Estrelas indecifráveis

Conta-nos São Mateus daqueles três reis magos, que abalaram de seus países em busca do Messias recém-nado, conduzidos por uma estrela extraordinária que, improvisamente, resplandesceu na altura, em plena luz de um firmamento claro.Não critiquemos, impiamente, a narrativa singela do primeiro evangelista.

Justifiquemo-la. Por aqueles tempos, da Caldeia à Grécia e à Itália, à Índia e à China, os graves acontecimentos, ao parecer dos mais sisudos astrólogos, prenunciavam-nos os céus. Do Mahābhārata à Ilíada, alonga-se um imaginoso devaneio: quando nasceram Krishna e Buda, alumiaram-se os horizontes em resplendores de quedas de bólidos; propícios clarões lustrais banharam o berço de Esculápio; e ao ruir, trabalhada das catapultas, a derradeira cortina dos muramentos de Troia, aflorara no espaço a sétima estrela da constelação das Plêiadas…

Ora, para a vinda de Cristo aparelhara-se a antiguidade de esperanças religiosas tão vastas, que o messianismo judaico se generalizara em aspiração universal. Conchavavam-se, prognosticando-a, o histerismo das sibilas e o ilapso dos profetas: os cálculos imperfeitos dos primeiros astrônomos contemplativos, e os hexâmetros impecáveis dos poetas da Roma imperial. A cultura clássica, na sua plenitude, acolhia um eco longínquo das civilizações orientais, que terminavam. As rudes profecias de Balaão, pressagas do reinado deslumbrante de um deus nas terras eleitas de Israel, harmonizavam-se, de algum modo, às apóstrofes rítmicas do Prometeu, de Ésquilo, ao vaticinar, nos palcos atenienses, ante o assombro das platéias comovidas, a próxima abdicação de Júpiter. O Livro de Daniel prolongava-se nas éclogas de Vergílio. E o vate gracioso, num rapto genial da fantasia, batera parelhas ao vidente: não lhe bastara o pressentir próximo renovamento dos séculos esgotados, trocando-se os sinais dos tempos; senão que ao espetáculo das sociedades novas, prefiguradas, ligou o império de uma criança maravilhosa, que ao nascer faria estremecer a natureza inteira, da imensidade dos mares à imensidade dos céus. Foi além no descortino inexplicável. Previu que a nova ordem moral, instintivamente adivinhada, requeria outras linhas mais corretas, no próprio quadro da natureza física. Transfigurou-se, sem o saber, em êmulo de Pitágoras e precursor de Copérnico. De sorte que a primeira sacudidura na Terra, imaginada imóvel e a centralizar as caprichosas esferas de cristal, onde se clausurava o Universo, lhe desponta no vigor de um verso admirável: porque quando nascesse o infante predestinado

no seu eixo abalado o mundo oscilaria[ 1 ]

Assim avassalava as raças mais discordes ao anelo transcendental das profecias.

Não maravilha que os três magos, filhos da Caldeia sonhadora, arrancassem de seus lares remotos, norteando-se pela estrela surpreendente. Iam-se em busca do Messias. Vindos de Sabá, ou da Babilônia, ou da Pérsia, marcharam longos dias, até que atingiram os terrenos adustos do Iêmen. Calcaram-nos, sob os céus implacáveis da paragem estranha.

Em torno os móveis areais, transverberando a luz, mal lhes disfarçavam no chão revolto, que pisavam, a escanceladura dos abismos, abertos pelo velho mar extinto, que por ali expandia outrora o Mediterrâneo, e hoje mal se adivinha, evanescente e estancado, na depressão profunda do Asfaltite. Romperam-nos, com o remorado andar das caravanas. Caminhavam na intermitência angustiosíssima dos dias adurentes e das noites enregeladas. E foram-se de deserto em deserto, de oásis em oásis, das sombras zimbradas de lampejos das tamareiras altas, para os areais em fogo, onde agonizam os heliotrópios tolhiços e as pistácias deprimidas: — até que as suas vistas tontas das miragens distinguissem os primeiros rebordos dos pendores clivosos ao norte do Sinai, estalados e ásperos, estereografando ainda a convulsão vulcânica que lhes ergueu os cimos arremessados, de rocha viva, perpetuamente desnudos, para que o sol neles renove sempre, no espadanar dos brilhos refletidos, a memória longínqua das sarças ardentíssimas dos profetas.

Transmontaram-nos, tornejando-lhes as encostas mal vestidas da flórula bravia das acácias espinhosas; e seguiram, lentamente, até Jerusalém. . . Não pararam. Deixando a “cidade compacta”, entre as apreensões de Herodes e as conjeturas dos sacerdotes suspicazes, reaviaram-se, rumo feito ao norte. Dirigiram-se, sem o saberem, em demanda da menor das vilas de Judá. Adiante, imóvel no horizonte resplandecente, atraía-os a estrela radiosa; e ela foi conduzindo-os até Belém, onde os seus raios tranquilos se joeiraram na cobertura humilde de um estábulo.

Penetraram-no. Foi um encanto e um desafogo: os olhos encandeados no refulgir dos plainos incendidos, repousaram, suavemente, na auréola ideal de uma fronte loura de criança.

Despuseram-lhe, depois, aos pés, as preciosas dádivas que traziam. Prostraram-se. Adoraram-na.

Então a estrela se apagou na altura…

*

Mas não se extinguiu para sempre. Por singular que se afigure, a ciência entre todas senhora dos fenômenos que a constituem, durante longo tempo, pela voz dos que melhor a versaram, planeou ajustar ao misticismo incomparável de S. Mateus as suas fórmulas rigorosamente positivas. Não tolheu os sábios fascinados a simples consideração do absurdo, ou da impiedade, sem dúvida decorrente da só tentativa de subordinar-se às leis naturais um caso que satisfazia, à saciedade, à crença religiosa com a simples circunstância de derivar-se da Onipotência Divina.

É que estes sóis intrusos, ou “estrelas hóspedes” do firmamento, consoante o pinturesco dizer dos velhíssimos astrônomos chineses, do Ma Tuan-lin, constituíram em todas as épocas a novidade mais emocionante do universo. Menos comuns que os cometas, por adstritas a um compasso mais vagaroso no ritmo das manifestações periódicas das aparências cosmológicas, talvez por isso mesmo foram sempre mais surpreendedoras. Observam-se de séculos em séculos. Em dois mil anos, desde a primeira estrela variável que Hipparchus registrou entre e β e α do Escorpião, no ano de 134 antes de Cristo, até quase aos nossos dias, mal se apontavam 21 aparições verificadas; e em todas elas, quer os raios entrevistos se refletissem nas retinas encantadas dos antigos crentes, quer nos astrolábios medievos, ou nos telescópios modernos, deslumbraram por igual os fantasistas fervorosos e os pensadores tranquilos: e apagaram-se despertando um sem número de hipóteses, todas até hoje inviáveis e vacilantes, desde a de Newton explicando-lhes a revivescência dos brilhos como um efeito da queda dos cometas, à de Maupertuis, das rotações regulares e contínuas de Bouilaud, ou Goodricke, à dos fluidos elétricos de Arago, e inumeráveis outras, que constituiriam, por si sós, uma biblioteca singularíssima de conjeturas e de erros.

Porque a Astronomia não deu um passo para esclarecê-las. Neste lance está como em plena Média Idade. As suas fórmulas e sistemas não valem o latim aterrado dos astrônomos de horóscopos, tateantes nas miragens astrológicas. O ilustre Faye, por exemplo, não no-las explica melhor do que Hepidannus, o extraordinário monge de Saint-Gall, núncio da estrela nova, de excepcional fulgor, que sobredourou durante três meses o signo de Áries, no extremo meridional dos céus. É como se passassem sobre as ciências seiscentos anos inúteis. O raciocínio inflexível do cientista destes dias, apercebido de melhores lentes e de melhores fórmulas, diz-nos ainda menos que o espanto do asceta absorto ante o astro insolitae magnitudinis, aspectu fulgurans et oculos verberans, fulgindo espantosamente, e apagando-se tão de súbito que justificaria o pensamento ousado de Chladni, no conjeturar as destruições violentíssimas dos mundos que se incendiam.

No entanto, apesar do incompleto dos antigos catálogos estelares, jamais passou despercebida a mais diminuta delas acessível a observação direta — desde a Omicron bruxuleante de David Fabricius, em 1596, à monstruosa estrela, de constelação indecisa, que o Ma-tuan-lin registrou em 1578, “tão grande quanto o próprio Sol!”

E umas e outras despertaram em toda parte os mais pertinazes estudos. Baldados todos. As teorias prestes levantadas, prestes decaídas, sucedem-se, ou revezam-se, insustentáveis na flutuação indefinida das hipóteses.

Aponte-se um exemplo clássico. Em torno da Peregrina, descoberta em 1572 por Tycho Brahe, debateram-se todos os naturalistas dos fins do século XVI; e acompanhando-se, quase justalinearmente, a narrativa do grande precursor de Kepler e de Newton, põe-se de manifesto que o acontecimento era, na verdade, de molde a impressionar os mais incuriosos espíritos.

O sucesso sobressalteou o sábio dinamarquês quando ele se dedicava a outras cogitações. Seguia da Alemanha para a Dinamarca; e como se hospedasse na Abadia de Harritzwald, e estivesse longe dos livros e instrumentos prediletos, entregou-se algum tempo, por desfastio, aos seus sonhos de alquimista, característicos da época. E atravessava os dias em um laboratório atravancado de fogareiros e retortas. De sorte que somente ao cair das noites, diante da janela aberta, lançava as vistas desarmadas para os céus, longo tempo, numa contemplação que era o próprio rever a sua carreira extraordinária balizada em cada um daqueles pontos luminosos. Mas estas romarias virtuais, pelo meio das constelações, interrompeu-lhas, certa vez, o caso inesperado. Foi num dos longos crepúsculos próprios àquelas altas latitudes. Tycho Brahe divisou de repente, perto do zênite, no grupo de Cassiopeia, uma estrela fulgurante, de anômala grandeza, como ainda se não vira. O seu assombro foi indescritível. Acreditou numa alucinação. Inquieto e alarmado, ante a surpresa que lhe apontava no infinito, ao cabo de tão longa vida passada entre as estrelas, deixou de arremesso o seu retiro tranquilo: — e chamou, aos gritos, os operários do laboratório, e interpelou os próprios camponeses, que lhe passavam à porta, voltando das searas, para confirmarem o fato inesperado…

A stella nova era fixa, definida, e mais cintilante que todas as do firmamento. O seu brilho ofuscava os de Sírius, de Vega, de Júpiter e de Vênus ainda quando próxima da Terra. Distinguia-se em pleno rebrilhar do Sol meridiano. Nas noites tormentosas os seus raios coavam das nuvens, que se espessavam escondendo os céus.

Mas foi um resplendor passageiro.

A partir dos fins de 1572 diminuiu-se-lhe o fulgor. Ficou igual a Júpiter; e continuou no decair contínuo, ao mesmo passo que a primitiva brancura se alterava. Em março de 1573, reduzida a segunda grandeza, os raios, que se lhe avermelharam, equiparavam-na a Marte. Em julho, estava em terceira grandeza. Decaiu à quarta, em outubro. Em novembro, num súbito obscurecimento, mal se incluía na décima primeira — uma taxa imperceptível no espaldar do trono olímpico de Cassiopeia ­; e logo depois se extinguiu (ou pareceu extinguir-se, porque o telescópio ainda não se inventara) depois de dezessete meses de existência misteriosa…

Tais pormenores, como observa Humboldt, delatam bem a influência que o fenômeno exercia nos espíritos e a importância que se dava aos problemas que ele sugere. Assim, o mesmo Tycho Brahe nele baseou-se para agitar, num lance de gênio, que o faz invadir a glória futura de Herschel, a teoria da formação das estrelas com a matéria cósmica incompletamente adensada nas nebulosas.

Houve, porém, outro rumo às pesquisas astronômicas exercitadas a propósito do efêmero mundo de três meses.

De feito, para a maioria dos cientistas do tempo, ele traduzia o ressurgimento da estranha “estrela dos Magos”, que brilhara havia dezesseis séculos.

Nunca o misticismo e racionalismo se entrelaçaram mais estreitamente à luz de indagações tão positivas. O próprio Cardano alinhou-se entre os mais convictos no restaurar-se a antiga página do Evangelho, entressachando-a com as da ciência; e, ainda exagitado das últimas controvérsias da Reforma, um rígido protestante, Théodore de Béze, sucessor de Calvino, esposou, liricamente, a causa maravilhosa, versando-a nos cantos comovidos de um poema. Por fim Goodricke — o gênio mais singular da humanidade, um surdo-mudo que morreu aos vinte e dois anos deixando um traço imperecível nas ciências — procurou destacar, para a evidência infrangível da Aritmética, o milagre. Era o mistério a resolver-se em números. Partindo dos elementos fornecidos por um astrônomo da Boêmia, Cyprianus Leovitius, relativos a duas estrelas que apareceram em 945 e 1264, na mesma zona do espaço, perto da Via Láctea, onde se mostrara a Peregrina, de Tycho — ele encontrou-lhes, no intervalo de 319 anos, a razão de uma série simplíssima; de modo que por diferenças sucessivas, a começar de 1575, data em que a estrela de Tycho Brahe devera ter-se extinguido de todo, se pudesse ir, recuando no tempo, encontrar, matematicamente, no seu primeiro termo, o primeiro ano do cristianismo. E traçou a progressão aritmética, evidentemente certa:

1.575: 1.260: 945: 630: 315: 0

Infelizmente, infirmavam-lha vários termos dúbios, ou falsos. Não só os astros de Leovitius eram contestáveis, como nenhuns catálogos inseriam a estrela fugitiva, em 630 e 1.260.

Mas este malogro não desenfluiu os sonhadores a caminharem tão aforradamente pela astronomia em fora; porque desde 1604 lhes tomou a dianteira, dirigindo-os com a mesma ansiosa e mística curiosidade, o mais ilustre entre os maiores astrônomos, Kepler, que, ao mesmo passo que deduzia as leis invioláveis da geometria planetária, reanimava o estranho problema bíblico-científico. É que o impressionara, como ao maior de seus antecessores, uma outra aparição luminosa, por igual surpreendente. A sua estrela, que irradiara, de improviso, em 1604, no Serpentário — com a ascensão reta de 259°42′ e declinação austral de 21°15′ era, de fato, à parte a diferença de posições, em muitos pontos idêntica à de Tycho Brahe. Suplantava, no brilho, as demais, de primeira grandeza; refulgia num cintilar agitadíssimo, que estonteava as vistas; e foi-se igualmente sumindo, com análogas fases na variedade das cores. Em janeiro de 1605 o seu fulgor amortecido mal a igualava a Antares. Em março, deperecia, equiparada às de terceira grandeza. Um ano depois desfez-se completamente no espaço.

Ora, simultânea com o seu aparecimento, ocorrera a conjunção de Júpiter e Saturno, a que se aditou logo após, em março de 1604, a de Marte, determinando conhecido fenômeno periódico dos céus, adscrito a intervalos regulares de vinte anos. Era, como se vê, um ponto de referência novo, que surgia entre as aparições até então de todo em todo imprevistas. Aproveitou-o Kepler. Esteando-se naquele período inviolável, procurou descobrir se se havia verificado a situação excepcional dos três planetas, no ano do nascimento de Cristo, em que se observara a radiosa condutora dos Magos. E os resultados de um cálculo extremamente simples foram notáveis. Admitidas embora todas as surpresas do acaso, realizara-se, pela primeira vez, uma previsão científica no complicado e misterioso assunto. De fato, à luz da profecia retrospectiva blindada de elementos tão firmes, o astrônomo deduziu que a conjunção inicial de Júpiter e Saturno se efetuara, realmente, no ano de 747, de Roma, na segunda metade do signo de Áries, completando-se logo com a de Marte na primavera de 748. Então, diante de datas tão eloquentes, a ilação afigurou-se-Ihe inflexível: a sua estrela, como a de Belém, associando-se a idênticas manifestações planetárias regulares, periódicas, sucedendo-se, infalivelmente, mercê das próprias leis geométricas que ele desvendara — era a própria estrela que conduzira os Magos…

Não discutamos o parecer do sábio incomparável, que jamais realizou a mais rápida observação de uma altura sem dobrar-se, genuflexo, ante a majestade emocionante do Infinito.

Releva, porém, observar que, ainda mesmo de todo libertas de quaisquer intuitos religiosos — nos nossos dias asperamente utilitários — estas estrelas variáveis e repentinas, cujo número sobremodo avultou com o emprego de melhores objetivas, das placas fotográficas e da espectroscopia — são ainda um verdadeiro mistério.

Estudando-as, tem-se chegado, hoje, a resultados desalentadores. Não é apenas a ingerência anárquica do sobrenatural, ou do divino, que havemos de remover da frente, para vê-las bem, galhardeando a nossa magnífica ignorância inflada de teoremas — senão que ao mesmo tempo havemos de repelir o que até agora parecia intangível e inabalável: as nossas fórmulas mais bem decoradas, os sistemas mais rígidos, todos os raios vetores e elipses, e arremessadas parábolas a nos desenharem os projetos da arquitetura maravilhosa dos mundos, riscando-se além disto do mais suntuoso dos calendários os melhores santos da nossa impiedade, ou do nosso ultramontanismo sem Deus.

O Evangelho fecha-se com a astronomia.

Demonstra-no-lo um derradeiro exemplo que nos escusamos de longamente explanar trilhando os rastos de um cientista qualquer.

O mais bem estudado desses astros indecifráveis é β de Perseu, a clássica Algol dos árabes, descoberta desde 1667 por Montanari. As suas variações de brilho, sucedendo-se em curtos períodos de uma regularidade perfeita, tornam-na mais compreensível que as demais, vistas de relance. Por isto mesmo, Goodricke apresentou desde o século XVIII, acerca dos períodos de suas oscilações seculares, uma hipótese, que está hoje unanimemente aceita sob o beneplácito de recentíssimas observações espectroscópicas. Consiste, de um modo geral, em admitir-se um binário de dois astros, tão achegados que parecem unidos às nossas vistas, e descrevendo ambos, em torno de um centro de gravidade comum, as suas órbitas elípticas, de modo que cada revolução corresponda a dois eclipses, de um e de outro, no mutuarem as suas inevitáveis ocultações intermitentes. Ora, discutindo-se, sob diversos aspectos, está hipótese, que é a única a não se retrair diante das objeções que se lhe antepõem, e é a única a explicar, consoante pareceres unânimes, a curiosa anomalia que surpreendeu por igual os magos primitivos e os mais robustos pensadores — convêm os astrônomos contemporâneos em que ela, por sua vez, acarreta outras hipóteses, e entre estas uma que os perturba: a de sistemas cósmicos construídos de uma maneira inteiramente diversa da do nosso sistema planetário. O parecer é unânime; e nem carecemos demorar-nos pormenorizando-o. [ 2 ] Recentemente Zöllner e Bruns, repugnando-lhes abandonar as trilhas tradicionais da astronomia, ou por evitar a derrocada de teorias tão brilhantes, demasiaram-se em argumentos armados a engenharem outras explicações. Baldaram-se-lhes as tentativas. Ficou de pé um conceito único: o caso das estrelas variáveis, até agora incompreensível, escapa inteiramente aos métodos ordinários da mecânica celeste…

Ora, volvendo a β de Perseu, trata-se de uma estrela que rebrilha com intervalos de excepcional regularidade. Além disto, inclui-se entre as mais humildes do firmamento. Nada possui do maravilhoso encanto da Peregrina de 1572. Ofuscá-la-ia o só aparecimento, a distancia, da estrela de Kepler. Perde-se nas alturas. Os astrônomos do Observatório de Yale, ao determinarem-lhe a paralaxe anual, com as suas lúcidas medidas heliométricas, encontraram o ângulo apertadíssimo de 0”035; e concluíram que se se transportasse o Sol à distancia deduzida daquele elemento, ele se encolheria no espaço, menor que uma estrela de segunda grandeza. Realmente, Algol, a estrela diminutíssima que não distinguimos por demasiado perdida na poeirada cósmica, e que não atrairia os magos, nem deslumbraria Kepler, nem sobressaltaria Tycho Brahe — representa, conforme os cálculos severos de Chase, um globo 52 vezes mais volumoso que o nosso coruscante astro-rei, soberano na exiguidade de sua minúscula província planetária…

Quase se admite, por esta simples circunstância, que esta última se não possa erigir em modelo impecável capaz de se ajustar a toda a arquitetura do universo… E não nos espanta que após estudarem, sob incontáveis aspectos, os astros extraordinários, e de assistirem aos despencar escandaloso de tantas explicações, gizadas a esclarece-los com os nossos conhecimentos atuais, cheguem os cientistas de agora à melancólica conclusão da falência inesperada da astronomia, ante aquelas estrelas flagrantemente rebeldes a todas as analogias oriundas do nosso sistema, e às fórmulas matemáticas mais seguras. Seguimos de bom grado, neste lance, a arrebatada ousadia de um dos mais belos espíritos da ciência contemporânea, H. Puiseux, acreditando que “a própria estabilidade das órbitas planetárias cessou de se erigir em lei universal”; e que as ideias consagradas de Herschel, de Laplace e de Newton, assinalando como objetivo uniforme da portentosa gestação das nebulosas o nascimento de globos sólidos, que se encarrilham logo após em órbitas invariáveis, e rolam, perpetuamente, na imensidade, sob o império das leis mais vastas da mecânica — se acham quase tão distanciadas de nós quanto a doutrina ontológica que imobilizava a Terra no centro invariável do Universo.

*

Como quer que seja, as nossas vistas cosmogônicas dilatam-se; e já não nos maravilha que a alma magnífica de Kepler passasse, com o mesmo entusiasmo fervoroso, do rigorismo impecável das suas linhas geométricas para os êxtases arrebatados dos crentes, consorciando, como nenhuma outra, o espírito científico, que nos desvenda o destino das coisas, ao espírito religioso, aviventado pela eterna e ansiosa curiosidade de desvendarmos o nosso próprio destino. E pensamos — maravilhados diante do crescer e do transfigurar-se da própria realidade, que, mesmo na esfera aparentemente seca do mais estreito racionalismo, se nos faz mister um ideal, ou uma crença, ou os brilhos norteadores de uma ilusão alevantada, embora eles não se expliquem, nem se demonstrem com os recursos da nossa consciência atual, como se não demonstram, nem se explicam, malgrado os recursos da mais perfeita das ciências, os astros volúveis, que palejam por momentos e morrem indecifráveis, como resplandeceu e se apagou a estrela radiosa, que norteou os Magos no deserto, e nenhum sábio ainda fixou na altura.

[ 1 ] Aspice convexo nutantem pondere mundum… — Virgílio, Écloga IV.
[ 2 ] Veja-se, a este propósito, o ensaio notável — Les étoiles variables à courte periode, de H. Puiseux. Revue de Mois, Ano I, número 11.
CUNHA, Euclides da. Estrelas indecifráveis. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. À margem da história. Parte IV, Estrelas indecifráveis. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/a-margem-da-historia/estrelas-indecifraveis. Acesso em: [data]. Publicado originalmente no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 25 dez. 1907.