Este belo título clássico cabe ao Brasil. E o que nos revela um sociólogo qualquer da Contemporary Review, um dos muitos que hoje arremetem, aforradamente, com o indefinido das questões sociais. E inglês; e o argumento essencial ressalta-lhe na resvaladura desta cinca: somos um povo sem juízo e a vitalidade germânica, em breve, nos absorverá. Registe-se-lhe a frase, onde a massuda sisudez britânica aflora o riso da alacridade ibérica: the Brasilians themselves, as Don Quixote said of Sancho Panza, are people of “muy poca sal en la mollera.”
É interessante. Para o filósofo, pinturesco no amenizar de jogralidades cogitações tão maciças, temperando o seu Hegel com Cervantes, somos decididamente um povo pródigo, doudivanas, que anda na história a esperdiçar uma herança. Impõe-se-nos a curadoria de um protetorado ou de uma conquista mansa, o carinhoso puxão de orelhas paterno com que se reaviam os pupilos inexperientes. É um caso em que o direito internacional, cujo elastério vai aumentando à medida que se dilatam as parábolas das balas, pode humanizar-se, transmudando-se no código civil proeminente das nações.
De feito, vai, ao parecer, dando demasiado nas vistas esta nossa vida fácil e perdulária, esta nossa vida à gandaia, ociosa e comodista, sobre a enorme fazenda de uns quatrocentos milhões de alqueires de terras, onde sesteamos, fartos, entre os primores de uma flora que tem tudo, desde o mais reles cereal ao líber e ao látex, para os lavores da indústria — e que nos da tudo de graça com a sua exuberância incomparável, permitindo-nos contemplar, (contemplar apenas como coisas meramente decorativas de um vasto parque de recreio), as nossas virgens bacias carboníferas, as nossas montanhas de ferro, as nossas cordilheiras de quartzito, os nossos litorais dourados pelas areias monazíticas, e o estupendo dilúvio canalizado dos nossos rios, e os cerros lastrados de ouro das grupiaras, e os pendores numerosos, onde se desatam perpetuamente as longas fitas alvinitentes da hulha branca à espera das roldanas que elas moverão um dia… Coisas que mal vemos, pisando distraídos sobre o macadame sem preço dos cascalhos diamantinos e errando nos paraísos vazios dos gerais sem fim…
Enquanto isto acontece, a vida de outras gentes, intensíssima e a crescer, a crescer dia a dia, mais e mais se agita, constrita à força na clausura das fronteiras. De sorte que a nossa esplêndida mediocridade se lhes torna em perpétuo desafio, repruindo-lhes a riqueza torturada e a pletora de forças que, na ordem econômica, caracteriza o moderno imperialismo.
A Alemanha é o melhor exemplo. E o caso típico de um povo sob a ameaça permanente de seu mesmo progresso. Passando, com uma rapidez sem par na história, do regime agrícola em que se aplicavam, há meio século, três quartos da sua gente, para o máximo regime industrial, onde se aplicavam hoje dois terços da sua atividade — ficou duplamente adstrita a todas as exigências do expansionismo obrigatório. Para viver e para agir. De um lado, calcula-se que o seu solo, intensamente explorado, no máximo, bastará a alimentar trinta milhões de homens, e ela tem quase o dobro. De outro, cerca de metade das matérias-primas, que lhe alimentam as indústrias, vem do exterior. Está numa alternativa. Ou isolar-se num papel secundário e obscuro, procurando, na emigração pacifica, um desafogo à sua sobrecarga humana — ou expandir-se, sistematicamente conquistadora, arriscando-se às maiores lutas.
Preferiu o último caso. Não tinha por onde sair.
A atitude entonada, o recacho atrevido, as hipérboles políticas e todo o gongorismo guerreiro desse Guilherme II, de fartos bigodes repuxados e duros olhos verdes resumando cintilar de espadas, e os seus arrancos oratórios, as suas inconveniências e os seus exageros, e até as suas temeridades, todas essas coisas anômalas que, há dez anos, sobressalteiam a Europa — têm o beneplácito dos mais frios pensadores da Germânia.
Há quem descubra naquela figura tumultuária algo de medieval. É, de fato, um revenant.
Mas, por isso mesmo, é o melhor tipo representativo desta situação especialíssima da Alemanha a idealizar, com os mesmos enlevos dos trovadores de suas velhas baladas, a sua missão na terra.
Apenas a odisseia não tem rimas; tem cifras; reponta de argumentos inflexivelmente práticos; e os seus melhores cantores, uns velhinhos mansíssimos, saem do remanso das academias. Resolvem um problema: e não indagam se ele requer, ou dispensa, o processo de eliminação de algumas batalhas.
Para o Dr. Vosberg-Rekow, todo o corpo político-industrial alemão depende do estrangeiro por maneira tal que a súbita parada na remessa das matérias-primas essenciais lhe acarretará desorganização completa — verdadeira ruína que só pode prevenir com uma poderosa marinha apta, do mesmo passo, a fiscalizar os caminhos do mar e a facilitar a conquista de colônias produtivas.
O professor Schmoeller é até alarmante: se a Alemanha se não robustecer bastante no mares, ao ponto de garantir, perenemente, a importação do trigo de que carece, e, em dadas circunstâncias, exercer uma pressão eficaz sobre os países que lho vendem — a sua própria existência material está em perigo.
Sobre todos, Bassenge, abertamente terrorista, agita três espectros do futuro: a Rússia açambarcando quase toda a Ásia; a América do Norte, com a sua ilimitada energia econômica, derrotando a Europa dentro dos mercados europeus; e a Inglaterra, monopolizando o comércio de um quinto da superfície terrestre. Apelam para a estatística, a serva desleal da sociologia; calculam; perdem-se nas tortuosidades dessa aritmética imaginária, e Schleiden descobre que em 1980 haverá 1.280 milhões de eslavos e anglo-saxônios contra 180 milhões de alemães, o que equivale à morte do pan-germanismo pelo simples peso material daquela massa humana.
Sering não vai tão longe. A seu parecer dentro de vinte anos a indústria russa atenderá por si só ao mercado nacional, o que sucederá também com a norte-americana, — e se a Inglaterra realizar a planejada Imperial Customs Union, o industrialismo alemão ruirá de todo, restando às populações o abandono da pátria.
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Diante de perspectivas tão sombrias, compreendem-se os lances arrojados da política teutônica, que assumem hoje os mais díspares aspectos — desde a anglofobia exposta durante a guerra do Transvaal, disfarçando o intento de captar um consumidor na África do Sul, a esta fantástica estrada de ferro de Bagdá, visando transformar Ormuz num Suez prussiano, de onde se facilite uma passagem para o oceano Índico.
Mas, sobre todos estes expedientes, a medida que faz delirar a quantos filósofos, sábios, meio-sábios e sociólogos o fetichismo nacional de Kreisreidee agita entre o reportado von Bulow e o irrequietíssimo imperador, o ideal que estonteia os Wagner, Schmoeller, Hartmann, Vosberg, Schumacher, Voigt, Sering e toda uma legião de foliculários assanhados — é a posse do Brasil do Sul.
Não lhes resta o vacilar mais breve: caímos na órbita da Alemanha, como o Egito na da Inglaterra, e na da Rússia a Mandchúria.
O Dr. Leyser — são em geral doutores estes pioneers abnegados — não o disfarça no seu belo livro:
Hoje, nestas províncias (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) cerca de 30% dos habitantes são germanos ou seus descendentes: e, por certo, nos pertence o futuro desta parte do mundo. De feito, ali, no Brasil meridional, há paragens ricas e salubres, onde os alemães podem conservar a nacionalidade, e um glorioso futuro se antolha a tudo que se compreende na palavra — germanismus.
Como este, ideiam-se outros projetos imaginários, que fora inútil reproduzir, tão conhecidos são eles. E intermitentemente, um naturalista de nome arrevezado, H. Meyer, von den Stein, ou qualquer outro, ou esse Dr. Valentim, espécie de repórter enciclopédico de um jornal berlinês, aparece entre nós; traça, em alemão, o melhor das nossas inéditas paisagens, e atira para além-mar, dentro de um livro curioso, ou nas entrelinhas das correspondências administrativas, ou nos cifrões dos relatórios maciços, novos elementos ao fervor expansionista em que, por igual, ali se abrasam, unidos pelo mesmo anelo, militares arrogantes, políticos solertes e austeros pensadores…
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Ora, tudo isto é monstruosamente verdadeiro; tudo isto forma um dos prediletos assuntos de grande número de revistas, e tudo isto é um exaustivo, um absolutamente estéril bracejar entre miragens.
Que não nos assuste este imperialismo platônico…
Um simples, o mais apagado lance de vista sobre o atual momento histórico, revela que a Alemanha não pode balançar-se, tão cedo, a empresas de tal porte. A sua política expansiva gira num círculo vicioso original; precisa de colônias e mercados estranhos para viver e vencer a concorrência de outros povos; precisa dominar, sob todas as formas, esta concorrência, para conseguir aquelas colônias e mercados.
Dificilmente se forrará aos entraves desta situação penosa.
O seu duelo econômico com a América do Norte e com a Inglaterra é dos que não terminam nunca; a sua incompatibilidade com a França é irremediável; e a aliança com a Itália implica com a solidariedade latina renascente. Guilherme II, com o seu desastrado ansiar pelas simpatias de todo o mundo, só conseguiu um amigo, um deplorável amigo, o seu grande amigo Habdul-Hamid, o sultão vermelho, encouchado, traiçoeiramente, nos Dardanellos, na encruzilhada suspeita de dois mundos…
Resta-lhe o gravitar passivo na órbita desmedida da Rússia. Mas esta há de arrebatá-lo para o Oriente, longe.
Além disto, o príncipe de Monroe, interpretemo-lo à vontade, com ser um reflexo político dos interesses estritamente comerciais do ianque, tem o valor de nos facilitar ao menos uma longa trégua.
Podemos deixar estas batalhas de frases contra fantasmas e voltar à luta real, à campanha austera do nosso alevantamento próprio.
Que a Alemanha sonhe à vontade: é a grande terra idealista por excelência, onde os mesmos matemáticos da envergadura de Leibnitz são poetas.
Ali nasceu Schiller, de quem se conhece um verso admirável.
Arcádia, pátria ideal de toda a gente!
Sendo assim, errou o minúsculo sociólogo precipitado. A Arcádia da Alemanha não é o Brasil.
Lá está dentro dela mesmo, no seu melhor retalho, na Prússia liricamente guerreira e fantasista, onde, nesta hora, tumultuam não sabemos quantos marechais devaneadores e não sabemos quantos filósofos belicosos.