precisão e eficiência, a par de uma extraordinária fé na sua estrela levando-o às mais ousadas tentativas com os planos mais quiméricos.

Ora, Bismarck fazia então, sem o imaginar, o retrato da Alemanha de agora e do Kaiser.

Bem pouco há que alterar naquelas linhas lapidárias.

A terra clássica do bom senso equilibrado, da frieza de propósitos e da perseverança tranquila, há dez anos que sobressalteia a Europa, graças à imaginação ardente, às fantasias e à vaidade feminil, laivada de arreganhos militares de seu imperador imensamente francês, e francês antigo, romântico, imprevidente e aventureiro.

E um caso notável — o aspecto transcendental, talvez, dessa revanche tão longamente acariciada pela França e que aparece espontânea, trocadas inteiramente as fisionomias das duas vizinhas irreconciliáveis.

Realmente, a Alemanha, que acordou tarde para a expansão colonizadora — longo tempo iludida pela visão errada de Bismarck, preferindo ao melhor trato de território longínquo o arcabouço do último granadeiro pomerânio — a Alemanha agita-se hoje num estonteamento.

A dilatação territorial impõe-se-lhe como uma condição de vida, não já no sentido superior de um primado de idéias, senão também no sentido estritamente biológico da própria alimentação. O seu industrialismo robusto matou-lhe a produção agrícola, de sorte que a sua vida intensíssima, a mais intensa da Europa, em grande parte desviada à agitação fecunda das fábricas, é de todo aleatória. Não lha garante, mesmo imperfeitamente, a terra, cada vez mais escassa, à medida que lhe vai crescendo o povoamento constrito entre as fronteiras inteiriças. Dai o seu arremesso dos estaleiros de Kiel para o desimpedido dos mares, visando amplificar a pátria, insuficiente, com o solo artificial e móvel dos conveses de uma frota mercante, que é a segunda do mundo, exigindo, paralelamente, as garantias de uma marinha de guerra formidável.

Mas neste concorrer à partilha da terra, com todos os inconvenientes de quem chega tarde e encontra os melhores bocados noutras mãos, a política germânica tem sido, de fato, copiando-se a frase do lendário chanceler de ferro, uma política de gorjetas. Nem lhe disfarça este caráter decaído a maneira arrojada que a reveste. Em todos os seus atos — nos arrogantes ultimata contra a frágil Venezuela, nos assaltos ferocíssimos de Waldersée, em Pequim, ou nas tortuosidades e perfídias diplomáticas que rodeiam a longa história da estrada para Bagdá, ou, ainda, no ganancioso alongar de olhos para os nossos Estados do Sul, a sua ânsia alucinada do ganho, pela pilhagem dos últimos restos da fortuna dos países fracos, pode assumir todas as formas, até mesmo o aspecto heróico: mas destaca-se com aquele traço inferior e irredutível.

Falta-lhe um Witte, falta-lhe um Chamberlain, falta-lhe um Roosevelt, e — note-se esta ironia singular da história — falta-lhe um Delcassé, ou um Combes…

*

Tem Guilherme II, um grande homem inédito.

Realmente, o Kaiser é uma promessa cada vez maior e mais irrealizável. Bismarck esboçou-se sem o saber, de ricochete, pela fisionomia de Napoleão III, mas fez-lhe a caricatura apenas a largos traços, vivos; e os melhores psicólogos, ao escandirem os seus atributos característicos, não descobrem de onde lhe advém tão antigermânicas qualidades. Perquirem-lhe a linhagem toda, e não lobrigam, nos confins indecisos do século XIII, o príncipe obscuro, misto de minnesänger e de soldado, errante, de castelo em castelo, pela Baviera em fora, todo vestido de ferro, feito um caçador de glórias e de perigos, a cantar o amor e a coragem, que veio, por um milagre de atavismo, surgir tão de pancada e estonteadamente em nossos dias…

É um revenant; e este evadido do passado ao mesmo passo que se isola na Alemanha, vai isolando a Alemanha do convívio das nações.

Autocrata sem rebuços num império constitucional, em que os seus secretários particulares substituem os ministros responsáveis, aperta-se no estreitíssimo círculo de uma Corte louvaminheira, que não só o afasta do influxo austero da opinião pública germânica, como o impropria a avaliar os desastrosos efeitos de sua garrulice inconveniente sobre todas as nações. Embalde von Treitschk, o notável sucessor de Mommsen, denuncia “o exagerado culto teocrático à majestade que macula a monarquia prussiana “e as formalidades e .cerimônias de uma Corte, onde “há a abjeção estagnada do servilismo oriental”; ou o Dr. Hann, secretário da Liga Agrária, denuncia nuamente, em público, o acabamento das qualidades superiores de consistência, de continuidade e de firmeza de inabalável política bismarckiana. O imperador não os ouve: repele-os.

Eles não lhe embalam a vaidade, não lhe aplaudem os discursos, não lhe admiram as concepções, não se enfileiram na numerosa claque que lhe proclama o enciclopedismo distenso. Wirchow atravessou o seu reinado, inteiramente desfavorecido, porque era liberal. Hauptmann, o maior dramaturgo da Alemanha, figura-se-lhe um rabiscador inaturável; a sua grande voz não vinga o abafamento dos reposteiros de Potsdam. Hoje o gênio loureado na terra sonhadora de Goethe é o capitão Lanff, um lírico de caserna. Para este todos os requintes dos favores imperiais, porque os seus dramas, impostos por decreto a todos os teatros subsidiados do Império — os seus dramas tremendos, refertos de cutiladas, de tiros, de urros pavorosos de terribilíssimos heróis, em que os entrechos se embaralham pisoados de cargas de cavalaria — são a apologia sanguinolenta dos Hohenzollerns. Reconhece-se que são maus, que são positivamente idiotas, no tacanhear dos conceitos, na frase cambeante e perra, nos enredos desconexos e nos desenlaces abstrusos — mas lisonjeiam a vaidade imperial.

Esta vaidade é tudo, e para a satisfazer tudo se sacrifica.

Mostra-o o mesmo exército alemão, que, durante tanto tempo, foi o pavor da Europa. Viu-se-lhe, depois, a imponente fragilidade.

E um exército decorativo, adrede instruído a que rebrilhe ao sol dos dias festivos a espada virginalmente inocente do Kaiser, diante da burguesia assustadiça.

Revelou-o, recentemente ainda, Wolf von Schierbraum, e propositadamente escolhemos, não já um prussiano, mas um rígido prussiano da guerra de 70, para que se firme este conceito: “O imperador, graças à sua índole espetaculosa, preparou o exército, não para a luta consoante a tática e as armas atuais, mas como se ainda vivêssemos nos antigos tempos”.

E logo adiante, textualmente: “Há quinze anos que o educa para falsas batalhas, arremetendo com imaginários inimigos, em condições tais, que lhe acarretarão completo extermínio em qualquer campanha destes dias”.

É um exército de paradas. Guilherme II conserva-o, cheio de desvelos de artista e de colecionador de raridades — como um dos seus avós, Frederico Guilherme I, conservava os seus granadeiros de dois metros de altura e os seus dragões torreantes — cuidadosamente, fora das intempéries danosas das batalhas…

Ele é a sua claque favorita e temerosa; e acredita-se, por vezes, que o arma contra a própria Alemanha.

Quando o imperador escreveu, no Livro de Ouro de Munich, o seu célebre suprema lex regi voluntas, ninguém aplaudiu a barbaria deste latim certíssimo, mas os feld-marechais deliraram, eletrizados.

Pouco tempo depois, ao rematar um de seus discursos perigosos com aquele: “Todos vós deveis ter uma vontade, a Minha vontade, e uma só lei, a Minha lei” — houve em toda a Alemanha um doloroso espanto, e o partido socialista, crescente à medida que a vontade imperial impõe ao Reichstag sucessivos aumentos de baionetas, replicou-lhe com uma de suas manifestações ruidosas. O Kaiser assusta-se; mete-se, assombrado, entre as fileiras adensadas, no campo de manobras de março de 1900, e ali, sob a hipnose estonteadora de milhares de espadas rebrilhantes:

“Se Berlim renovar contra o rei o insolente levante de 1898, vós, meus granadeiros, corrigireis os rebeldes a pontaços de baionetas!”

E houve um longo, estrepitoso aplauso…

Nada mais límpido no delatar o seu antagonismo com a própria capital do império, se inúmeros outros casos não o atestassem sob variadíssimas formas.

Sumo árbitro em tudo, em política, como em música, em arquitetura, como em poesia, em pintura, como em qualquer ciência; estrategista, dramaturgo, arqueólogo, teólogo, inédito em tudo, poeta sem um verso, filósofo sem um conceito, músico sem uma nota, guerreiro sem um golpe de sabre, esse dissipar a individualidade irrequieta, espraiando-a largamente sobre todas as coisas, tem-lhe acarretado sucessivos desapontamentos.

Aqui, um edifício, o novo palácio de Reichstag, é o melhor exemplo, que se lhe afigura monstruoso aleijão, na mesma hora em que todos os profissionais alemães consagravam em verdadeira apoteose o arquiteto feliz que o planejou; além, um músico, que se lhe afigura simplesmente detestável — e que se imortaliza, e é Wagner…

Não raro o antagonismo avulta e enreda-se ao ponto de dirimir-se nos tribunais. Há tempos o imperador, no meio de seus pensares, teve uma ideia surpreendente:

construir mais igrejas em Berlim. Uma obsessão de artista. Entristecia-o, talvez, o belo firmamento berlinês, arqueado e vazio sobre as casernas acaçapadas, ou chatos alpendres de fábricas, sem o delicado granito das rosáceas, sem um grande, arrebatador e vivo tumultuar de campanários alterosos… E a este propósito fez que ressurgisse uma lei obsoleta, de há quatro séculos, pela qual a cidade se obrigava a construir um número de templos proporcional ao de habitantes. O fóssil decreto medieval, porém, caiu estrepitosamente sob a condenação dos juízes…

Assim por diante.

É natural que a Alemanha se isole, perenemente ameaçadora e ameaçada.

Nada se pode prever na sua política ferrotoada de caprichos. Rodeia-se a suspeita receosa das nações.

E, no momento agudo que vai passando, nesta vasta crise universal apenas começada nos recantos do Extremo Oriente, quando os máximos resguardos presidem os atos de todos os governos, devem-se aguardar todas as surpresas da volubilidade alarmante e das arrancadas românticas daquele minúsculo deus do Edda, desgarrado na terra e errando entre as gentes — incompreendido, idealista e temeroso — como se fosse um neto retardatário das Valquírias…

CUNHA, Euclides da. O Kaiser. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/contrastes-e-confrontos/o-kaiser. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O Comércio de São Paulo, 11 ago. 1904. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. In: Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 12-7.