Da Independência à República

(Esboço político)

O Brasil chegou ao século XIX na plenitude da expansão territorial, expressa nos Tratados de Madrid (1750) e Santo Ildefonso (1777). Apagara-se a linha ideal da Concordata de Tordesilhas; e a penetração colonizadora, já seguindo a rota acelerada das bandeiras, já o passo tardo dos missionários, irradiara por três quadrantes – para o norte, buscando os thalwegs do Oiapoque e do Amapá; para o ocidente, a encontrar as missões do Equador e as terras bolivianas, e para o sul, procurando o Prata, onde se erigira a baliza extrema da Colônia do Sacramento.

O grande trato de terras retratava aproximadamente a sua configuração atual, indefinida. Firmada a leste e ao sul pela desmedida faixa de uma costa maciça, pelo poente e norte ela derivava em traços indecisos, raro modelados pelas conformações geográficas, e ambíguos no fugitivo de linhas imaginárias lançadas em regiões desconhecidas, ou cindindo as cabeceiras de rios problemáticos.

Extremava a desmedida fronteira um único ponto astronomicamente determinado na foz do Arroio Chuí, ao sul (33° 45’ lat. S., 53° 25’ 05” long. O. G.).

Partia dali num traçado flexuoso, pela Lagoa Mirim, interferindo sucessivamente as cabeceiras dos rios Negro e Ibicuí, cuja correnteza a conduzia ao Uruguai. Desatava-se depois pelo Pepiri, buscando-lhe as nascentes; alcançava-as; transpunha-as; descia pelo Santo Antonio até ao Iguaçu, seguindo-o até ao Paraná; e alongando-se ao arrepio da corrente deste atingia a confluência do Igureí. Subia-o até as cabeceiras, volvendo ao ocidente e depois em cheio para o norte, quase ao acaso, divagante entre vertentes indecisas até ao Paraguai. Prosseguia pelo Paraguai acima até às cercanias da Baía Negra, onde o deixava, ilogicamente, para formar as lindes da Bolívia demarcadas pelos mais apagados pontos determinantes, rompendo pelo meio das corixas alagadas que salpintam vasta região de nível, até à foz do Jauru, onde uma reta para o ocidente – um capricho de cartógrafo – a distendia até à confluência do Guaporé com o Sararé. Descia tortuosamente em dilatada longura por esta divisa firme até a um ponto no Madeira, médio entre a sua foz e a do Mamoré – para se estirar de novo no desconhecido, em longo e imaginoso traçado retilíneo, procurando as fontes problemáticas do Javari, seguindo ao som das águas até a entrada no Amazonas. Depois novas lindes imaginárias, em que mal se fixa o traço inseguro do Japurá, até atingir, numa inflexão definitiva para leste, o divortium aquarum do Amazonas e do Orinoco.

Seguindo esta curva irregularíssima, mal delimitando o teatro da nossa existência naquele século, a carência de divisas arcifínias prendeu-nos, na fase decisiva da nossa organização nacional, a sérios problemas de organização do território.

Os limites com o Uruguai só se firmaram em 1857, depois dos sucessivos acordos de 15-maio-1851 e 12-outubro-1852 em que intervieram o marquês de Paraná e o visconde de Uruguai. Com a República Argentina originaram a questão quase secular das Missões, em que uma troca de nomes dos rios estremenhos, tendo anulado todo o esforço do visconde do Rio Branco, em 1857, se destinava, depois de longas negociações, à solução pela arbitragem em nossos dias (1895), e a reviver no de um digno herdeiro o nome daquele grande estadista.

Depois de uma campanha vitoriosa fixamos definitivamente as fronteiras com o Paraguai, desde a foz do Iguaçu à do Apa, passando pelas magistrais vertentes das serras de Maracaju e Amambaí, conforme o Tratado de 9 de janeiro de 1872, negociado com admirável brilho pelo barão de Cotegipe.

As estremaduras extensíssimas da Bolívia, porém, mal reguladas pelo Tratado de 27 de março  de 1867, do conselheiro  Lopes Netto, onde se trocou o critério geográfico das linhas naturais, que nos garantiam a posse dos tributários meridionais do Amazonas, pela base indefinida do uti possidetis, destinavam-se a chegar indeterminadas ao século XX, sob o aspecto ameaçador das questões incandescentes do Acre, travadas em torno da linha imaginária  que, partindo de uma coordenada fixa naquele tratado (10° 20’ lat. S.), na margem esquerda do Madeira, se alonga às cabeceiras do Javari.

As do Peru acordaram-se pelo Tratado de 23 de outubro de 1851, sob o princípio, expresso, da posse, traçando-se, definitivamente, em 1877.

As do Equador e da Colômbia ficaram insolúveis durante o correr do século. Antepunham-se-lhes, como preliminar indispensável, as questões de limites entre estas repúblicas e a do Peru. Quanto às da Colômbia, adscritas, por sua vez, a sérias dúvidas com a Venezuela e o Equador, encerravam germes de complexo litígio nas paragens desconhecidas do Alto Rio Negro.

Atingido o Norte, liquidamos, pelo Tratado de 5 de maio de 1859, negociado por Pereira Leal, as nossas divisas com a Venezuela, restando-nos, adiante, no rumo de leste, duas outras: – com a Guiana Inglesa, visando a posse do território neutro de Pirara, e com a Francesa, relativa à região contérmina que se desdobra entre o Amapá e o Oiapoque.

Velha de três séculos, porque podemos considerá-la nascente desde 1605 com La Revardière; transitando em sucessivos tratados e convênios que fora longo rememorar; parando no status quo do arranjo de 5 de julho de 1841, constituindo o Contestado; permanecendo inextricável a despeito das negociações entabuladas de 1853 a 1856; revivendo mais tarde na república extravagante de Cunani (1887); provocando, em 1895, um choque pelas armas entre nacionais e franceses — aquela última destinava-se à mais bela consagração do princípio civilizador da arbitragem, rematando nos últimos dias do século (1900), à luz do vigoroso espírito do barão do Rio Branco, todo esse longo trabalho de reivindicação do solo.

E fizemos, certo, muito, nesse desdar e corrigir ou reatar tantas linhas confinais enleadas, revoltas e até partidas pelo repentino abalo do domínio espanhol que se dissociara, de chofre, em nove estados.

Porque no fim da quadra colonial não havia curar-se de tais compromissos, entregues ao futuro. O Brasil era amplo demais para os seus três milhões de povoadores  em 1800. Além disto, à contiguidade territorial, delineada no litoral inteiriço, contrapunha-se completa separação de destinos. Os vários agrupamentos em que se repartia o povoamento rarefeito, evolvendo emperradamente sob o influxo tardo e longínquo dos alvarás da Metrópole, e de todo desquitados entre si, não tinham uniformidade de sentimentos e ideias que os impelissem a procurar na continuidade da terra a base física de uma pátria.

Formações mestiças, surgindo de uma dosagem variável de três raças divergentes em todos os caracteres, em que as combinações díspares e múltiplas se engravesciam com o influxo diferenciador do meio físico, de par com as mais opostas condições geográficas num desdobramento de 35° L, – chegavam ao alvorar da nossa idade com os traços denunciadores de nacionalidades distintas.

Dizem-no todos os casos dos tempos anteriores.

O drama da Inconfidência terminara recentemente no Sul, sem que o seu desenlace trágico comovesse o Norte, onde, por sua vez, em quadra mais remota, a luta contra os batavos se abrira e se encerrara com o divórcio completo das gentes meridionais.

Entretanto, acima destas divergências de ordem étnica e política reinava inteira uniformidade nas situações mental, moral e social da Colônia. As duas primeiras tinham o lastro uniforme das crenças católicas triplamente inquinadas das superstições medievas, do fetichismo indígena e do animismo africano; e a última, caracterizando um estado semibárbaro, em que todo mérito estava na coragem pessoal e todo prestígio na glória militar, repousava sobre a escravidão.

Destarte, insulados no país vastíssimo em que se perdiam, os nossos patrícios de há cem anos tinham frágeis laços de solidariedade. Distanciava-os o meio: isolavam-nos destinos divergentes; separavam-nos profundamente as discordâncias étnicas. A diretriz da nossa história retorcia-se sem uma caracterização precisa, em movimentos parcelados, estritamente locais. E punha-se de manifesto um corolário único: a formação de algumas repúblicas turbulentas, sem a afinidade fortalecedora de uma tradição secular profunda.

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Alguém, porém, cuja missão prejudicial é hoje ponto incontroverso, malgrado os brilhos de uma glória militar indiscutível, ia realizar, sem o querer, completa transmutação em nossos destinos. Napoleão Bonaparte, que se propunha derramar sobre a Terra o fulgor da elaboração emancipadora da Enciclopédia no coruscar das fuzilarias, lançou, em 1807, as tropas de Junot sobre a Península Ibérica. E foi, como se sabe, um rude passeio militar…

O imortal sargentão entrou pelas fronteiras desguarnecidas de Portugal, e apavorou o mais inofensivo dos reis.

O príncipe regente da terra, D. João de Bragança, não se modelara para aquele transe. Representara, desde 1792, ao assumir a regência de Portugal, pelo interdito de Maria I, infelicíssimo papel nas agitações da Europa, oscilando entre as mais opostas atitudes. Partidário, a princípio, da Liga contrarrevolucionária, abandonara-a, depois da paz de Basileia, para cortejar o Diretório. Volvera-se depois à velha aliança inglesa, aplaudindo o revide fulminante de Nelson; para a deixar logo, numa curvatura lastimável à auréola imperial do menor dos grandes homens, emergente de 18 de Brumário. Completara, afinal, a fraqueza, prendendo-se às cláusulas humilhantes do Tratado de Madrid (1801) e pagando a peso de ouro a própria neutralidade, até surgir, em 1806, a conjuntura do bloqueio continental, acarretando-lhe novas oscilações, novas incoerências, novos desastres.

Titubeando entre a Inglaterra e o seu pertinaz adversário, despertara o desquerer deste último. Procurara serodiamente afastá-lo, enviando os passaportes ao ministro britânico, visconde de Strangford, e extremando-se no excesso de zelo de determinar o sequestro das propriedades inglesas em Portugal.

Mas definira-se tarde. O próprio chefe da esquadra britânica, que começara o bloqueio do Tejo, Sidney Smith, remeteu-lhe, ironicamente, o número do Moniteur onde se estampara o Tratado de 27 de outubro de 1807, de Fontainebleau, dividindo-lhe o reino entre a França e a Espanha; e, simultaneamente, a notícia da invasão francesa. Não a aguardou. Fugiu — para escrevermos o verbo que lhe sombreia a memória, empanando o significado mais verdadeiro de uma hábil retirada. Embarcou com a família e a corte alarmada (27 de novembro de 1807) nos restos de uma frota que abrira esteiras nos mares nunca dantes navegados, e, passível do mais caprichoso joguetear do destino, comboiado pelos próprios navios ingleses, inimigos da véspera, seguiu para o Brasil.

Ora, estes fatos, vertiginosamente desencadeados no passo de carga de uma invasão, iam ter consequências memoráveis. Lançavam à nossa terra o único estadista capaz de a transfigurar.

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De fato, na situação em que nos achávamos, impropriávamo-nos por igual ao império de um caráter forte e aos lances de um reformador de gênio. O primeiro seria novo estímulo às revoluções parciais, acarretando a desagregação inevitável; o último agitar-se-ia inútil como um revolucionário incompreendido. Precisávamos de alguém capaz de nos ceder, transitoriamente, feito um minorativo às cisões emergentes, o anel de aliança da tradição monárquica, mas que a não soubesse implantar; e não pudesse, por outro lado, impedir o advento das aspirações nacionais, embora estas houvessem de aparecer, paradoxalmente, no seio de uma ditadura desvigorada e frouxa.

E D. João VI, um medíocre, foi um predestinado. Avesso a bravuras, alma ingênua e comodista, ornada de uma placabilidade burguesa, abatido demais pelas desordens de um lar infeliz, entristecido pela figura da velha rainha-mãe D. Maria I, que enlouquecera — a inércia e a visão restrita foram-lhe atributo preeminente: permitiram que lhe agisse intacta, sobre o ânimo, a vontade de alguns homens superiores que em boa hora o rodeavam.

Revelam-no todos os fatos subsecutivos à sua chegada à cidade da Bahia, em 22 de janeiro de 1808. Ali, o seu primeiro ato foi um golpe sulcando a fundo todo o regímen colonial, pela franquia dos portos brasileiros ao comércio das nações amigas, que o eram todas, excetuada a França. Mas na Carta Régia de 28 de janeiro daquele ano, que a estatuiu, reflete-se, exclusiva, a sugestão direta do nosso primeiro economista, José da Silva Lisboa, visconde de Cayrú. Neste lance o fato econômico da impossibilidade de manter-se regularmente com a Metrópole as comunicações marítimas sobreleva a tudo. A necessidade premente de paliar os efeitos de uma crise comercial facilmente prevista, determinou incidentemente a elevada resolução política.

Completou-a, depois de chegar ao Rio de Janeiro, com a de 1º de abril, desafogando as atividades e derrogando o alvará de 5 de janeiro de 1785, que ordenara o fechamento de todas as fábricas, extravagante traço legal sublinhando o vadeísmo indígena.

Quaisquer que tenham sido, entretanto, os seus móveis estranhos, estes dois decretos, equivalentes aos efeitos de duas revoluções liberais, bastavam a enobrecer-lhe o nome de Regente. Relegam a segundo plano todas as falhas de uma educação imperfeita que, ligadas ao desadorar os mínimos rigores da pragmática, o tornaram por vezes inferior às exigências da dignidade real, jungindo-o para sempre ao humorismo nem sempre justo, e ao enxovalho dos cronistas, ou historiadores de anedotas. Porque quem lhe restaura hoje a figura – expungida de um sem-número de pormenores lastimavelmente hilares, e a enquadra, de preferência, logo em princípio, naqueles decretos decisivos e quase revolucionários, aprecia-a sob outro aspecto.

Foi, em primeiro lugar, um estoico.

Não o abatera o súbito declínio de uma pátria em despenhos do fastígio efêmero em que a alcandorara a ditadura de Pombal; não o abalara, depois, a troca de uma capital suntuosa pelo Rio de Janeiro de então, grande aldeia de 45.000 almas, salpintada de mangues, invadida pelas marés, que lhe intumesciam as lagoas, e construída desajeitadamente, a esmo, pelo recosto das colinas, atulhando os vales apaulados, com as suas vielas em torcicolos, orladas de gelosias de urupema, pelas quais embitesgava o paupérrimo trem real de velhas seges de cortinas de couro, recordando os últimos frangalhos de uma opulência extinta.

Depois, um convencido e um sincero.

Se não traçou, pelo próprio punho, no manifesto de 1º de maio de 1808, o compromisso de “levantar a voz do novo seios do império que ia criar”, compreendeu-o, lucidamente.

Pelo menos deixou vacilante o juízo da História, inclinando-o de preferência ao parecer de um contemporâneo ilustre, Luccock, quando assentou que “ele possuía mais sentimento e energia de caráter do que ordinariamente lhe atribuíam amigos e inimigos”.

É o que, de fato, delatam todos os atos subsequentes que vamos apontar apenas, neste relancear o passado da nossa terra.

Foi a princípio uma reação contra o inimigo longínquo.

Uma expedição militar fulminante, ao mando do general Marques d’Elvas Portugal, dirigiu-se para a Guiana Francesa, chegando, a 15 de dezembro, às cercanias de Caiena. Assediou-a; e expugnou-a a 12 de janeiro do ano seguinte (1809), expulsando o governador Victor Hugues e toda a guarnição. Desta guisa a nossa primeira ação externa no século XIX tem muitos pontos de contato com a última: àquele choque armado da ditadura real contrapor-se-ia, em 1901, vitoriosa pela arbitragem, contra os mesmos adversários e no mesmo campo, a ação pacífica da República.

A segunda extremou-se no Sul, e prolongar-se-ia intermitentemente até aos nossos dias. Traía, ao parecer, mal encoberto anelo da esposa de D. João, D. Carlota Joaquina, que imaginara restaurar, no Vice-Reinado do Prata, o trono castelhano desabado na Europa com Fernando VII. Mas realizou-se ao reclamo do próprio governador espanhol, general Javier Elío, que, depois da revolução emancipadora de 25 de maio de 1810, de Buenos Aires, se viu assediado no ano seguinte na praça de Montevidéu pelas tropas argentinas e orientais do general Rondeau e José Artigas. Depois de alguns combates inúteis – em que o capitão-general do Rio Grande, D. Diogo de Souza, invadindo o Estado Oriental, desbaratou os guerrilheiros que se lhe antepuseram, – a luta terminou (1812), pelos bons ofícios do ministro Rademaker, dedicado fiscal da política britânica, e teve como efeito mais próximo ligar-nos à convivência perigosa dos caudilhos, de que José Artigas foi o primeiro molde.

Falecendo por este tempo o conde de Linhares, ministro que estimulara estas duas aventuras guerreiras, pôde D. João devotar-se à administração interna do país.

Começou a reagir, então, sobre os nossos destinos, por uma série de medidas que, refletidas mais tarde na ordem política, com a resolução de 16 de dezembro de 1815 elevando o Brasil à categoria de Reino, tiveram, segundo outra ordem de ideias, uma significação mais alta no propelirem o nosso desenvolvimento intelectual.

Foi a sua ação realmente útil.

Propiciara-o o meio.

O espírito nacional, apesar da situação inferior da massa da colônia, começara a despertar alguns anos antes.

Revelam-no alguns nomes expressivos.

Conceição Vellozo, o nosso primeiro botânico, fora na própria Metrópole um vulgarizador de trabalhos utilíssimos. Vicente Seabra, Nogueira da Gama e José Bonifácio de Andrada e Silva, incluíam-se entre os lentes da Universidade de Coimbra e Academia Real de Marinha de Lisboa, além de gozar o último de reputação quase europeia como cientista. José da Silva Lisboa era um digno discípulo de Adam Smith e criterioso comentador de Burke. Hippolito José da Costa, no Correio Braziliense, publicado em Londres, agitava com brilhantismo raro dois sérios problemas – a independência política e a emancipação dos escravos. Arruda Câmara, José de Sá Bettencourt e José Vieira Couto, nos sertões de Pernambuco, Bahia e Minas, abriram em nossa terra as primeiras veredas à ciência, fora das picadas tortuosas das bandeiras. Silva Alvarenga, Tenreiro Aranha, Villela Barboza e Souza Caldas, esboçavam a nossa vida literária. E sobre todos, representando notavelmente a cultura do tempo, o grande matemático e economista notável, aquela rara mentalidade do bispo Azeredo Coutinho, que de alguma sorte já prefigurava, no versar os mais díspares assuntos, o traço essencial do nosso espírito vezado às generalizações brilhantes em detrimento das especializações fecundas.

ora, o atributo preexcelente da ditadura real consistiu em favorecer esse germinar da expansão civilizadora.

Fundou a imprensa Régia, ab-rogando de golpe o deprimente alvará de 6 de
julho de 1747; e a Gazeta do Rio, órgão oficial, apareceu iniciando o jornalismo no Brasil.

Ali se imprimiram páginas que ainda hoje deletreamos com vantagem: o Diccionario da Lingua Portugueza, de A. de Moraes Silva, e a Corografia Brazilica, de Ayres de Cazal; livros que com a History of Brazil, de Southey (1822), os volumes descritivos do príncipe de Neuwied, os trabalhos de Arruda Câmara, as primeiras linhas da Flora de Martius, os escritos de Aug. Saint-Hilaire, Eschwege, Varnhagen, Feldner, e as Memórias Históricas, de Pizarro, os Annaes do Rio de Janeiro, de Balthazar Lisboa – delinearam o primeiro quadro da nossa cultura.

Concorrentemente, outros pioneiros substituíam o bandeirante e o missionário no desvendar a terra, prolongando os esforços, até então esparsos, de Gabriel Soares, Lacerda e Almeida, Silva Pontes e Alexandre Ferreira. Eram uns nomes estranhos – Mawe, Koster, Waterton… – batedores de outros mais ilustres, nacionalizados todos entre nós pelo carinho com que olharam para uma natureza portentosa.

O agasalho que encontravam denunciava novos estímulos no governo. Havia pouco ainda, no começo do século, um governador suspicaz lançara, zeloso, um decreto de expulsão “contra um tal barão de Humboldt”, indivíduo suspeito e vagabundo, que andava pelas extremas setentrionais do Amazonas…

Mudavam-se, evidentemente, os tempos. A corte atraía os abnegados naturalistas, alguns dos quais, sob o razoável pretexto de enriquecerem as coleções do Museu Nacional recém-instituído, se tornaram pensionistas do Estado.

Renovou-se do mesmo passo o movimento artístico que, apenas iniciado, ao Norte, durante o domínio holandês, por Eckhout e Franz Post, e escassamente definido por alguns talentos nacionais, sem cultura – teve, desde 1816, o amparo permanente da Academia de Belas-Artes, que a recente paz, com a França, aparelhara de todos os elementos de êxito com a vinda de Joachim Le Breton, membro do Instituto, que a dirigiu, assistido de um pintor notável, Debret; de um artista cujo nome se vincularia à nossa história em progênie ilustre, Nicolas Taunay; de um arquiteto de gênio, Grandjean de Montigny; e do escultor Zépheryn Ferrez.

Volvendo a outros ramos administrativos, fundou D. João as Academias de Marinha e Artilharia, o Arquivo Militar e a Escola Médico-Cirúrgica, e – frisemos esta circunstância digna de nota – desfazendo-se dos seus livros, a Biblioteca Nacional. Gizou depois o primeiro esboço de um Jardim Botânico, futuro índice da nossa flora.

Rematou tudo isto com a criação da primeira instituição de crédito do país, o Banco do Brasil. Um estudo pormenorizado revelaria excepcional descortino nessa administração onímoda. Nada lhe escapou ao influxo: as questões mais altas e os casos mais, ao parecer, despiciendos revezam-se aclarando todos os aspectos do existir da nacionalidade nascente, onde tudo estava por fazer-se. Os atos administrativos vão, de terra a terra, das medidas mais simples às resoluções mais complexas. Na capital: ordenando a destruição das tradicionais gelosias que davam às vivendas uma aparência desgraciosa e triste, ou mandando coutar as nascentes dos mananciais que abasteciam os reservatórios públicos, ou ensaiando a aclimação de exóticas especiarias na Real Quinta e Jardim da Lagoa de Freitas; no interior: favorecendo a abertura das estradas, aviventando a mineração geral e sistematizando a extração e o preparo do ferro em Minas, sob a direção do barão de Eschwege, e em S. Paulo (Ipanema) sob a de Friedrich Varnhagen – pelos mais diversos pontos do país irradiava a influência governamental com uma intensidade que nunca mais desenvolveu em toda a nossa existência político-administrativa. A ditadura real, no construir de fato o “novo império” anunciado em 1808 às nações amigas, patenteava, sobretudo, uma compreensão admirável do seu problema econômico, como no-lo mostra a referência de suas leis e decretos, atinentes aos prêmios, privilégios e isenções altamente protetores da cultura do algodão e da seda, à diminuição dos direitos de entradas, à isenção do serviço militar para  os “climatizadores” de plantas estrangeiras, e, ao cabo, à instituição liberalíssima de um verdadeiro homestead rodeando, pelo alvará de 21 de janeiro de 1809, de garantias excepcionais os agricultores cujos engenhos e terras em condição alguma poderiam ser executados. Neste rumo admirável incluiu o próprio problema, ainda hoje não resolvido, do povoamento do solo, já concedendo datas de sesmarias aos estrangeiros, em contraposição a todas as leis proibitórias do regime colonial, já atraindo e favorecendo as primeiras levas de imigrantes suíços, que se localizaram na província do Rio de Janeiro, fundando Nova Friburgo.

Analisando-se mais intimamente essa administração surpreendente, ver-se-ia que aquela figura histórica tão deselegante e vulgar, de D. João VI, lançou todos os fundamentos essenciais do nosso destino.

Mas esta imperfeita resenha diz tudo por si mesma. Traduz inestimável legado que outros fatos, sem a mesma altitude, não empanam.

Nestes incluem-se todos os renovamentos das supérfluas velharias de uma sociedade desfibrada, em que a burocracia se tornara o ideal da vadiagem paga: a Mesa de Consciência e as Ordens e outras, que nos forramos de citar, entre as quais uma Intendência-Geral da Polícia, centralizando-se na Corte, como se pela vastidão do Brasil um Pina Manique titânico pudesse alongar os seus braços de Briareu… E, mais nefasto ainda, despontando com a Ordem da Torre e Espada, um prodigalizar fabuloso de comendas em tal cópia que, segundo Armitage, ultrapassaram as doadas por toda a dinastia; iniciando-se nesta terra a mais achamboada das aristocracias e esse dissipar de “honras”, que tanto desaira a honra pura e simples.

Acrescente-se a anexação estéril da Banda Oriental do Uruguai (31 de julho de 1821), constituindo a Província Cisplatina, que devíamos perder mais tarde depois de longas fainas guerreiras, e teremos esfumado a única face obscura do quadro.

Releve, entretanto, considerar que neste lance a política exterior de D. João VI feriu, por acaso, a questão internacional mais séria deste continente. Aproveitando-se das discórdias entre os orientais daquele José Artigas, que é a figura mais representativa da caudilhagem sul-americana, e os argentinos, para firmar desde 1817, com a espada de Frederico Lecor, barão da Laguna, o seu domínio em Montevidéu, ela lançara as primeiras linhas de uma oposição até hoje vitoriosa contra o pensamento da reconstituição do Vice-Reinado platino, que se planeara desde 1811, na Junta Governativa de Buenos Aires, e erigiu-se pelos tempos adiante até aos nossos dias como ideal preeminente do patriotismo argentino.

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A ditadura real encerrara com esta ação externa a sua fase reconstrutora e útil.

Iam assaltá-la e abatê-la dois movimentos inopinados – a revolução de [18]17, em Pernambuco, e a de Portugal, em 1820.

A primeira, à parte as causas secundárias e imediatas da indisciplina militar, estampando o rótulo falso das agitações nacionais, tinha origens profundas. Domingos Theotonio Jorge e o impetuoso Barros Lima, o “Leão Coroado”, assassinando o comandante militar do Recife, e expulsando o capitão-general Caetano Pinto de Miranda Montenegro, agiam, herois autômatos, sob o impulso incoercível das tendências nativistas, sob o disfarce republicano, cujos chefes reais, o comerciante Domingos Martins, o padre Miguel Joaquim de Almeida e o malogrado padre Roma, secundados pelo seminarista Martiniano de Alencar, pertenciam a profissões pacíficas por excelência.

Depois de um triunfo efêmero, em que a Junta Revolucionária pernambucana, legando-nos exemplo que não foi esquecido, adotou como mais sérias e urgentes medidas o aumento do soldo às tropas, o acesso de três postos aos oficiais revoltosos, e o tratamento de vós, o revide legal vibrado pelo pulso rigoroso do conde dos Arcos, governador da Bahia, sopeou-a, maculando-se depois com levar ao patíbulo os rebeldes suplantados.

D. João VI vencera, porém, a tempo de atender a outros antagonistas, que lhe surgiam na própria pátria com a revolução liberal de 24 de agosto de 1820, no Porto.

Na revolta portuguesa o que aparece no primeiro plano é a corrente generalizada do constitucionalismo, que ia assoberbando a Europa depois da Restauração. Mas os seus reagentes mais enérgicos eram outros. Resumiam-se na circunstância de haver-se deslocado o trono para o Brasil, instituindo, aqui, a autonomia econômica, preliminar da autonomia política e colocando a antiga Metrópole em situação visivelmente inferior. Houvera, de fato, uma troca de papéis. Portugal, empobrecido desde a franquia dos portos, agravada com o escoar-se-lhe, de Lisboa para o Rio, as rendas da realeza e do seu séquito – era a colônia de fato. Ao mesmo tempo a abertura dos portos deslocara as transações, de Portugal para a Inglaterra; de sorte que ainda em 1817 o comércio direto do Brasil com a antiga Metrópole estava muito aquém dos valores atingidos em 1808. Os números secos das estatísticas comerciais valiam neste caso pelos mais apaixonados libelos patrióticos.

Assim, a revolução portuense era menos a luta por um princípio que a revolta de uma nacionalidade iludida e sacrificada.

A nova chegou ao Rio de Janeiro, trazendo, desde o Pará, a sobrecarga agravante da adesão das tropas lusitanas das províncias setentrionais. E reviveu na alma timorata do rei antigas e deslembradas comoções: a ressonância longínqua do tropear dos granadeiros de Junot…

D. João VI não balanceou a crise. Tergiversou, consoante o seu antigo hábito, irresoluto, entre os brasileiros, que o atraíam, e os portugueses, que o intimavam a aceitar a Constituição da Junta revolucionária de Lisboa e a voltar depois para o Reino. Jurada, finalmente, aquela, e marcadas, de acordo com o que ela estatuíra (7 de março de 1821), as eleições de deputados às Cortes de Lisboa, novas vacilações do tímido monarca no deixar a terra a que se afeiçoara, originaram sanguinolentos recontros nas ruas do Rio de Janeiro entre os nacionais e as tropas auxiliares portuguesas. Por fim, cerrando sua carreira política do mesmo modo porque a inaugurara, com uma fuga ou com uma hábil retirada, perpetuamente oscilante entre díspares desígnios, com as mesmas peripécias dolorosamente ridículas, que temos por escusado reviver, partiu, a 26 de abril, para Portugal, deixando ao seu filho mais velho, D. Pedro de Alcântara, então à volta dos 23 anos de idade, uma coroa que julgava passível de ser preada por um aventureiro qualquer.

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Houve, então, na nossa história uma antinomia notável.

O nativismo nacional que, à parte a breve irritação pernambucana, de 1817, tolerara o absolutismo da realeza, começou de ser rudemente aferroado pelo liberalismo português.

Contravindo ao espírito superior do pensamento político que as inspirara, as Cortes de Lisboa planearam revogar as reformas feitas anteriormente e adotaram, quanto ao Brasil, o programa extravagante de recolonização: votaram a supressão das escolas e tribunais superiores; a revogatória do Governo-Geral do Rio, completada com a tentativa de fazer regressar à Europa o príncipe D. Pedro; e fracionando a administração inteira, com o impor a cada província a sujeição aos tribunais da Metrópole rediviva, fantasiaram um Brasil anterior a Thomé de Souza.

Não trancaram outra vez os portos porque o comércio geral era, em última análise, o comércio inglês.

A minoria de cinquenta representantes brasileiros em Lisboa – em que se destacavam um orador impetuoso e vibrante, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, um pensador por igual poeta e matemático, Francisco Villela Barboza, um argumentador tenaz, Lino Coutinho, e aquele perfil escultural de Diogo Feijó, e o lúcido Pedro de Araujo Lima, Vergueiro e outros – tentou debalde opor-se àquele recuo.

Protestando, pela voz enérgica de Antonio Carlos, e abandonando um posto inútil, emigraram os deputados para a Inglaterra, ou demandaram a pátria.

Aqui, a discordância dos partidos, espelhando todos os cambiantes, do nativista exaltado ao reacionário ferrenho, engravescia-se com o antagonismo crescente dos dois elementos, nacional e português, crescentemente mal-avindos. E no baralhamento das paixões vivamente acirradas pelas sucessivas notícias gravíssimas de ultramar, o primeiro, cindido de facções, sem comando porque havia chefes demais, certo não pulsearia o último, mais unido e centralizado pela Divisão Auxiliadora do general Jorge de Avilez, onde se esteava a resistência da Metrópole.

Dado o divórcio, que até aquele tempo isolara uns de outros os vários agrupamentos em que se subdividia o país, punha-se de manifesto o seu desmembramento. As revoltas parciais, que iriam irromper repelindo a ameaça recolonizadora, sujeitar-se-iam a destinos vários nas diversas zonas do território, e na melhor hipótese pressagiavam, a exemplo do que sucedera recentemente no Vice-Reinado do Prata, a formação de minúsculas repúblicas, entregues às intrigas impunes do estrangeiro, ou à fantasmagoria de uma liberdade sangrando sob a espora dos caudilhos.

Impediu-o o Príncipe Regente.

Menos pelo valor individual que pelo prestígio da posição, fez-se árbitro entre os partidos, e o inclinar-se para os naturais do país propiciou-lhes em grande parte o triunfo, criando à Monarquia o seu mais elevado destino na nossa terra.

D. Pedro de Bragança talhara-se, realmente, para aquela crise.

Mediano em tudo – parte soldado, rei em parte, em parte condottiere – essa ausência de uma linha firme e estável, no caráter, dava-lhe plasticidade para se amoldar ao incoerente da sociedade proteiforme em que surgira. A situação histórica só lhe exigia a índole cavalheiresca, brilhante e arrebatada, a bravura impetuosa e, por fim, a própria inconstância que o levaria, tempos depois, após representar o seu papel revolucionário, a abandonar o país, quando despontou a fase reconstrutora de 1831.

A exemplo do pai, ia agir sob a influência dos homens de valor que o assistiam. Tínhamo-los, felizmente.

José Bonifácio de Andrada e Silva chegara da Europa com renome feito de proeminente cultor da filosofia natural, e tornara-se a figura dominante de um grupo de patriotas apercebidos para as exigências complexas do momento.

Não há abranger-se na concisão destas linhas a figura anormal desse homem que sobranceou o seu tempo, mercê de uma cultura integral dilatando-lhe o espírito por todas as ordens de conhecimentos, da mineralogia transfigurada por Werner à química recém-instituída por Lavoisier, até às mais transcendentes cogitações de Kant ou de Fichte. Na sua mocidade deslumbrante ele fora uma espécie de ministro plenipotenciário do espírito e do sentimento de nossa nacionalidade nascente, acreditado em todas as capitais do velho mundo. Naturalista viajante, a perlustrar durante dez anos as terras civilizadas do extremo sul da Itália até à Noruega, fora carinhosamente acolhido em todas as academias, nobilitando-se com a estima dos maiores pensadores. Exercitara-se por vezes nas mais díspares funções: – deixando o posto de diretor das minas da Noruega, para criar a cadeira de Mineralogia na Universidade de Coimbra, acumulando depois os cargos de intendente-geral das minas de Portugal e desembargador da Relação do Porto, ou abandonando-os para dedicar-se à mais rude prática profissional da engenharia nos trabalhos de canalização do Rio Mondego. Em todos esses misteres diversíssimos rebrilhara-lhe o espírito e deixara o traço de uma vontade inabalável; até que a invasão francesa, arrancando-o de chofre às suas preocupações científicas, obrigara-o a transmudar-se em militar, levando-o às linhas mais arriscadas dos combates onde conquistou o posto de tenente-coronel, senhoreando em tanta maneira a confiança geral que, depois de repelido o invasor, fora nomeado Intendente da Polícia do Porto, cidade que sobre todas sofrera as consequências pesadíssimas da guerra.

Cerrara por fim esta primeira fase da vida que bastaria a dar-lhe o mais invejável destaque, recolhendo-se à pátria, na cidade nativa de Santos, de onde se afastou quando compreendeu que todos os lance, anteriormente sumariados, de uma carreira brilhante, eram apenas os preparatórios de uma empresa mais alta.

*

Mas como entrávamos em período forçadamente demolidor e crítico, coube ao jornalismo os primeiros passos na empresa.

Joaquim Gonçalves Ledo e Januario da Cunha Barboza, no Reverbero Constitucional; fr. Francisco de Santa Thereza Sampaio e João Soares Lisboa, no Correio do Rio, esboçaram a reação nativista, e deslocaram para o âmago das agitações nacionais o que elas ainda não haviam tido, o vigor moral da opinião pública. E como nas províncias, desde Maranhão até S. Paulo, outros jornais se fundaram, reforçando-lhes os esforços, a imprensa fez-se instrumento preexcelente da luta iniciada, generalizando-a a todos os ângulos do país e favorecendo um movimento de conjunto que ainda não existira. A agitação doutrinária, que até então se amortecera nos prelos londrinos do Correio Braziliense, de Hippolito da Costa, com todos os inconvenientes da distância e do isolamento, deslocava-se de súbito para o âmago do espírito nacional.

E bem que a inquinasse uma metafísica dissolvente, e esse lirismo político, que tanto comprometera a elaboração recente do século XVIII, o seu papel, embora exclusivamente crítico, traduziu-se como uma redistribuição de alentos e não conseguiu dilatar a energia centrífuga  além dessa propaganda tenaz.

Porque se lhe contrapusera, no Rio, a força central, oportuna e necessária, da realeza.

Não vacilemos em reconhecê-lo.

Somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política. Vimos, de um salto, da homogeneidade da colônia para o regime constitucional: dos alvarás para as leis. E ao entrarmos de improviso na órbita dos nossos destinos, fizemo-lo com um único equilíbrio possível naquela quadra: o equilíbrio dinâmico entre as aspirações populares e as tradições dinásticas. Somente estas, mais tarde, permitiriam que entre os exaltados, utopistas avantajando-se demasiado para o futuro até entestarem com a República prematura, e os “Reacionários”, absolutistas em recuos excessivos para o passado, repontasse o influxo conservador dos moderados, ou liberais-monarquistas da Regência, o que equivalia à conciliação entre o Progresso e a Ordem, ainda não formulada em axioma pelo mais robusto pensador do século.

Destarte, a luta da Independência teve, no englobar elementos destruidores e reconstrutores, o caráter positivo de uma revolução.

E desenrolou-se com uma finalidade irresistível.

Mas o princípio foi esparso, dispartindo nos mesmos atos sem solidariedade, tão característicos da nossa história.

As Juntas Governativas, que para logo se fundaram, constituíram-se em pequenos estados, e volviam ao aspecto exato dos tempos coloniais, numa espécie de decomposição espontânea. Algumas, como a de Pernambuco, ainda reassumindo a atitude batalhadora, tendo suplantado o elemento português na Capitulação do Beberibe (outubro de 1821), subtraíram-se do mesmo passo ao influxo dos governos do Rio e do Reino, revivendo o antigo sonho da existência autônoma. Outras, as demais do Norte, volvendo a obedecer aos antigos dominadores, facilitavam o programa da recolonização.

Apenas quatro – Minas, S. Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul – aceitaram desde logo o governo do Príncipe, forrando-se igualmente à autonomia completa e à dependência colonial.

Nessa instabilidade de três situações contrapostas, é claro que o pensamento libertador, adstrito à contingência de captar o beneplácito preliminar dos agrupamentos de novo dissociados, tinha um destino duplo: confundiam-se, penetrando-se entrelaçados, o ideal da Independência e o da unidade nacional. Assim se traçou limpidamente, em que pese ao caráter de indeterminação que lhe davam três incógnitas envolvendo três soluções distintas, a equação fundamental de nossos destinos.

E coube ao Sul resolvê-la, a começar pelo Rio de Janeiro, onde chegavam diretamente os decretos retrógrados da Metrópole.

Ocorrera ademais, ali, uma transigência forçada, contraproducente no irritar os ânimos: as tropas do general lusitano Jorge de Avilez haviam, desde junho, imposto o juramento da Constituição das Cortes portuguesas, vivamente combatida pelos deputados brasileiros, e a formação de uma Junta governativa destinada a agir em correspondência direta com o governo de Lisboa, a que devera submeter-se.

Foi no regímen transitório desta vitória efêmera, que entraram os decretos recolonizadores. Declaravam-se independentes do Rio de Janeiro os governos das províncias, e suprimidos todos os tribunais superiores. Impunha-se, por fim, a partida improrrogável de D. Pedro para a Europa.

Esta última cláusula rompeu as represas da revolta.

Amotinou-se a multidão no Rio (9 de janeiro de 1822), estimulada pela propaganda anterior de Joaquim Gonçalves Ledo e Januario da Cunha Barboza, chefiada pelo presidente do Senado da Câmara, José Clemente Pereira, português ádito aos mais ferventes nativistas, impondo ao Príncipe, talvez vacilante, a permanência no Brasil.

impondo, é o termo. A representação de oito mil assinaturas, que lhe foi lida, não era um pedido; era uma intimativa.

Redigira-a um lutador, que ainda não tem o renome merecido, fr. Francisco de Sampaio; e o sacerdote rebelde fora singularmente franco na primeira frase que traçara:  “a partida de S. A. Real seria o decreto que teria de sancionar a independência do Brasil”.

O Príncipe cedeu, substantivando-se num verbo único – fico – o primeiro capítulo da história da Independência; e este rompimento, não já da solidariedade política, senão da do sangue, completado, três dias depois, pela capitulação da Divisão Auxiliadora do general Avilez, apoio material e último resquício da ação longínqua do ultramar, foi o traço mais intenso, naquela quadra, da reação nativista.

Ao mesmo tempo definiam-se as províncias. A Junta de São Paulo, cujo presidente, João Carlos Augusto Oyenhausen, se norteava pela vontade firme de José Bonifácio, ligara-se em manifesto enérgico aos sucessos anteriores – e no Norte, a antiga fidelidade à Metrópole partia-se (19 de fevereiro) precisamente na terra onde era clássica, a Bahia, levantada em massa contra o general Madeira de Mello.

Estava declarada a campanha libertadora.

Dado o primeiro choque vitorioso contra o exército estrangeiro, antes mesmo que a sua repercussão nas províncias se coroasse de idêntico sucesso, o governo recém-organizado, dirigido por José Bonifácio, a quem se confiara o cargo de Ministro do Reino e Estrangeiros, começou a deliberar, sobranceando os tumultos, como se o não rodeassem as maiores dificuldades.

Caracterizaram-no para logo três medidas radicais, de pronto decretadas: a chamada dos representantes das províncias para concertarem nas reformas urgentes; a preliminar do “cumpra-se” do príncipe D. Pedro imposta à efetividade das leis portuguesas; e por fim, medida mais séria porque valia por um ato de independência, a convocação de uma Assembleia Constituinte Legislativa (decreto de 3 de junho de 1822).

Enquanto isto sucedia, o Príncipe, numa viagem triunfal a Minas Gerais, em março, onde à sua chegada se deliram nocivas discórdias emergentes, representava o seu papel real e único – o da ação de presença – como se nas transformações sociais se torne também preciso, às vezes, essa misteriosa força catalítica que desencadeia as afinidades da matéria.

O título que anteriormente lhe fora oferecido, pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, numa data que se tornaria ainda mais célebre (13 de maio), de “Defensor Perpétuo do Brasil”, já valia por um pálido eufemismo, escondendo o de imperador, em que desfechariam todos os acontecimentos.

Ampliou-o a proclamação de 1º de agosto. Aí ele se intitula defensor da independência das províncias, e peque que o “grito de união dos brasileiros ecoe do Amazonas ao Prata”.

Redigida por Gonçalves Ledo, agitador que recorda um girondino desgarrado em nossa terra, ela foi por isto mesmo altamente expressiva. Expunha o único destino da monarquia entre nós, o de transitório agente unificador; e como este seria nulo sem o alento das expansões populares, o pensamento do futuro imperante devia realmente vibrar na pena de um nervoso chefe liberal.

É inexplicável, por isto, que aquela data tenha escapado à consagração do futuro. Falta-lhe, talvez, como já se observou, a exterioridade de outras, menos eloquentes e mais ruidosas: a de 7 de Setembro, por exemplo.

Com efeito, o interessante episódio da viagem que levara o Príncipe a S. Paulo, com o seu efeito – em nada modificou o curso natural dos fatos. Apenas teve, diante da compreensão tarda e rudimentar do povo, a clareza sugestiva das imagens, e deu-lhe a minúcia singularmente valiosa de um símbolo, o tope nacional, auriverde, substituindo a tradicional divisa portuguesa quando esta foi violentamente despedaçada pelo régio itinerante ao receber, sobre a Colina do Ipiranga, a notícia das decisões arbitrárias das Cortes de Lisboa, que lhe anulavam todas as reformas praticadas…

“Independência ou morte!”, bradou varonilmente, no meio da comitiva eletrizada. E a revolução teve afinal uma fórmula sintética, armada ao apercebimento imediato do povo, encantando-o pela nota romântica e teatral, e, como tantas outras por igual destonantes, desferindo o repentino surto da energia potencial das ideias.

Prosseguiu dali por diante vertiginosamente.

Aclamado e coroado (12 de outubro e 1º de dezembro de 1822), imperador constitucional, D. Pedro I não lhe cerrara o ciclo inflexível. Dilatara-lho.

O movimento libertador teve, então, o inconveniente da própria força adquirida; e agindo numa sociedade inconsistente conduziria a resultados desastrosos ou imprevistos.

Era forçoso regulá-lo, contendo-o e retificando-o.

Foi a notável tarefa de José Bonifácio, cujo ministério salvou a revolução, com uma política terrível, de Saturno: esmagando os revolucionários.

Sombreiam-no, com efeito, à luz de um critério superficial, medidas odiosas: destruiu a liberdade de imprensa, suprimindo os próprios jornais que o aplaudiam na véspera; e, com rigor excessivo, arredou da cena ruidosa, em que eram protagonistas, Clemente Pereira, Gonçalves Ledo e Januario da Cunha Barboza, desterrando-os para o Rio da Prata e para a França. Esta reação contra os três maiores agitadores da Independência é expressiva.

Vê-se que o grande homem vingara, num lance genial, o fastígio de uma crise. Iniciava a função reconstrutora urgente, sobre o terreno móvel das paixões.

Mostra-o acontecimento capital, subsequente: a Assembleia Nacional Constituinte, reunida a 3 de maio de 1823.

À parte as desordens que a perturbaram num curta existência setemesinha, até 12 de novembro, quando foi dissolvida por “haver perjurado na defesa da pátria e da dinastia”, previa-se que, ainda quando transcorressem calmos, os seus trabalhos provocariam agitações profundas.

Uma constituição, sendo uma resultante histórica de componentes seculares, acumuladas no evolver das ideias e dos costumes, é sempre um passo para o futuro garantido pela energia conservadora do passado. Tradicional e relativa, despontando de leis que se não fazem, senão que se descobrem no conciliar novas aspirações e necessidades com os esforços das gerações anteriores, é um traço de aliança na solidariedade dos povos. E nós íamos parti-lo.

Com efeito, legislar para o Brasil gregário de 1823 – agrupamentos étnica e historicamente distintos – seria tudo, menos obedecer à consulta lúcida do meio. Era trabalho todo subjetivo, ou capricho de minoria erudita discorrendo dedutivamente sobre alguns preceitos abstratos, alheia ao modo de ser da maioria. A nossa única tradição generalizada era a do ódio ao dominador recente ainda em armas, e esta, servindo como recurso de momento no propagar a rebeldia, extinguir-se-ia com a vitória, deixando aos formadores da nova pátria um problema ainda mais formidável: erguer, unido, ao regime constitucional, novo na própria Europa, um povo disperso, que não atravessara uma só das frases sociais preparatórias. Um salto desmesurado e perigoso. Incidia-se na tentativa temerária da mais grave das revoluções, a exemplo daquela paradoxal revolução “pelo alto”, que o gênio de Turgot, poucos anos antes, concebera como recurso extremo para salvar Louis XVI aos rumores profundos de 89.

Invertidas as suas fontes naturais, as reformas liberalíssimas, ampliando todas as franquias do pensamento e da atividade, iriam descer a golpes de decretos, à maneira de decisões tirânicas. Impô-las um grupo de homens que, mais do que representantes deste país, eram representantes do seu tempo. Despeados das tradições nacionais, que a bem dizer não existiam, arrebatava-os, exclusiva, a miragem do futuro.

Mas esta deu-lhes intuição genial, esclarecendo-os na tarefa estranha de formar uma nacionalidade sem a própria base orgânica da unidade de raça.

Porque estávamos destinados a formar uma raça histórica, segundo o conceito de Littré, através de um longo curso de existência política autônoma. Violada a ordem natural dos fatos, a nossa integridade étnica teria de constituir-se e manter-se garantida pela evolução social. Condenávamo-nos à civilização. Ou progredir, ou desaparecer.

E nas aperturas desta alternativa a intervenção monárquica foi decisiva, oportuna e benéfica.

*

Os debates da Constituinte principiaram malignados, desde os primeiros dias, pelo lirismo revolucionário dos que a compunham.

Insurgindo-se contra o ministério Andrada, no impugnar as medidas repressivas que este resolvera, a oposição parlamentar acarretou-lhe a queda, após sucessivos reveses: já retirando-lhe a confiança, ao eleger-se a Mesa, toda com adversários; já favorecendo a absolvição dos desterrados políticos; já repelindo um imponderado projeto de suspeição contra os portugueses domiciliados, que tivera, lastimavelmente, o apoio da palavra inflamada de Antonio Carlos.

Apeando-se do poder, a trindade ilustre dos Andradas apelou para os recursos que condenara na véspera. Aproveitando-se da liberdade de imprensa, que ela própria destruíra, restaurada pelo novo governo, de José Joaquim Carneiro de Campos (marquês de Caravellas), fez de seu jornal, O Tamoyo, o órgão de um radicalismo infrene; e, emparceirando-se numa aliança extravagante com os exaltados da Constituinte, rodeou a nova situação de toda a espécie de empeços – erigindo-se, por fim, inspiradora da lei que incompatibilizaria de todo aquela Assembleia com o imperante: a que tornava independente do veto imperial o código orgânico que se elaborava.

Era colocá-lo sob o golpe de Estado.

De fato, ao aparecer, em 30 de agosto, o projeto constitucional, quase abortício ou temporão, precipitado nas votações atropeladas, ou tangidas pelos ultrarradicais, estava pronto o ambiente que o afogaria.

O antagonismo pessoal de D. Pedro I ostentara-se já na proteção desafiadora que ele dera aos oficiais e soldados portugueses da Bahia, onde, entretanto, se traçara a legenda patriótica do 2 de Julho; e, se não ocorressem as dificuldades de comunicações, Lord Cochrane e Grenfell não completariam a rota pacificadora do Norte, do Maranhão ao Pará (junho a agosto de [18]23), nem Frederico Lecor (barão da Laguna) debelaria em Montevidéu (18 de novembro) a última resistência das forças aditas à Metrópole.

Porque o divórcio do Imperador e da Assembleia atingira o desenlace tempestuoso da dissolução desta, logo após a formação do ministério contrarrevolucionário de Villela Barboza (12 de novembro de 1823).

Ao mesmo tempo fez-se o avesso da situação anterior: os cascos dos batalhões portugueses, do Rio, agremiados em S. Cristóvão, tornaram-se a última garantia do trono, tendo sido um dos seus comandantes o portador do decreto-ditatorial. Cominou-se o desterro aos Andradas, Montezuma, Vergueiro e outros patriotas ferventes. E, como supletivo do rompimento, a multidão, no Rio, entre alegrias inexplicáveis, realizou, pela primeira vez, a sua simbiose moral com um triunfador do dia, aplaudindo-o. Como pormenor deploravelmente pinturesco cita-se a circunstância de haver o próprio D. Pedro dirigido as manobras da tropa assaltante contra a Assembleia.

Felizmente nos livraram de todos os efeitos da contrarrevolução, de um lado, o temor de um levante nas províncias, e de outro, a própria índole sonhadora e cavalheiresca do monarca, que não abdicara o seu papel de cortesão pertinaz da Liberdade.

Assim, ele congregou os melhores espíritos que o rodeavam – Carneiro de Campos, Villela Barboza, Carvalho e Mello, Nogueira da Gama, Pereira da Fonseca (marquês de Maricá) e outros, cometendo-lhes a tarefa de escreverem um código orgânico.

Aqueles eruditos, olhos fixos na Europa e no constitucionalismo nascente, não o elaboraram. Qual a qual mais teórico, reuniram as melhores conquistas liberais, joeirando-as dos exageros democráticos, e ressaíram, por fim, inatingíveis, sobre a cultura do país, na Constituição jurada a 25 de março de 1824.

Tinham cravado um marco, ao longe, no futuro.

A nossa história daí por diante recorda um fatigante esforço para o alcançar.

Apesar disto esta Carta outorgada, que ainda hoje seria um código liberal, despertou, incompreendida, revolta. Mas, nestas, quem lhes destrama a meada dos fatos secundários, verifica apenas a incompatibilidade dos vários grupos brasileiros para a existência autônoma e unida. A de 1824, em Pernambuco teve o lastro exclusivo das tendências separatistas. À primeira vista, surge daquela anomalia de um regímen constitucional imposto sobre as ruínas de uma constituinte – aquele bizarro contrassenso da liberdade doada, arrogantemente, por um decreto; mas o que vislumbram as linhas do Desengano Brasileiro, de Soares Lisboa, ou os períodos explosivos de frei Joaquim do Amor Divino Caneca, o terrível panfletário d’O Typhis Pernambucano, jornalistas e representantes naturais de Pernambuco, é o eterno perigo da unidade política contrastando com a heterogeneidade da raça.

De sorte que a efêmera Confederação do Equador, ligando as províncias que vão de Alagoas ao Ceará, precisamente no trato de terras onde as vicissitudes da História mais se uniformizaram nas lutas contra os holandeses, destacando-as das gentes meridionais, é um caso franco de diferenciação étnica.

Dirigida por um dos patriotas da revolução de 1817, Manoel de Carvalho Paes de Andrade, reflete-lhes os mesmos estímulos; e ao ser esmagada pelas forças combinadas de mar e terra de F. Lima e Silva e Lord Cochrane, deixou, a exemplo de todas as revoltas infelizes, na memória de seus 14 enforcados, os germes de outros elementos revolucionários.

Estes reuniram-se  com um traço legal na primeira Assembleia Legislativa do Brasil, de 1826, que a Constituição instituíra, e onde se agruparam, sob todos os matizes, federalistas e republicanos.

A maioria, de liberais monarquistas, adeptos do regime parlamentar inglês, deliberava no tumulto.

Dois assuntos predominantes denunciaram para logo o divórcio entre o Imperador e a Câmara dos Deputados: a revivescência do partido absolutista, abertamente favorecido pelo primeiro, e o antagonismo crescente da segunda contra as “comissões militares” que se alastravam pelo país instituindo um regime de terror generalizado. Destacaram-se então em pleno contraste com a subserviência do Senado, que na mesma ocasião se congregara, alguns nomes novos predestinados a grafarem-se para sempre em nossos fastos: Odorico Mendes, o genial helenista, para logo se salientara objurgando veementemente as atrocidades perpetradas no Pará por um almirante mercenário, o repugnante Grenfell, que no último lance de sua estranha missão pacificadora trucidara 249 brasileiros em massa, dentro dos porões irrespiráveis do navio que comandava; José Custodio Dias, tão injustamente esquecido hoje, arremetia diuturnamente, na tribuna, com a facção áulica dos “absolutistas infernais”; Lino Coutinho, incorruptível e impávido, persistia na agitação ruidosa a que se afeiçoara nos grandes dias das lutas da liberdade; Bernardo Pereira de Vasconcellos, vindo de Minas — uma alma titânica dentro de um arcabouço abatido e afistulado de moléstias — aparecia, surpreendedoramente, cedendo aos máximos arrancos de seu temperamento impetuoso ao ponto de ferir de frente a própria integridade do regime; e predestinado a tornar-se maior do que todos, um padre jansenista da vila de Itu, Diogo Antonio Feijó, estremava-se num radicalismo alarmante, com os seus projetos relativos à eleição por círculos, à abolição das condecorações e do celibato clerical, imprimindo tonalidade excepcionalmente revolucionária em todos os debates.

O Imperador parecia não os escutar. Trancara-se no círculo isolante de um gabinete secreto, onde pontificavam singularíssimos personagens, que mal se distinguem hoje e se apagam na História, entre as graçolas rasteiras e as picuinhas do funambulesco Francisco Gomes da Silva (o Chalaça), guindado às graves funções de secretário particular, e o maravilhosamente ridículo Gordilho de Barbuda, ofembaquiano marquês de Jacarepaguá e senador do Império, por decreto… Superponha-se a tudo isto o ruge-ruge das saias da marquesa de Santos, e avaliar-se-á o declive por onde ia em despenhos o prestígio imperial.

Por fim só o sustinham os braços vendidos de 3.000 mercenários, irlandeses e alemães. Mas eram contraproducentes: em 1828 desmandaram-se em motins a muito custar reprimidos pelo povo do Rio, e acirraram todos os agentes de cizânia entre o Imperador e o país. Comentando estes acontecimentos na Aurora Fluminense, um jornalista incorruptível e viril, Evaristo Ferreira da Veiga, traçara períodos amaríssimos destinados a reviverem todos os alentos e exageros nativistas:

“Desgraçado o Povo que sofre o jugo do estrangeiro!” e nesta apóstrofe percebia-se o nome do monarca de envolta com os dos chefes daquele rebotalho dos exércitos europeus sovados pelos sabres napoleônicos…

Destarte, o antagonismo entre a opinião nacional e o governo era irremediável; e na legislatura de 1829 atingiu ao ponto crítico. Bernardo de Vasconcellos, O. Mendes e Limpo de Abreu denunciaram os ministros da Guerra e da Justiça, como réus da criação inconstitucional das “comissões militares”. Atacava-se de frente a ortodoxia governamental. As sessões transcorreram tumultuárias, ruidosas. E quando chegou o dia da votação no meio de vozeria insultante das galerias atestadas de patriotas pagos e a soldo dos absolutistas, ouviu-se dominadoramente, impressionadoramente, a palavra severa de Diogo Antonio Feijó:

“A Constituição não pode marchar sem a responsabilidade do governo; voto, portanto, pela acusação dos ministros!”

Estávamos como nos grandes dias da Convenção…

*

As crises ministeriais refletiam, por sua vez, a desordem geral. Caindo o ministério de Villela Barboza (marquês de Paranaguá), o que lhe sucedeu (16 de janeiro de 1827), de J. F. Fernandes Pinheiro, visconde de S. Leopoldo, teve a existência inútil de alguns meses até ao primeiro ministério parlamentar, do deputado Pedro de Araujo Lima (20 de novembro de 1827).

Daí por diante o desequilíbrio governamental vai acentuando-se num crescendo, até ao desabamento de 1831.

O Imperador vacila, sondando a opinião, procurando-a mesmo entre os liberais extremados que o repelem, mal permitindo-lhe constituir o ministério de um trânsfuga, José Clemente Pereira (15 de junho de 1828); e volta-se, intermitentemente, para o homem que lhe monopolizara a confiança, Villela Barboza.

Intervêm fatos externos acirrando a crise.

A Banda Oriental levantara-se em 1825, à voz de Lavalleja, protegido pelo governo de Buenos Aires, e travara-se a mais inglória das nossas guerras numa sucessão de combates inúteis, onde apenas sobressaem as vitórias de Rodrigo Lobo contra o almirante Brown. Os exaltados, no Rio, tornam-se quase sócios dos orientais rebeldes. O fracasso do marquês de Barbacena, em Ituzaingó (20 de fevereiro de 1827), no recontro desigual com o exército de Alvear, provoca-lhes singulares júbilos, como se por uma intuição profunda prefigurassem os perigos da volta triunfante de um general vitorioso para a pátria anarquizada, depois de cursar, nos pampas, a escola tradicional da caudilhagem. E quando, depois da guerra, rematada com o Tratado de 27 de agosto de 1828, sancionando a independência da Cisplatina, a esquadra do barão de Roussin exigiu imperativamente a entrega de alguns navios franceses preados no bloqueio do Prata, a conjuntura em que se encontrou o governo, dobrando-se à intimativa contra a vontade das duas Câmara, feriu fundo as suscetibilidades patrióticas e arrancou da fronte do Imperador a sua auréola de valente.

Ele estava, além disto, em situação que o impropriava afoitar-se com a adversidade crescente. De posse da coroa portuguesa por morte de D. João VI (1826), repartia-se em preocupações opostas, das quais somente em parte o libertara a abdicação em favor de sua filha Maria II. Mas embora o animasse o desejo de transpor o mar para fazer-se paladino do constitucionalismo em Portugal, tentou ainda em 1831 (19 de março) um último esforço de reconciliação, abraçando-se ao partido liberal, com o ministério de Carneiro de Campos.

Era tarde. Nas eleições de 1830 haviam triunfado, em maior número ainda, radicais e federalistas; e a imprensa, com um vigor que nunca mais teria no Brasil, dirigida pela Aurora Fluminense, de Evaristo da Veiga, tomara a direção do movimento, tornando-o irreprimível, generalizando-o nas províncias com O Observador Constitucional de Libero Badaró, em S. Paulo, com O Universal, de Bernardo Pereira de Vasconcellos, em Minas, e no Norte com O Bahiano, de Rebouças. Neste recrudescer de antagonismos, exercia-se também o influxo moral de um acontecimento externo: a revolução de 1830, da França, delirantemente saudada pelos liberais do Brasil. Na Aurora de 27 de setembro daquele ano, Veiga sintetizara o sentimento geral: “Carlos X deixou de reinar; o mesmo aconteça a todo aquele Monarca que, traindo os seus juramentos, tentar destruir as instituições livres de seu país!”. A situação, como se vê, precipitava-se para um desfecho vertiginoso.

O ministério liberal de Carneiro de Campos durou um mês.

O país era ingovernável. O baralhamento das ideias principiava a alastrar-se nas ruas em desordens sanguinolentas entre nacionais e portugueses, de que foi modelo a tormentosa “noite das garrafadas” (13 e 14 de março de 1831).

Dominante sobre tudo isto avultava a crise econômica e financeira, que se esboçara desde o governo de D. João VI, e viera, gravada de sucessivos empréstimos, até à desastrosa liquidação forçada do Banco do Brasil em 1829. O câmbio caíra, ficando abaixo do par. A dívida passiva herdada da Metrópole quintuplicara, ao mesmo passo que as emissões de títulos inconversíveis varriam as últimas moedas de ouro e prata da terra prodigiosa das minas. “Claro é a todas as luzes o estado miserável a que se acha reduzido o Tesouro Público… desastroso deve ser o futuro que nos aguarda”, dissera o próprio Imperador na Fala do Trono de abril de 1829. E comentando logo depois a situação irremediável, Evaristo da Veiga atribuíra-a em grande parte a “uma Corte que com o seu esplendor insulta a miséria pública…”

Nesta emergência, o Imperador apelou mais uma vez para Villela Barboza, constituindo um ministério de senadores, velhos serventuários, leais, mas fragílimos.

Foi o pretexto de maiores tumultos.

O povo do Rio enviou uma deputação a S. Cristóvão exigindo a reposição do ministério liberal, anterior. Repelindo-a nobremente D. Pedro, a multidão alvorotou-se e, captado o apoio da tropa (7 de abril), confiou a um dos chefes militares, o major Miguel de Frias, nova intimativa imperiosa.

Era o desfecho. D. pedro I abdicou no imperador infante, confiado à tutela de José Bonifácio, repatriado em 1830, e, embarcando na nau inglesa Warspite, cerrou a primeira fase da sua carreira aventurosa.

*

O 7 de Abril era inevitável.

Tinha dez anos o embate entre as correntes monárquica e democrática e como a divergência das ideias atingisse a um maximum gravíssimo, impunha-se o domínio de uma delas.

Mas – embora o favorecessem todos os resultados de uma ação que abatera não só o princípio monárquico, como também, pelo caráter militar que assumira, o prestígio da autoridade civil – o liberalismo triunfante não foi levado às suas últimas consequências. Porque entre as forças adversas dos federalistas extremados e triunfantes (Partido Liberal Exaltado) e reacionários absolutistas (Partido Restaurador ou Caramuru), surgira, tertius gaudet, na luta que não compartira, fortalecido pela situação neutral entre aqueles rivais que se maniatavam, um outro, o Liberal Monarquista (Partido Moderado), que, conciliando as conquistas dos combatentes da véspera com as reservas da sociedade conservadora retraída, lhes repelira por igual as tendências exclusivas, evitando dois perigos extremos que se fronteavam: a república prematura e o absolutismo revivente.

O papel da Regência, ponto culminante da nossa História Política, instituiu-se, assim, como um ponderador das agitações nacionais: um volante regulando a potência revolta de tantas forças disparatadas. Compreenderam-no os homens extraordinários que ao assumirem naquele momento o governo “se temiam de si mesmos, no entusiasmo sagrado do patriotismo e do próprio amor da liberdade”, que os armara.

Nem careciam para isto de aquilinos lances de vistas.

Os perigos da situação não lhes demandavam a cogitação mais breve. Eram intuitivos. Assoberbavam-nos. Estadeavam-se, francos, impressionadoramente. E entre eles, pior do que uma ditadura real, surgia a aspiração federalista, colimando o rompimento definitivo dos frágeis elos entre as províncias. Um estrangeiro ilustre, Auguste de Saint-Hilaire, depois de caracterizar o estado revolto das repúblicas platinas, volvia naquela época o olhar para o Brasil, e apontava-lhe idêntico destino, se acaso fossem satisfeitos, pelo regime federal, os desejos de mando das patriarquias aristocráticas, que o retalhavam: “… que os brasileiros se acautelem contra a anarquia de uma multidão de tiranetes mais insuportáveis do que um déspota único”. [ 1 ]

Ora, a missão da Regência consistiu em afastá-los.

Contrasta em tanta maneira com as revoltas anteriores, que o 7 de abril passou em julgado, consoante a expressão de Theophilo Ottoni, com une journée des dupes: iludidos os exaltados que o precipitaram, o exército que os amparou e a própria nação para quem a abdicação fora uma surpresa. [ 2 ]

Mas o conceito é falso. Dos vitoriosos da véspera despontariam os três maiores homens do tempo, Evaristo da Veiga, Bernardo Pereira de Vasconcellos e o padre Diogo Antonio Feijó; e o general que chefiara o movimento, Francisco de Lima e Silva, seria membro imutável dos triunviratos, de 31 a 35.

O que houve foi o caso vulgar nas revoluções triunfantes: o radical, o agitador vermelho, extinta a sua função demolidora, fazia-se conservador no governo, e vibrava a autoridade recém-adquirida contra os que o haviam auxiliado a destruir a autoridade antiga.

Mudavam por coerência.

Adivinhando a missão histórica do império, Evaristo da Veiga salvou o princípio monárquico, identificado, então, com a unidade da pátria; prevendo a anarquia que esfacelaria o país, Feijó restaurou, por um milagre de energia incomparável, a autoridade civil.

Completam-se. São dois nomes que são dois índices de uma época inteira. Ambos apareciam sem linhagem no meio de nomes já tradicionais. O primeiro, vindo do fundo de uma tipografia modesta, constituiria o nosso primeiro modelo de um jornalista político, inflexível e cortês, nunca abdicando a altitude do pensar e do dizer no meio das mais tumultuárias controvérsias.

O segundo, vindo de uma paróquia de S. Paulo, dilataria em pouco tempo a sua individualidade, sobre a amplitude indefinida da pátria que se construía.

Domina inteiramente o quadro.

Recorda o heroi providencial, de Thomas Carlyle.

Ministro da Justiça, na primeira Regência Trina Permanente, sofreou rijamente rodo o ímpeto da corrente revolucionária.

O seu primeiro golpe foi contra os companheiros da véspera, suplantando (14 e 15 de julho) fortes levantamentos militares que estalaram no Rio. Foi um golpe fulminante. Reprimiu as desordens; dissolveu alguns batalhões indisciplinados; fragmentou os demais, destacando-os para as províncias.

Nunca se vira autoridade deste tope. Ela golpeou de espanto o próprio governo, determinando a saída de alguns ministros assombrados e a entrada de Bernardo de Vasconcellos e Lino Coutinho.

Diogo Feijó prosseguiu, inflexível. Tendo-se apenas apercebido de estoicismo raro, que o levava intrêmulo às decisões mais arriscadas, criou a Guarda Nacional (18 de agosto de 1831) e com ela, logo depois (7 de outubro), reprimiu novo levante do Corpo de Infantaria de Marinha, que foi por sua vez extinto, depois de severamente corrigido, sendo entregues os negócios da marinha a um lente da academia militar destinado a longa carreira, Rodrigues Torres (visconde de Itaborahy).

Deste jeito, em poucos meses a anarquia emergente da indisciplina militar dobrava-se, jugulada, sob as mãos inermes de um padre. E o governo pôde devotar-se à organização administrativa, criando o Tesouro Nacional e tesourarias provinciais; sancionando e procurando aplicar, ainda que inutilmente, a primeira lei repressiva do tráfico (7 de novembro de 31); e reorganizando as escolas.

Edificava sobre o solo vibrante da revolução.

O ano de 1832 antolhou-se-lhe referto de ameaças.

Os três partidos que se enterreiravam nas Câmaras tinham elementos que se contrabalançavam. Aos moderados dirigidos por Evaristo, Vergueiro, Limpo de Abreu, Carneiro Leão e Paula Souza, contrapunham-se os exaltados de Paes de Andrade, de Bernardo Pereira de Vasconcellos, dos Franças da Bahia, e de Miguel de Frias; enquanto o Caramuru enfeixava os nomes tradicionais de José Bonifácio, Paranaguá, Cayrú e Martim Francisco, lastimavelmente aberrados da trajetória superior que tinham sido os primeiros a traçar, ao ponto de maquinarem a volta de D. Pedro I.

Na imprensa, O Republico, de Borges da Fonseca, e A Aurora, batiam-se sob ataques convergentes dos jornais federalistas (O Exaltado, A Matraca e Sentinella da Liberdade, de Cypriano Barata) e reacionários (o Caramuru, O Tempo e o Diario do Rio Janeiro).

E, fora destes dois campos, a Sociedade Federal, a Sociedade Militar, dos absolutistas, e a notável Sociedade Defensora, de Evaristo, onde se ensaiava a oratória imponente de Francisco de Salles Torres Homem, transmitiam, agravadas, ao povo, estas divergências insanáveis.

A 3 de abril rebentou novo motim, impelido por Miguel de Frias, liberal extremado: foi suplantado. Segui-se-lhe, dia depois, um outro, desencadeado pelos absolutistas  e dirigido por um alemão aventureiro, o conde von Bülow: foi completamente suplantado. O inflexível ministro da Justiça firmava definitivamente a ordem. De sorte que, a exemplo do ano anterior, os trabalhos do governo e das Câmaras puderam traduzir-se em medidas fecundas, em que sobressaem: a sanção do novo Código do Processo Criminal, à luz das modificações profundas que o constitucionalismo imprimira na vetusta legislação portuguesa; a reforma das Ordenações; estabelecimento do júri; e o abandono de uma velharia colonial, a Casa da Suplicação.

Os poderes constituídos, galvanizados pelo ânimo inflexível de Diogo Feijó, atravessaram, afinal, mais firmes, todo o ano de 33, demasiando-se até em atos de energia inúteis e condenáveis: a destruição, pela justiça sumária do empastelamento, da imprensa adversa; e, a 15 de dezembro, a prisão de José Bonifácio, suspenso do cargo de tutor da família dinástica.

Nesta, como nas repressões anteriores, o governo reagia simultaneamente contra os ideais extremos que entre si mesmos se repeliam.

O Partido Moderado preponderou por fim, incondicionalmente, desde 34.

Pertence-lhe, inteira, a lei de 3 de agosto daquele ano, o Ato Adicional. Aí há um transigir cauteloso com o liberalismo atenuado, senão com as próprias tendências federalistas: substituem-se os conselhos pelas assembleias provinciais; suprime-se o Conselho de Estado e, como um minorativo a estas franquias, ou anódino consolo ao absolutismo suplantado, faz-se a concentração do governo na Regência Una, e institui-se o Poder Moderador.

Uma proposta dos separatistas para que os presidentes das províncias se escolhessem numa lista tríplice das respectivas assembleias, caiu, impugnando-a Evaristo da Veiga, o grande inspirador dos Moderados, que lhe lobrigara nas entrelinhas o fracionamento do país.

Justificavam-no todos os fatos, além dos que ocorriam na capital. As revoltas nas províncias desatavam-se em datas, vinculadas em série: no Ceará (1831-1832), em Pernambuco (1832-1835), no Pará (1835-1837),79 na Bahia (1837-1838), no Maranhão (1838-1841) e abrangendo-as, somando-as, a longa agitação no Rio Grande do Sul (1835-1845).

Debelada a primeira pela Regência Trina, as duas seguintes deparariam adversário mais tenaz.

Diogo Feijó, já então senador pelo Rio de Janeiro, fora eleito regente (12 de outubro de 1835).

Mas parecia mudado.

As lutas ferozes que compartira haviam-no tornado vacilante sobre o futuro. As cláusulas que impôs para aceitar o governo, uma das quais, a 8ª, prevê a hipótese da secessão das províncias, mostram-no aperrado de desânimos. Compreendera, talvez, a enormidade do problema que propunha atacar; e que os tumultos federalistas, os mais lógicos entre os que abalavam o país, tinham gênesis inacessível, exigindo operação mais séria do que cargas das baionetas. Uma daquelas revoltas, a ferocíssima Cabanagem do Pará, vencida pelo general Soares de Andrea, em 1836, dera um tipo novo à nossa história – o “cabano”. Simbolizava o repontar de questão mais séria, que passou despercebida à sua visão aguda, e se destinava a permanecer na sombra até aos nossos dias.

Era o crescente desequilíbrio entre os homens do sertão e os do litoral. O raio civilizador refrangia na costa. Deixava na penumbra os planaltos. O maciço de um continente compacto e vasto talhava uma fisionomia dupla à nacionalidade nascente. Ainda quando se fundissem os grupos abeirados do mar, restariam, ameaçadores, afeitos às mais diversas tradições, distanciando-se do nosso meio e do nosso tempo, aqueles rudes patrícios perdidos no insulamento das chapadas. Ao “cabano”, se ajuntariam no correr do tempo o “balaio”, no Maranhão, o “chimango”, no Ceará, o “cangaceiro”, em Pernambuco, nomes diversos de uma diátese social única, que chegaria até hoje, projetando nos deslumbramentos da República a silhouette trágica do “jagunço”… Observe-se, contudo, de passagem, que não escapou de todo ao descortino excepcional de Diogo Feijó o meio preexcelente para remover-se parcialmente esta fatalidade, em grande parte resultante da nossa amplitude e impenetrabilidade continental. No decreto de 31 de outubro de 1835, o primeiro que ele promulgou ao assumir a Regência Una, traçam-se as primeiras linhas do nosso desenvolvimento econômico: autorizava-se a construção de uma estrada de ferro para ligar-se a Capital do Império às províncias de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia. Mas o belo pensamento administrativo avantajava-se demais à própria sociedade. Foi inviável. Ao grande homem ficou, porém, a glória de haver adivinhado esse antagonismo formidável do deserto e das distâncias, que ainda hoje tanto empece o pleno desdobramento da vida nacional.

Vencida a Cabanada, curou o regente da insurreição rio-grandense, dirigida por um campeador, Bento Gonçalves da Silva, com quem não desadorava ombrear um outro predestinado a maior fama, Giuseppe Garibaldi.

A ação do governo foi, entretanto, frouxa, permitindo que, apesar de aprisionado o primeiro em sangrento combate de três dias (2, 3 e 4 de dezembro de 1836) se avantajassem os “farrapos”, sobranceiros ao revés, ao ponto de proclamarem um mês depois a República de Piratinim, sendo eleito presidente o próprio general prisioneiro.

As vacilações governamentais favoreciam-nos.

Bento Gonçalves, conseguindo evadir-se do Forte do Mar, na Bahia, dera-lhes novo alento; e o melhor chefe legalista, Bento Manuel, que se notabilizara em 1818 na campanha contra Artigas, com ele se bandeou numa defecção lastimável.

Ao mesmo tempo, agravava-se nas Câmaras a oposição liberal dirigida por Bernardo Vasconcellos, Araujo Lima e Rodrigues Torres, a que se aliavam dois grandes predestinados, Carneiro Leão e Paulino de Souza. E para malignar as coisas, a morte de D. Pedro (1834), que se figurava circunstância favorável, destruindo de golpe as esperanças dos reacionários, ocasionara a aliança destes com a oposição parlamentar, criando-se o Partido Conservador, triunfante nas eleições daquele mesmo ano e maniatando de todo o governo.

Sombreava ainda mais o quadro uma situação financeira quase irremediável. A atividade incipiente do país, danada por esse intermitir de revoltas, e as suas precárias fontes de rendas exauridas pelas despesas feitas para as debelar, agravavam de ano a ano a dívida pública, sobretudo externa, cujos compromissos mal paliara a resolução legislativa (1833), que quebrara o padrão monetário em vigor desde os tempos coloniais.

Diogo Feijó, avaliando a situação, resolveu-a com a antiga retitude. Nomeou ministro do império o seu principal adversário, o chefe oposicionista, Pedro de Araujo Lima; e no dia seguinte (19 de setembro de 1837) entregou-lhe o cargo da Regência, ultimando-se a missão histórica do Partido Moderado.

Desaparecia nobremente e no momento oportuno.

Nobilitara a lei; ressuscitara a autoridade; dignificara o governo.

Diante de sua alma de romano, quebrara-se, amortecida, a vaga de um Revolução.

Ficava-lhe, adiante, um remanso: o Segundo Império.

*

“Desde 1836, a História Política do Brasil se resume na luta dos dois partidos, o conservador e o liberal” (barão do Rio Branco).

Mas, desde logo, é claro o descambar do princípio democrático, até então predominante. A regência de Araujo Lima esboça a reação monárquica, favorecida inesperadamente pelos dois maiores paladinos das franquias liberais, Evaristo da Veiga e Bernardo Pereira de Vasconcellos.

O último traçou com incomparável lucidez a sua nova atitude:

“Fui liberal, então a liberdade era nova no país; estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, não nas ideias práticas; o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade, que então corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganização e pela anarquia. Como então quis, quero hoje servi-la, e por isto sou regressista. Não sou trânsfuga, não abandono a causa que defendo no dia de seus perigos, de sua fraqueza; deixo-a no dia em que tão seguro é o seu triunfo que até o excesso a compromete”.

Aí está todo o ementário da época. Não temos em toda a nossa vida política, em tão poucas linhas, programa tão vasto. Bernardo de Vasconcellos não se justificava; justificava a sua nacionalidade. Seria incoerente se não mudasse.

O grande homem, aprumando-se na encruzilhada a que chegara a fase preparatória da Regência, trancava a passagem para a República. O Império surgiria com a Maioridade antecipada, e inconstitucional, feito anelo comum dos liberais de Antonio Carlos e conservadores de Paranaguá.

Foi o que sucedeu a 23 de julho de 1840.

A maioria do país estava em paz. Debelara-se na Bahia a “Sabinada” (1838) e a efêmera República Bahiense; e no Maranhão os “Balaios” fugiam diante de um general feliz, L. A. de Lima e Silva (Caxias), cuja espada seria a escora de um reinado. No sul, malgrado dois lidadores iguais no destemor e no renome, separados depois por uma variação de cenário, David Canavarro e Giuseppe Garibaldi, os rebeldes recuavam ante a firmeza do general Soares de Andrea (barão de Caçapava).

Decaíam as paixões. A própria imprensa abdicara de si o papel agitador, que monopolizara. Dois jornais, O Brasil, de Justiniano José da Rocha, e O Maiorista, de Salles Torres Homem, ambos bem escritos, frases limadas, sem o afogo e a sinceridade dos anteriores, bastavam às exigências políticas. Percebia-se a infiltração do artritismo monárquico no corpo fatigado do país. Vão surgir ainda algumas revoltas, as últimas. E nestas, as de Minas e S. Paulo (1842), sufocadas por Lima e Silva, nos combates de Santa Luzia e Venda-Grande; na de Pernambuco (1848), o que se observa é apenas o desapontamento partidário. Não havia princípios políticos em jogo. A de Minas, por ex., determinaria o fato subalterno de uma reforma do código do processo. Os rebeldes timbram no conclamar a adesão ao trono. Batem-se saudando a realeza.

Imprimira-se uma inflexão na diretriz da nossa história.

Era obrigatória. O nosso desenvolvimento social fora até ali quase nulo. A vida nacional ativera-se aos interesses absorventes da república.

A cultura literária permanecera inapreciável. A filosófica papagueava no ecletismo massudo do padre Mont’Alverne. Os talentos que apareciam — resumamo-los em Araujo Porto Alegre, Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias — tinham educação alienígena, através da preliminar obrigada de uma viagem à Europa, de onde nos vinham os únicos contingentes da ciência, emalados. Nas ciências restringíamo-nos à figura solitária daquele notável padre Custodio Alves Serrão (1842), incompreendido e inútil nas salas desfrequentadas do Museu Nacional incipiente.

Seguindo o exemplo de Saint-Hilaire, alguns eleitos saltavam, envoltos de indiferença geral, num ponto qualquer da costa, e iam descerrar as opulências de uma natureza sem par, imensa página da História Natural que não sabíamos ler.

D’Orbigny segue para Mato Grosso; Pedro Clausen (1841) para Minas; Helmreichen (1846) para a Bahia; Gardner, para o extremo norte; Pissis (1842) delineia o nosso primeiro mapa geológico; Castelnau (1843) afunda nos planaltos; e mais ilustre que todos, Wilhelm Lund (1843), de seu retiro tranquilo da Lagoa Santa, principiara a abalar o mundo científico com as suas extraordinárias descobertas sobre o brasileiro pré-histórico.

Ninguém os percebia. Sob o aspecto intelectual, reduzidos à literatura apressada dos jornais e às rimas de um e outro poeta de talento a errar pelas encostas da inspiração nacional que culminava nos Suspiros Poéticos, de Magalhães, estaríamos aquém da ditadura real; e, sem magoar a História, poder-se-ia dar a D. João VI o título de Mecenas, se, desde 1838, a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sob a direção do marechal R. da Cunha Mattos e cônego Januario Barboza, não se erigisse como um centro de convergência das energias dispersas do nosso espírito. A simples lista de seus primeiros sócios, onde a par dos nomes estrangeiros, presuntuosamente decorativos, de Chateaubriand e de Humboldt, se destacam os de Marques Lisboa, Vasconcellos de Drummond, Maciel Monteiro, Pedro de Angelis, Ladislau Monteiro Baena, paciente compilador do Compendio das Eras da Provincia do Pará, visconde de S. Leopoldo (Annaes da Provincia de S. Pedro do Sul), Ignacio Accioli (Memorias Historicas, e Politicas da Provincia da Bahia), marquês de Maricá, Pedro de Alcântara Bellegarde, Joaquim Caetano da Silva e um moço, Varnhagen, que seria mais tarde o visconde de Porto Seguro – é por si só bastante expressiva no revelar uma vivacidade espiritual amplamente generalizada. Mas aperreavam-na as desordens dispersivas dos partidos.

Na própria ordem prática, as mais imperiosas medidas despontavam abortícias. A ideia de bater-se a distância e abreviar-se a enormidade da terra pelas linhas férreas, ressurgira em 1840, no privilégio concedido a um estrangeiro perspicaz, Thomas Cochrane. Mas o lúcido profissional agitou-se debalde no meio da sociedade desfalecida, até ao malogro completo de seu pensamento progressista.

Assim, a nossa evolução, por ser estritamente política, era problemática. Pelo menos ilusória. Estava numa minoria educada à europeia. O resto jazia no ponto em que o largara a metrópole, obscuro e dúbio – amálgama proteiforme de brancos, pretos e amarelos, uns e outros prática e moralmente prejudicados pela escravidão crescente com o tráfico, que se não extinguira.

De sorte que embora a Regência, com ser eletiva, exemplificasse a praticabilidade da república, foi providencial a atitude dos que lhe prorrogaram o advento. Seria, então, artificial e forçada. Contraviria à situação social.

Esta, cindida de crises, viera desde a constituição de 24, que impusera (permita-se-nos a antilogia) a liberdade, numa ascensão vertiginosa para que se não aparelhara.

O Segundo Império foi uma parada. Digamos melhor: uma situação de equilíbrio.

Predominara, logo em boa hora, o elemento conservador.

Na Câmara de 1843, uma figura isolada, Antonio Rebouças, único a representar a falange liberal decaída, aparecia como uma evocação do passado. Fundindo duas raças, aquele ariano bronzeado desdobrou, inútil, diante dos reacionários tranquilos, a sua sólida envergadura de lutador. Era um incompreendido. Falava uma língua morta no recinto onde, entretanto, eclipsando os grandes nomes do Senado, iam surgindo Maciel Monteiro, Abrantes, Wanderley, Euzebio de Queiroz e Nabuco.

É que a regressão ou a parada, segundo o ideal de Bernardo de Vasconcellos, fora completa.

Começando a governar com os liberais – Antonio Carlos, Martim Francisco, Limpo de Abreu, A. Coutinho e Hollanda Cavalcanti – o Imperador fizera-o por gratidão aos batedores da sua maioridade inconstitucional.

Este ministério não durou um ano.

A reação monárquica desmascarou-se logo com o marquês de Paranaguá (23 de março de 41) e foi desde logo exagerando-se até golpear o Ato Adicional: restabeleceu-se, por uma lei ordinária, o Conselho de Estado; e, por uma outra de 3 de dezembro, foi entregue a distribuição da justiça a um complicado aparelho policial.

Carneiro Leão (depois marquês de Paraná, 20 de janeiro de 43), um convencido que atrairia todos os ressentimentos do Monarca para lhe amparar melhor o trono, continuou este esforço. E ao entregar em 44 o governo aos liberais do visconde de Macahé, viu-se que o fazia menos pelo decair do programa conservador que por um ressentimento pessoal do Imperador.

Com efeito, a preocupação absorvente de estancar as reformas ia nivelando os partidos. Tinha-se andado demais. O próprio Antonio Carlos, desequilibrado no estonteamento da altura a que se chegara, atirava no seio da representação nacional um grito de espavorido:

– Senhores! a Constituição foi feita às carreiras!

Era preciso parar, embora repelindo-se as melhores figuras do passado: Feijó e Campos Vergueiro, duas tradições vivas e belíssimas, comprometidos nas revoltas que irromperam em 42, em Minas e S. Paulo, foram desterrados. Desfechou-se em 45 o último golpe no federalismo, no Rio Grande, caindo a República de Piratinim.

Por fim, o Partido Liberal saiu em 1848 do poder para a revolução malograda de Pernambuco. Desenhou-se o perfil do último revolucionário, Nunes Machado. E a crise extinguiu-se de vez – dominado o horizonte político (29 de setembro de 48) pelo marquês de Olinda, a quem o cargo de último regente dera quase a majestade de um rei.

Começava a política imperial.

*

Nobilitou-a, a princípio, uma medida civilizadora.

Uma questão incômoda, a da escravidão, viera desde o século anterior (1758) com o Ethiope Resgatado, de M. Ribeiro Rocha, intermitentemente revivida. Em 1810, Velloso de Oliveira apresentava-a a D. João VI, com a ideia da libertação dos nascituros. Hippolito da Costa agitara-a, pelo Correio Braziliense, discutindo a emancipação gradual e inspirando, talvez, o Tratado de 22 de janeiro de 1815, com a Inglaterra, no qual o governo português se obrigou a abolir o comércio de escravos ao norte do equador. O visconde da Pedra Branca, um sentimental, levantara-a, sem resultado, nas Cortes de Lisboa, em 1821. Em 1825, José Bonifácio apresentava notabilíssimo projeto sacrificado nas desordens do tempo.

Sobreviera por fim, de novo, a influência da Inglaterra (Convenção de 1826), visando refrear o tráfico, a partir de 1830. Depois a lei inexecutada ou intermitentemente violada pelos contrabandistas, de 7 de novembro de 31, inspirada por um projeto anterior e malogrado dos irmãos Ferreira França.

Sucedeu um hiatus durante a Regência e começo da maioridade, até ao Bill Aberdeen (1845). A nova intervenção inglesa, porém, malestreara-se com estatuir a captura do negreiro mesmo nas águas territoriais e o seu julgamento nos tribunais britânicos. Foi contraproducente: o traficante, emboscado no ressentimento nacional, tornou-se um quase vingador da nossa soberania melindrada e ferida.

A Inglaterra, porém, insistiu ao ponto de influir excepcionalmente no ministério do visconde de Monte Alegre, em que se recompusera anteriormente o do marquês de Olinda.

A lei de 4 de setembro de 1850 imortalizou o ministro da Justiça Euzebio de Queiroz e, severamente aplicada, avantajou-se às balas dos cruzeiros ingleses, extinguindo inteiramente o tráfico.

O grande mérito de Monte Alegre está no haver pairado a cavaleiro das explorações que se exercitaram sobre o melindre nacional. A pressão das armas inglesas era iniludível. Não havia obscurecê-la nem ao seu caráter irritante. Mas era também uma intimativa austera da civilização.

O mesmo se dirá de um outro ato, subsecutivo: a intervenção nos negócios do Prata (1851), depois de um longo afastamento em que um nome, Ituzaingó, se escrevia isolado, desairando o nosso prestígio no exterior. O ministro dos Estrangeiros, Paulino de Souza (visconde de Uruguai), aproveitou um lance magnífico para ampliar, de golpe, o campo da ação inegavelmente civilizadora da diplomacia imperial.

Realmente, as tropelias de D. Manuel de Rosas, que desde 1835 submetia a Confederação Argentina à tirania deplorável – desencadeavam-se próximas demais das nossas fronteiras. Constituíam ameaça de complicações inevitáveis. O velho sonho imperialista do Vice-Reinado entontecia a alma do tirano, levando-o a intervir intermitentemente nos negócios do Estado Oriental do Uruguai, há longo tempo cindido pela rivalidade dos caudilhos Manuel Oribe e Fructuoso Rivera. Rosas, inclinando-se ao primeiro, em 1851, ao ponto de fornecer-lhe tropas para assediar Montevidéu, desvendara os seus intuitos. Mas, contravinha à política tradicional do Brasil, essencialmente baseada na manutenção da autonomia não só do Uruguai, como do Paraguai, a quem nos ligáramos por uma aliança em 25 de dezembro de 1850. De sorte que a Tríplice Aliança de 29 de maio de 1851, entre o Império, o Uruguai e a província de Entre-Ríos, dirigida pelo general Urquiza, instituindo-se para debelar a ditadura tumultuária da Mazorca de Buenos Aires, que ameaçava alastrar-se pelas nações vizinhas – foi, ao mesmo passo, um ato de defesa nacional e um lance superior de liberalismo incomparável na política exterior. Tão certo é que os 20.000 soldados do marechal duque de Caxias, reforçados pelos marujos de Grenfell, não foram repelir apenas as arremetidas do alucinado que no carimbo das notas oficiais completara o dístico – ¡mueran los salvajes unitarios! – com insultos ao infame governo do Brasil, senão também para, de acordo com o art. 1º do Convênio de 29 de maio, “manter a independência […] da mesma República do Uruguai, fazendo sair do território desta o general Oribe e as tropas argentinas que ele comandava”.

A campanha, rematada com o melhor êxito em Monte Caseros (3 de fevereiro de 1852), de que resultaram a queda do tirano e o reacender-se a nossa glória militar depois do eclipse parcial de Ituzaingó, teve dois notáveis efeitos: a libertação do Uruguai  e a navegação franca no estuário do Prata.

Em tudo isto um inconveniente único: a Aliança de 12 de outubro de 1851, negociada pelo marquês de Paraná, que nos arrastaria outra vez em armas, mais tarde, para o Sul. Ou este descuido: o não aproveitar-se o triunfo de Caseros para naquela ocasião resolverem-se decisivamente muitos assuntos delicados, entre os quais o da neutralidade completa e definitiva da Ilha de Martín García, que chegou lastimavelmente indefinido até aos nossos dias.

Este ministério, porém, e a sua segunda recomposição, em 11 de maio de 1852, com a presidência do visconde de Itaborahy, realizara trabalhos tão notáveis que não há insistir nestes breves deslizes.

Completou em parte, na ordem prática, a tarefa da unidade nacional, batendo de frente o obstáculo da extensão do território, com as primeiras linhas de estradas de ferro e navegação. O decreto de 26 de junho de 1852, estabelecendo as garantias de juro, iniciou, praticamente, a indústria ferroviária, que para logo se delineou no Norte com a estrada do Recife a S. Francisco (decreto de 19 de outubro de 1853) e no Sul com a de D. Pedro II (decreto de 9 de outubro de 1853). Antes, porém, sem nenhuns favores do governo, a iniciativa individual definira-se na vontade triunfante de Irineu Evangelista de Souza (barão de Mauá); e os 17 km da linha do Grão-Pará investiam com as encostas da Serra do Mar, nos primeiros passos da conquista majestosa dos planaltos, ouvindo-se o primeiro silvo da locomotiva na América do Sul.

O governo secundou este renascimento. Regulou a fortuna pública pela emissão bancária de 1853, Código Comercial, leis de terras e reformas do Tesouro. Criou as províncias do Amazonas e Paraná. Expandiu a vida internacional, reorganizando a diplomacia. Abriu o livre trânsito do Paraguai, com o Tratado de 25 de dezembro de 1850. E, por fim, deu eficaz impulso à corrente imigratória que, esboçada com D. João VI (colônias Leopoldina e Nova Friburgo), D. Pedro I (S. Leopoldo), e, em 1840, com a fundação de Petrópolis, teria, desde 1850, com a vinda de Hermann Blumenau, um traçado contínuo, de que restam, como pontos determinantes, Blumenau, Joinville, Mundo Novo, S. Lourenço, Teutônia e outras.

Nunca uma situação conseguira tanto.

Abandonando o poder, em 6 de setembro de 1853, o governo fazia-o sem um golpe adverso, como que assaltado de fadigas.

Entregava-o ao homem que lhe fora inspirado encoberto nas administrações interna e externa, o marquês de Paraná.

*

O grande estadista voltava ao poder como um triunfador. Fora a alma dos ministérios anteriores, já na presidência perigosa de Pernambuco, anulando os restos do movimento de 1848, com setembristas de Pedro Ivo, já na missão ao Prata, amparando a reação de Urquiza contra Rosas.

Conquistara o mando, em que pese ao desquerer do Imperador, que lhe estranhava o gênio áspero, altivo e autoritário.

Mas, por uma circunstância notável, foi através do seu espírito independente e de sua altaneria que se transmitiu pela primeira vez a influência preponderante daquele nos acontecimentos políticos.

De fato, o seu principal programa – o da conciliação dos partidos – executado em todos os pontos, refletia uma inspiração do alto, um “pensamento augusto” no dizer de Araujo Lima. E a anomalia de se ter apeado o governo anterior tão enigmaticamente, sem nenhum conflito partidário, reforça a presunção de ter sido ele chamado a efetuar um intento preestabelecido.

Além disto, o “cansaço” a que se referiram Euzebio de Queiroz e Rodrigues Torres (visconde de Itaborahy), como motivo único do abandono do lugar em que tanto se haviam nobilitado, era-o, de fato, não já somente deles, senão do país.

Chegava-se ali depois de trinta anos de lutas. Urgia um armistício. Salles Torres Homem, quebrada a pena  do Libello do Povo, depois, o caso:

“Entre a decadência dos partidos velhos que acabaram e os partidos novos a quem o porvir pertence, virá assim interpor-se uma época sem fisionomia, sem emoções, sem crenças, mas que terá a vantagem de romper a continuidade da cadeia de tradições funestas e de favorecer pela sua calma e pelo seu silêncio o trabalho interior de reorganização administrativa e industrial do país”.

Foi o que aconteceu. Atreguados os despeitos partidários, indistintos liberais e conservadores, no período de 1853-1858, com os ministérios sucessivos de Paraná, Caxias e Olinda, a caracterização do governo é “antes moral que material; o traço predominante de sua política é o arrefecimento das paixões que produziam as guerras civis”.

O caráter de unidade desta longa administração foi tão firme que ao falecer em setembro de 56, o homem cuja vontade de ferro a equilibrara, apesar do abalo produzido não se lhe sentiu o vácuo. Permanecera imortal sobre a sólida arquitetura governamental construída, tornando-se uma espécie de Presidente do Conselho póstumo dos dois gabinetes (Caxias e Olinda) que o substituíram. Rodeara-se de homens que iam bastar a todas as exigências do Império até quase à República: Caxias, o mais prudente dos heróis; Limpo de Abreu (visconde de Abaeté), vindo desde a Regência galgando todas as posições sem desejar nenhuma; J. Mauricio Wanderley (barão de Cotegipe), fervente autor da lei libertadora de 5 de junho de 54, destinado, entretanto, a ser mais tarde um paladino da escravidão; Nabuco de Araujo, que reorganizara a Justiça e o Direito; J. M. da Silva Paranhos (visconde do Rio Branco), removido sucessivamente da ciência para o jornalismo, para a diplomacia e para a política; Couto Ferraz, que refundiu a instrução pública; Pedro Bellegarde, que nobilitou o Exército.

Fora deste círculo, outros, adversários ou adeptos, mas crescendo no ambiente propício que se formara: José Antonio Saraiva, Salles Torres Homem, J. Maria do Amaral, Teixeira de Freitas, Fernandes da Cunha, Cansansão de Sinimbu, Justiniano da Rocha, e, sobre todos, se não o afastasse a morte prematura, um gigante intelectual, a nossa mais completa cerebração no século, Joaquim Gomes de Souza, o “Souzinha”, jurista, médico e poeta, legando-nos sobre o cálculo infinitesimal páginas que ainda hoje sobranceiam toda a Matemática.

Está aí a significação moral do governo do marquês de Paraná.

Lembra uma arregimentação de forças, adestrando-se para cometimentos ulteriores mais sérios.

Na ordem prática refundiu a instrução pelos novos estatutos dos cursos jurídicos, e faculdades médicas, regulamentando o ensino primário e criando o Instituto dos Cegos. ampliou o desenvolvimento econômico, melhorando a Companhia de Navegação do Amazonas, organizando a Estrada de Ferro de Pedro II, e concedendo a de Santos a Jundiaí, que seria a aorta de toda a existência econômica de S. Paulo (Dec. de 26 de abril de 1856). Firmou a paz exterior, repelindo o erro da intervenção ativa no Prata e ligando-se em tratado de comércio com a Argentina. Aderiu dignamente aos princípios do direito marítimo do Congresso de Paris (1856). Completou por fim a lei destrutiva do tráfico, com a de Wanderley, que proibia o comércio interprovincial de escravos.

Sugeriu a reforma hipotecária, e, mais civilizadora e urgente, a judiciária – reconstituindo o Direito, destruído pelo odioso aparelho policial da lei de 3 de dezembro de 1841.

Completou estes atos, com um que devia dali em diante reagir poderosamente sobre toda a política — a lei eleitoral dos “Círculos”, destinada a grafar com um rigorismo de cópia a vontade nacional.

*

Mas o que dá ao marquês de Paraná a linha superior de um estadista é ter compreendido que na nossa gens complexa, sem tradições profundas, e democrática apenas pela carência de uma seleção histórica, a existência dos partidos era por sua natureza efêmera, adscritos ao malogro ou ao sucesso das necessidades de ocasião que representavam. A política nacional da época tinha que se adaptar às exigências de momento e a todas as combinações concretas, a todas as surpresas de uma pátria em formação acelerada; e partiria as molas de um partido moldado em fórmulas prefixas.

A conciliação dos partidos, gastos no atrito de suas próprias lutas, era lógica. A lei eleitoral dos “Círculos”, o seu complemento indispensável.

Com efeito, o que houvera desde 22 até àquele tempo fora uma convergência de forças. À princípio a dispersão revolucionária, o ideal da independência, revolto ou esparso em facções, patrulhas sem-número, mal arregimentadas sob o prestígio de um príncipe. Depois, em 31, a delimitação dos lutadores, nos três partidos definidos da Regência. Subsecutivamente, com o despertar do prestígio monárquico em 1837, nova concentração em dois partidos únicos.

Mas este movimento, que se ostenta em nossa história com um rigor de traçado geométrico numa composição mecânica de forças – o que acentuadamente reflete é a vitória dos elementos conservadores sobre os progressistas: um contínuo amortecimento do princípio democrático; uma revolução triunfante que a pouco e pouco se gasta e se remora, perdendo num curso de 38 anos (1822-1860) toda a velocidade da corrente, até desaparecer, afinal, de todo, no remanso largo do Império.

Tínhamos por isso necessidade de alguém que se não deslumbrasse pelo quadro único da ordem inaugurada, e pudesse, sondando o sentimento do povo, despertar o elemento progressista, que tombara nas sangueiras das revoltas infelizes.

Foi a missão do marquês de Paraná.

Com ele extinguiram-se partidos em cujo antagonismo havia, desde 48, a força dispersiva do ódio; e sob o seu influxo iam aparecer partidos modelados pela força construtora das ideias.

O criador da Conciliação – e esta nada mais foi do que a absorção do Partido Liberal exausto pelo conservador pujante – seria o criador póstumo da Liga, de 62, que nada mais foi do que a absorção da maioria do Partido Conservador cindido pelo liberalismo revivente. A eleição por distritos, de cada deputado, erguendo diante das velhas influências históricas, sobretudo conservadoras, o prestígio nascente dos chefes ou influências regionais, alastraria de fato, sobre todo o país, as responsabilidades políticas. Seria realmente, consoante a frase de um jornalista da época, o triunfo da causa territorial “contra o entrincheiramento à beira-mar do velho regímen”.

Pelo menos, extintos os “deputados de enxurrada”, conforme a ironia fulminante de Paraná, os novos eleitos retratariam com mais fidelidade a vontade do país. Deste modo o grande homem demarca um trecho decisivo da nossa história constitucional; e centraliza-a. Enfeixa as energias do passado e desencadeia as do futuro.

Separa duas épocas.

Foi o ponto culminante do Império.

Depois dele, o que dizem todos os fatos é o decair contínuo do princípio monárquico até 1889, gastando na descensão quase tanto tempo quanto para a subida.

Realmente, a República, que não devemos confundir com a bela parada comemorativa de 15 de novembro de 1889, tinha, lançados, os seus primeiros fundamentos.

*

O princípio democrático renasceu da lei dos “Círculos”. Triunfou ruidosamente nas eleições de 1860.

Pouco antes, faltando o ponto de apoio do homem em que se esteara, a situação se revelara flutuante, prevendo-se uma transmutação de cenário.

Caxias, frágil para a herança que o esmagava, cedeu o governo ao marquês de Olinda, e este, ligando-se a Souza Franco, um intransigente liberal de 48, traiu na hibridez desta aliança o enfraquecimento conservador. Apeou-se do poder assim como o gabinete que lhe sucedeu, do visconde de Abaeté, com o pretexto de divergências sobre reformas bancárias, mas de fato pela falta de um apoio na sociedade inconsistente. O Imperador recusara-lhes tenazmente o recurso de dissolução da Câmara, como se temesse uma consulta ao país.

Era a “época sem fisionomia”, de Timandro, que findava.Esboçavam-se, dúbios ainda, três partidos: o liberal revivente, o conciliador decaído, e o conservador estreme. Os governos vacilavam entre uns e outros, agremiando ao mesmo passo a adesão e as desconfianças de todos.

Na imprensa soava uma palavra nova, que era uma palavra de combate. Francisco Octaviano aparecia no Correio Mercantil, na atitude correta que sempre manteve, vibrando, sem perder a linha da sua organização finamente aristocrática, golpes mortais “no monopólio do governo entregue a mãos desfalecidas”. Era a primeira voz do espírito novo renascido.

Nesta situação, o último ministério reacionário de Ângelo Ferraz (10 de agosto de 1859) organizou-se como uma torção violenta para a ordem antiga, mal combatida no Parlamento por Landulpho Medrado, Tito Franco e Martinho Campos.

Aquele refluxo, porém, corria, quando o termo legal da câmara de 1856 entregava ao povo um pleito que a monarquia evitava.

E o resultado foi admirável.

Mostram-no as eleições no Rio, que já então era a miniatura do Brasil.

“Essa eleição de 1860, pode-se dizer que assinala uma época em nossa história política; com ela recomeça a encher a maré democrática…” [ 3 ]

De fato, toda a agitação daquele ano decisivo se fez em roda de três nomes que, vitoriosos nas urnas, faziam mais do que ressuscitar o Partido Liberal lentamente destruído numa luta de quarenta anos: Francisco Octaviano, Theopilo Ottoni e Saldanha Marinho. O primeiro, um ateniense dos trópicos, sonhador e poeta, ficaria abraçado à legenda histórica do liberalismo; o segundo, cujo papel foi o de detonar a expansão popular pela eloquência explosiva, que o incompatibilizaria depois com a luta no parlamento, permaneceria para sempre dúbio, com a sua feição de rebelado. O último, porém, dava os primeiros passos de longo itinerário…

Abria-se uma era nova.

O último gabinete reacionário caíra como que ao baque de uma revolução. Não aguardara a abertura das Câmaras. E o que lhe sucedeu, de Caxias, começando com elementos incolores (visconde de Inhambupe) ou francamente conservadores (Paranhos e Sayão Lobato), a breve trecho transigiu com a nova ordem de coisas, vinculando-se, numa recomposição forçada, à opinião vitoriosa, por intermédio de um deputado, José Antonio Saraiva, destinado a reunir os atributos mais nobres dos nossos homens políticos.

É que o velho militar – cabo-da-guarda do Império – aquilatara a crise.

Mudavam-se os tempos. No Parlamento, formara-se a liga dos liberais com os conservadores moderados (1862) e um novo partido, “Progressista”, enterreirava a velha falange reacionária de E. Queiroz, Itaborahy e Uruguai. Fora, irradiando pelo país e fulgurando na capital, na Actualidade, de Lafayette R. Pereira, Pedro Luiz e Flavio Farnese, o ultraliberalismo avassalava os espíritos, visando conclusões extremas. Desenhava-se no cenário político a tríplice organização partidária de 1831. Mas a componente maior tendia visivelmente para a democracia.

Naquele mesmo ano um fato secundário objetivara o novo rumo das ideias.

Monumento a D. Pedro I
Monumento a D. Pedro I do Brasil, praça Tiradentes, centro histórico da cidade do Rio de Janeiro, esculpido por Louis Rochet e projetado por João Maximiano Mafra. Foto: Carlos Luis M. C. da Cruz, jul. 2012

Inaugurou-se a estátua de D. Pedro I.

Era oportuno lance para reacender-se a tradição monárquica, deletreando-se a página histórica da Independência. O sentimento popular, porém, derivou à cadência dos versos desafiadores da mentira de bronze, de Pedro Luiz; e da esfera superior da política, a palavra que desceu pelo órgão do senador Nabuco de Araujo, timbrara no afirmar que o monumento, longe de significar a glorificação de um reinado, traduzia apenas a justiça de um povo livre, que não esquece os serviços prestados.

Entalhava-se a ortodoxia monárquica. Pedia-se em todos os tons a representação das minorias; condenavam-se as patriarquias governamentais das câmaras unânimes; e, em pleno Senado, uma frase histórica – O rei reina e não governa – soava como um refrão ameaçador e estranho.

Por fim, a política imperial que, havia pouco, perdera um ministério ante uma manifestação popular, perdeu um outro batido pelo Parlamento. O gabinete Caxias caiu (21 de maio de 62) e com ele a situação conservadora, no poder desde 48.

A Câmara, quase toda de liberais e dissidentes, readquirira, depois de um esbulho de 14 anos, o direito de dispor do governo.

Equilibravam-se, porém, no seu seio, os dois partidos extremos, e esta igualdade levava, paradoxalmente, ao desequilíbrio. O ministério de um lutador de pulso, Zacharias de Goes e Vasconcellos, onde aparecia um heroi das campanhas do Sul, o barão de Porto Alegre, durou apenas três dias. Nesta emergência, o Imperador apelou de novo para o marquês de Olinda e o antigo regente formou, então, o único ministério possível, o “gabinete dos velhos”, venerandos aposentados de 31, entre os quais só havia um moço, à volta dos cinquenta anos, Cansansão de Sinimbu.

Este governo emoliente, inapto para dominar a Câmara, dissolveu-a.

O país ia outra vez definir-se; e fê-lo incisivamente. Ampliando a de 60, a eleição de 63 levantou liberais e democratas, numa maioria desproporcionada e alarmante.

Por outro lado, o espírito popular desatava-se em rebeldias desde muito deslembradas. Foi o que sucedeu por ocasião da questão dos salvados da barca Prince of Wales e consequentes represálias da fragata inglesa Forte à entrada da barra.

Amotinou-se a multidão no Rio. Tomou-lhe a frente Theophilo Ottoni. Um protesto ameaçador arrebentou junto do trono: e o ministério Olinda, num esvaimento de sombras — as últimas sombras do passado — extinguiu-se ante a palavra coruscante do tribuno.

*

Ao reassumir o governo (15 de janeiro de 64), Zacharias de Vasconcellos podia dizer que reatava o seu ministério, de seis dias, de 24 de maio de 62. A situação antecedente fora um desvio morto, removendo da larga estrada que se abrira em 1860 todos os elementos, cujo papel findara.

A Câmara de 64 refletia a um tempo a vitória democrática e o rejuvenescimento do espírito nacional. Lá estavam:

F. Octaviano; Tavares Bastos, o pensador irônico das Cartas de um Solitário; Pedro Luiz, o lírico iconoclasta da ode a Tiradentes; José Bonifácio, o Moço; o romancista Joaquim Manoel de Macedo; Feitosa, o jornalista vibrante de 48; o barão de Prados, um dos raros cientistas brasileiros do tempo; Martinho Campos, que se tornaria o terror de todas as situações; Urbano Sabino Pessoa e Felippe Lopes Netto, duas figuras vingadoras, dois nomes que recordavam um único, o de Nunes Machado, sacrificado 16 anos antes; Liberato Barroso, Christiano Ottoni, Souza Dantas, Silveira Lobo; e, obscuro ainda, um predestinado, Affonso Celso.

Sobre todos, dominando-os, centros atrativos em torno aos quais já de desenhavam os dois partidos em que se fracionaria a Liga, Teophillo Ottoni e Saraiva.

O elemento conservador, suplantado, só tinha um nome — Junqueira.

Apesar disto, o ministério progressista, fortalecido de tais elementos, numa câmara quase unânime, ia dobrar-se à pressão do próprio movimento liberal, caindo de improviso a 29 de agosto daquele ano.

É que o liberalismo, avançando, distanciara-se dos aliados da véspera. A cisão da Liga, como a da conciliação, operava-se ante o expandir da democracia. E, dividida em dois partidos, o “histórico”, com os elementos radicais, e o “progressista”, com os moderados, reproduziam estes, ante o conservador inalterável, a tríplice fisionomia partidária da Regência. Abria-se, ao parecer, na nossa história, o círculo fantasista de Vico.

Mas era uma semelhança exterior.

Ia operar-se um movimento oposto. Ao invés da arregimentação em torno dos elementos moderados e conservadores – o destaque cada vez maior e irresistível do liberalismo.

Pelo menos, a unificação sucessiva dos três grupos já não se faria em torno da bandeira reacionária.

Levava um outro norte. Não se tratava mais de fazer parar, como em 1837, uma revolução que preenchera o seu destino.

Ia-se começar uma outra…

*

Impediu-a ou remorou-a, porém, um fato esporádico – a guerra com o Paraguai.

Tinha, certo, antecedentes que permitiam prevê-la.

Era, sobretudo, uma resultante do fácies geográfico impondo-nos as comunicações com Mato Grosso pelo longo desvio contorneante do Prata.

Desta circunstância já haviam resultado graves atritos.

Garantia a passagem o Tratado de 25 de dezembro de 1850.

A situação moral do Paraguai, porém, que saíra da rígida ditadura do Dr. Francia para a tirania de um verdugo inapto a avaliar o esforço do estadista, certo feroz, mas talvez único para ressuscitar um país que o jesuitismo matara, anulava todos os convênios.

Os dois López, em cujo espírito o sonho do Vice-Reinado se ampliava com o da conquista de Mato Grosso, predispunham-se há muito para a luta. Organizaram um exército desproporcionado – o maior exército permanente que ainda houve na América do Sul; ouriçaram as ribas do Paraguai de fortalezas extremadas pelos fortes Olympo e Humaytá; e, desde 1853, Carlos López provocara um rompimento, enviando ao ministro brasileiro, Leal, os passaportes, sob o pretexto extravagante de se dedicar ele à intriga contra o Supremo Governo. Salvaram-nos, então, da luta, duas circunstâncias: a tibieza do Almirante Pedro Ferreira que, sendo enviado a exigir pronta reparação do insulto, quedara inerte, tolhido pelo temor de uma intervenção anglo-francesa; e o sólido critério do marquês de Paraná, que iniciava o governo de todo entregue à obra da organização nacional.

Este desastre diplomático teve depois (1856) o corretivo da Missão Paranhos (visconde do Rio Branco), firmando com o plenipotenciário Bergés um tratado de livre trânsito fluvial.

A regulamentação do convênio, porém, anulava-o. A travessia era uma tortura, através de fiscalização humilhante, impondo contínuos desembarques e insidiosos exames dos passaportes crivados de vistos irritantes; além de outros entraves, que determinaram, em 1857, a ida de outro plenipotenciário nosso, José Maria do Amaral, a Assunção, com o resultado único de contemplar de perto a altaneria de López Iº,estranhando-lhe o ter ido até lá em um vapor armado em guerra.

Por fim, nova intervenção de Paranhos (visconde do Rio Branco) originou o Tratado de 12 de fevereiro de 1858, franqueando o Rio Paraguai a todas as nações.

São antecedentes expressivos. Revelam no ânimo do paraguaio o anelo da luta, para que procurava apenas um pretexto.

Ora, este antolhou-se-lhe em 64.

O Tratado de 12 de outubro de 51 – contrato unilateral que nos fizera protetores platônicos do Uruguai, contemplando, neutros, as arrancadas entre blancos e colorados perpetuamente mal-avindos, prendera-se às discórdias platinas. Tornara-nos, margeando o palco de uma revolução crônica, espectadores dos escândalos entre os caudilhos, e estimulara entre os rio-grandenses as mais pecaminosas algaras, as famosas califórnias, cópia das montoneras platinas, em que sucessivos grupos invadiam a campanha oriental, agravando-lhe os tumultos. Desse modo, a nossa neutralidade era oficial apenas: colaborávamos também a golpes de lanças e patas de cavalos naquele regime clássico de tropelias; e é compreensível que nos envolvêssemos, por fim, seriamente, nas desordens.

De fato, em 64, sobrevieram as notícias de vexames e torturas de toda a sorte exercidas sobre os brasileiros, nas lutas do Uruguai, onde um revolucionário, o general Flores, colorado, se insurgia contra o presidente blanco, Aguirre. E a opinião, no Rio, ainda abalada pela recente questão inglesa, inflamou-se. Não se cogitou que os brasileiros torturados, amatulando-se com as tropas daquele general, haviam trocado a bandeira da pátria pelo poncho do caudilho. Eram, afinal, soldados de Flores, e o governo oriental, repelindo-os, não podia distingui-los nas fileiras adversas.

Estas circunstâncias atenuavam os atentados cometidos, permitindo afastar-se, sem desaire, um conflito inútil.

Mas os fatos precipitaram-se. Enviado ao Uruguai, José Antonio Saraiva, a despeito do seu ânimo superior e nímio tolerante, não pôde evitar o rompimento. O presidente Aguirre repeliu uma intervenção que era, de feito, um apoio ao cabecilha rebelde. Devolveu o ultimatum de 4 de agosto e aprestou-se para a refrega, enquanto os navios da nossa esquadra, sob o mando do almirante Tamandaré, singravam ameaçadoramente as águas do Uruguai.

Solano López aproveitou então o momento que lhe vinha a talho para uma aspiração antiga. Ofereceu a sua mediação em junho. Logo depois, em setembro, protestou contra o auxílio que se dispensava ao general Flores. Num e noutro caso a sua atitude foi irritantíssima. A nota extravagante que dirigiu ao diplomata brasileiro em Assunção, Vianna de Lima (barão do Jaurú), em que se intitula garbosamente defensor da independência e do equilíbrio político das repúblicas platinas, repassava-se de tão afrontosas ameaças que orçava por uma declaração formal de hostilidades. Completou-a o aprisionamento (12 de novembro de 64) do vapor comercial marquês de Olinda, onde se embarcava o coronel Carneiro de Campos, presidente do Mato Grosso. Assim, a campanha do Uruguai, desfechada pelas baionetas do general Menna Barreto, ultimando-se com as tomadias de Paysandú e Montevidéu e pela deposição do presidente Aguirre, substituído pelo nosso aliado general Flores, foi apenas o prelúdio de uma outra maior.

Mas passemos, à carreira, sobre uma página tristemente gloriosa.

A Guerra do Paraguai é um desvio na nossa história. A sua causa mais próxima está, talvez, na interferência de duas vontades, injustificáveis ambas. De um lado o delírio de grandezas de um déspota minúsculo demais para a sua própria ambição, de outro a diversão temerária de um imperador constitucional, porventura impressionado com o cenário da política interna do seu país.

O primeiro era mais lógico. Aquele anelar por um grande império baseava-se, afinal, nas cisões de outras repúblicas platinas e na nossa relativa fraqueza militar. Os noventa mil homens de López tornavam-lhe factível a empresa.

Faltou-lhe, porém, a envergadura e o lance de vistas de um conquistador. Comprometeu logo a sua causa com duas invasões desastrosas: a de Estigarribia, no Rio Grande do Sul, avançando no desconhecido até perder-se na rendição de Uruguaiana; e a mais infeliz, de Robles, em Corrientes, que mais do que a aliança da Argentina, pôs ao nosso lado o grande prestígio moral de Bartolomé Mitre.

Com estes dois erros estava perdido aos primeiros passos. O que houve depois foram cinco anos de memoráveis conflitos.

Não os descreveremos. Fora perdermos a linha essencial dos acontecimentos, que trilhamos.

*

Durante a campanha, assistiu-se na política interna do país a um espetáculo naturalmente previsto: a lenta ascensão do partido conservador, ostensivamente estimulada por D. Pedro II.

O governo, genuinamente liberal, de Francisco José Furtado, onde se destacavam Liberato Barroso, Dias Vieira e o general Beaurepaire Rohan, caíra (abril de 65), substituído sucessivamente, com aplausos de todos os reacionários, que compreendiam a necessidade de uma transição pouco violenta, pelos progressistas do marquês de Olinda e de Zacharias de Vasconcellos; até que, com a retirada deste último, em 16 de julho de 68, se definisse às claras a situação com a subida dos conservadores do visconde de Itaborahy, sendo dissolvida a Câmara, quase toda liberal, que o combatera para logo violentamente com a palavra vigorosa de José Bonifácio.

Ora, esta reviravolta, ilógica e contrastando com todos os sucessos anteriores, com um inesperado refluxo, fora determinada por um incidente mínimo que dispensa, pela eloquência do próprio enunciado, maiores comentários: o governo de Zacharias, e com ele a situação liberal, caíra em virtude de um pedido de demissão do general Caxias, então à frente do exército vitorioso, esclarecido por uma carta ao próprio ministro da Guerra, em que o velho militar, conservador da velha guarda, num espelhar de ressentimentos inexplicáveis, se declarava tacitamente incompatível com o gabinete “que visava quebrantar-lhe por diversos modos a força moral”.

Esta circunstância diz tudo. No opinar entre aquela autoridade militar e a legalmente superior, do ministro, a política do Imperador desvendava-se inteiramente, franca, sem que a tolhesse a circunstância de ter sido o ministério Zacharias o organizador da vitória na luta com o Paraguai, graças à atividade admirável dos ministros da Guerra e da Marinha, Ângelo Ferraz (barão de Uruguaiana) e Affonso Celso (visconde de Ouro Preto).

Mas não foi uma surpresa. A política nacional, iludida pela preocupação absorvente da campanha externa, desviara-se, transitoriamente, de seu rumo histórico.

Pronunciara-se já, em todos os tons, uma palavra, “imperialismo”, que a pouco e pouco ia imprimindo um traço cesariano no platônico poder moderador, e forjando a extravagância de uma autocracia constitucional.

Falseado de todo em todo o processo eleitoral, que, à breve revivescência impressa pelo marquês de Paraná, bastara para originar a vitória democrática em 1860, o poder dinástico, completando a sua faculdade privativa da escolha dos depositários do Poder Executivo com a cumplicidade das câmaras nomeadas, iniciava uma reação extemporânea, sem o traço superior oportuno das de 1837 e 1848.

Perceberam-na, desde 65, os próprios representantes dos partidos monárquicos; e o alinhar-se-lhes, ao acaso, as frases, equivale a retratar com fidelidade aquele período artificial e retrógrado, forrando-nos a uma missão de Tácito.

Souza Carvalho, naquele mesmo ano, dera o grito de alarma apelando para o paliativo de eleição direta.

Tito Franco indicava, logo depois, em 65, a causa única da decadência do país no “polichinelo eleitoral dançando segundo a fantasia de ministérios nomeados pelo Imperador”. Sayão Lobato, antigo reacionário, caracterizava em frases vigorosas o contraste da esplêndida arquitetura governamental com os vícios e abusos que a derrancavam. José de Alencar comprometia a sua próxima escolha para ministro, ferretoando com aticismo incomparável todo o regime. Para José Antonio Saraiva, o paraninfo da Liga de 1862, “o poder ditatorial da Coroa era uma verdade, que só é hoje desconhecida pelos néscios ou pelos subservientes aos interesses ilegítimos da Monarquia”. Um caráter austero, D. Manoel de Mascarenhas, pronunciara em pleno Senado uma frase cruel: “Morreram os costumes, o direito, a honra, a piedade, a fé, e aquilo que nunca volta quando se perde, o pudor”. Completou-o, no mesmo recinto, Silveira Lobo, deplorando a morte do sistema representativo e chegando, temerariamente, à conclusão de que “o vício não estava nos homens, mas sim nas suas instituições”. Para Francisco Octaviano, o império constitucional era a “última homenagem que a hipocrisia rendia ao século”, e a frase ficou célebre.

Tavares Bastos, o paladino da franquia do Amazonas, num quase ostracismo, na Europa, volvia o último brilho de seu grande espírito para a República, para a qual se dirigiria em breve, ostensivamente, um outro, José Maria do Amaral. O visconde de Camaragibe e o grupo conservador do Norte previam a desagregação do país na condenável concentração que se formava. Antonio Prado, João Mendes de Almeida, Duarte de Azevedo, conservadores do Sul, estadeavam em frases por igual amargas o desquerer pelo trono.

Por fim, alguém culminou sobre esta situação moral.

O conselheiro Nabuco de Araujo, enfeixando num plano superior todos os desânimos e todas as revoltas da nacionalidade traída, abalara o Senado com um sorites formidável, condensando em frase, que é um prodígio de síntese, toda a política do tempo:

“O poder moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. […] Aí está o sistema representativo do nosso país!”

E nesse torvelinho retalhado de desapontamentos, e tristezas, e desânimos, e revoltas — dois liberais, obscuros ainda, sem frases afogueadas, quase sem ruído, transpunham tranquilamente as fronteiras da República: Francisco Rangel Pestana e Henrique Limpo de Abreu.

De sorte que, ao irromper a reação monárquica, ressuscitando uma rígida figura de 37, antigo companheiro de Feijó, o visconde de Itaborahy, estava descoberta a estrada que a contornaria. Além disto, o Partido Liberal unira-se de chofre, como se o abalo da queda lhe anulasse as discórdias intestinas, em torno dos seus melhores representantes. E, delidos os ressentimentos pessoais da véspera, sopeado o radicalismo de muitos que com os Ottoni e Silveira Lobo propunham a eliminação do poder moderador, num perigoso avançar para a frente – firmou, no terreno partidário, sob as grandes responsabilidades de Zacharias, Theophilo Ottoni, Nabuco, Souza Franco, Octaviano e Paranaguá, o protesto do abstencionismo, ante a mentira eleitoral, e no terreno político o Manifesto de 1869, com estes cinco compromissos:

“a reforma eleitoral, única capaz de se opor ao absolutismo emergente;

“a reforma judiciária, desbancando a justiça russa instituída em 41 pelo Código de 3 de dezembro;

“a abolição do recrutamento e da Guarda Nacional, que abdicara o seu nobre papel da Regência e se tornara a guarda pretoriana das urnas;

“e, afinal, a emancipação dos escravos”.

Rematou com um dilema entre cujas pontas oscilaria dali por diante todo o edifício monárquico:

“Ou a Reforma

“Ou a Revolução”.

Mas opinava logo:

“A reforma para conjurar a revolução;

“A revolução como consequência necessária da natureza das coisas, da ausência do sistema representativo, do exclusivismo e oligarquia de um partido.

“Não há que hesitar na escolha:

“A Reforma! “E o país será salvo”.

Ora, agindo no centro dos acontecimentos em que eram autores e atores, sem a visão de conjunto permitida por um afastamento do cenário, os reformadores, ainda adictos ao trono pela força prodigiosa da inércia, não podiam perceber que aquela condicional era serôdia. As duas palavras não extremavam mais uma alternativa. Conjugavam-se: reforma e revolução…

Foi o que os acontecimentos depois revelaram.

O governo de Itaborahy, um anacronismo palmar, em cujo tirocínio de quase dois anos só ocorreu um sucesso apreciável, o termo da Guerra do Paraguai (1º de março de 70), completada pela missão do ministro dos Estrangeiros, visconde do Rio Branco, incumbido de organizar o governo nacional da República vencida – caiu por evitar o problema emancipador, apenso em aditivo proposto pelo senador Nabuco de Araujo à lei do orçamento daquele ano. Provocara ao mesmo tempo a formação da dissidência conservadora dirigida por Jeronymo Teixeira Júnior e composta de elementos — Antonio Ferreira Vianna, Junqueira, João Mendes de Almeida, Duarte de Azevedo e Perdigão Malheiro – que dariam em breve àquele partido o compromisso anômalo de se bater por todas as ideias liberais.

O marquês de S. Vicente (Pimenta Bueno), que lhe sucedeu, tentou uma conciliação impossível. Suspeito ao liberalismo, com refletir, numa passividade de espelho, o desejo claro manifestado sem rebuços pelo Imperador, de obstar a todo o transe quaisquer reformas no aparelho das eleições; suspeito à velha guarda conservadora já dirigida por Paulino de Souza (Andrade Figueira, José de Alencar, A. Prado e Francisco Belisario), pelos seus antigos projetos emancipadores discutidos no Conselho de Estado desde o ministério Zacharias – viu-se em situação instável. Não puderam firmá-lo ministros e partidários da estatura excepcional de Salles Torres Homem (visconde de Inhomerim), João Alfredo Correia de Oliveira, Gomes de Castro, Pereira Franco e Teixeira Júnior.

Abandonou o governo, legando-nos, como efeito único de sua passagem, a fundação do Conservatório Dramático…

É que a conciliação planeada – um outro “pensamento augusto” – impropriava-a não a falta de um marquês de Paraná, mas a transformação das coisas.

A monarquia preenchera o seu papel. As reformas liberais, erigindo-se para logo no pensamento da eleição direta e da emancipação dos escravos, embora acabassem por senhorear o espírito do próprio Imperador, iriam abalar toda a arquitetura monárquica. Percebera-o o visconde de Itaborahy, graças à visão exercitada em meio século de atividade política. Mortos Pedro de Araujo Lima e Euzebio de Queiroz, ele era o último dos velhos construtores do regímen. Conhecia todas as falhas e o gastamento inevitável do aparelho extraordinário dentro do qual se constituíra a nossa nacionalidade. E compreendia, avassalado de espantos, que ele não resistiria ao empuxo dos novos ideais. “Não queiramos aluir de chofre os fundamentos em que se acha assentada a associação brasileira!” exclamara no Parlamento, em 1871, com a intuição profunda de um vidente.

Com efeito, no seu ministério esboçou-se o declínio do Império.

Daí por diante o triunfo democrático não se manifestara mais, como em 62, por uma liga de liberalismo redivivo, atraindo ao seio os conservadores adiantados. Prosseguirá isolado. Destaca-se-lhe dos flancos um partido novo – o Republicano. Dificilmente se depara em nossa história acontecimento mais lógico.

O Manifesto de 3 de dezembro de 1870 fez-se, realmente, a segunda página do manifesto liberal de 1869.

Mas inclinada ao outro vértice do dilema.

O programa ali exposto foi o que devera ser — um libelo.

Fazia-se o processo de um reinado.

Em que pese aos exageros da metafísica política, que as debilita, aquelas linhas, as primeiras linhas escritas da história da República, grafavam um ditado antigo.

Entre as suas assinaturas – a de Joaquim Saldanha Marinho, nome já tradicional, as de Christiano Ottoni e Flavio Farnese, vindos das tendas liberais, as de Lafayette Rodrigues Pereira e Salvador de Mendonça, as de Quintino Bocayuva, Aristides Lobo e Francisco Rangel Pestana, que prosseguiriam até à vitória, e outras, que se apagariam na obscuridade – faltava uma que seria a mais expressiva de todas, a de Theophilo Ottoni, o agitador destemeroso de 62.

As linhas anteriores justificam o asserto.

O novo pensamento político, incaracterístico ou mal vinculado às tendências separatistas nas insurreições incoerentes que vieram até 1817; inoportuno em 1822 e 1831, por contrariar o interesse maior da unidade da pátria; repelido em 1837-1848 porque ainda se tornara indispensável a ação exclusiva da força centrípeta da realeza; evolvendo, imperceptível, e perdendo de ano em ano o caráter separatista com esposar os ressentimentos alastrados pelo país inteiro na trégua partidária de 1853-1858; aflorando, por fim mais íntegro, no violento revide de 1862, que uma guerra externa abrandou, desviando as preocupações nacionais: — depois dessas vicissitudes, em 1870, impunha-se. para vencer tinha a força das novas aspirações sociais tão vigorosas que se refletiam nos próprios partidos dinásticos, talhados em dissidências que se degladiavam, dessangrando-se, sem pouparem, dos golpes, como vimos, a própria figura imperial.

Invertiam-se evidentemente os papéis: o perigo separatista estava naquela concentração monárquica golpeada de crises. E o Partido Republicano crescendo desde logo, mercê dos contingentes sucessivos que lhe advinham de todos os desiludidos e de todos os desesperados dos dois outros – o que aconteceria até às vésperas do 15 de novembro – começava a esboçar, de fato, uma outra “conciliação”, mas, esta, agora, definitiva – a República.

Saíra, das divagações do Manifesto de 70, para o terreno da propaganda. Delineavam-se em S. Paulo, em linhas cada vez mais nítidas, até se imprimirem profundamente na nossa história política, os perfis de Américo Braziliense, Rangel Pestana, Américo de Campos, Campos Salles, Prudente de Moraes e Venancio Ayres.

Ao mesmo tempo, o povo tomava um lugar na representação nacional. Ouviu-se dentro da Câmara dos Deputados uma palavra estranha com a tonalidade imponente dessas vozes proféticas que anunciam a ruína dos impérios. Não era a dialética vibrátil de Zacharias, a argumentação fria, sulcada de súbitos lampejos de gênio, de Nabuco, a fluência cantante de José Bonifácio, ou o período artístico e sonoro de Salles Torres Homem, a que se havia afeiçoado o nosso Parlamento. Mas uma eloquência quase selvagem na sua esplêndida rudeza, na energia nunca vista com que reivindicava os direitos populares, e nas suas rebeldias da forma, e nas suas grandes temeridades de conceitos…

Silveira Martins desdobrava, improvisamente – passando fugaz, num fulgor instantâneo e desaparecendo – a sua estatura atlética, de Danton.

*

O governo do visconde do Rio Branco (7 de março de 71) sobreveio, então, à maneira de uma longa trégua civilizadora.

Antes diplomata que político, o grande homem fez o milagre de dirigir ultimamente o país até 1875, no mais dilatado ministério que tivemos.

E fê-lo, sobretudo, porque não representava realmente nenhum dos dois partidos monárquicos.

Demonstra-o o caráter antinômico, mas expressivo, de uma situação conservadora esgotando quase todo o programa liberal – e apelando, indistintamente, para a dissidência do seu próprio partido e para a boa vontade dos adversários, liberais ou republicanos.

Estes últimos podiam, com efeito, permanecer expectantes, como o fizeram.

O governo do estadista que tinha a investidura única da parte sã de sua terra – ia desbravar-lhes o caminho.

Desarraigou a escravidão do país pela lei de 28 de setembro de 1871, em que o secundou brilhantemente o ministro predestinado a vibrar o golpe decisivo de 13 de Maio, João Alfredo Correia de Oliveira; abateu pela reforma judiciária de 20 de setembro de 71 a lei tirânica de 3 de dezembro de 41, “a velha árvore de Bernardo de Vasconcellos e do visconde de Uruguai, a cuja sombra cresceu o império” [ 4 ] e nisto o coadjuvou Sayão Lobato, penitenciando-se do aferro com que outrora se ajustara àquele tremendo aparelho de servidão civil; sulcou a fundo a ditadura espiritual, que se esboçava, reprimindo severamente, até ao extremo da prisão, os dois bispos de Olinda e Pará – e para a empresa perigosa que ia divorciar a causa monárquica da Igreja, o Partido Republicano armou-o com o montante formidável de Ganganelli (Saldanha Marinho).

Dissolveu em 1872 a Câmara em que preponderava a massa emperrada e retrógrada de seu próprio partido, dirigida por Paulino de Souza Júnior, que seria até ao fim do Império a sombra recalcitrante de Itaborahy. – Neste ato parecia provocar um rompimento com aquele, onde sobressaíam Antonio Ferreira Vianna, Domingos de Andrade Figueira, Francisco Belisario, Antonio Prado e José de Alencar.

Mas não rompia; avantajava-se.

Era uma translação para o futuro.

Refundiu a instrução pública, profissional e superior, criando em algumas escolas (a Politécnica e Militar, recém-formadas pela divisão da antiga Escola Central) cadeiras especiais, acompanhando ao ascender contínuo das ciências; e fundou a de Minas. Iniciou a tarefa complexa do levantamento da nossa carta itinerária e geológica, que seria abandonada pelos governos que lhe sucederam. Realizou a primeira estatística geral do Brasil. Atendeu às indicações de todos os competentes: André Rebouças demonstrara as vantagens da subvenção ou garantia de juros às companhias de estradas de ferro, e a lei de 24 de setembro de 1873 organizou-se, retravando-se a campanha contra um velho inimigo – o deserto. E as linhas férreas que em 71 atingiam a 732 km,174 subiram a 1.500 km em tráfego, em 75; além de 8.180 em construção, ou estudos, e 1.700 concedidos, recebendo todas um impulso que nunca mais parou.

Vincularam-se as províncias pelo telégrafo submarino costeiro, outro elo iludindo a vastidão do território; enquanto por outro lado se expandiram as linhas telegráficas terrestres (2.081 km em 71, 9.281 em 75). Lançou-se o primeiro cabo transatlântico; e a 24 de junho de 1874 estávamos a alguns minutos da civilização, recebendo-se o primeiro telegrama da Europa. Planeou-se garantir o Rio Grande contra uma vizinhança agitada, com as primeiras estradas de ferro estratégicas.

Subiu a média da imigração, quadruplicada, a 30.500 trabalhadores por ano. Por fim, as curvas no diagrama do nosso comércio geral direto de de exportação, deprimidas ambas há longo tempo, aprumaram-se em 1873 a um ponto a que só chegaram de novo em 1879, acontecendo o mesmo com as rendas gerais. E o câmbio, que caíra em 1868 a 14 e estacionara em 1870 em 23½, elevou-se numa continuidade invariável, chegando ao par em 1873; e em 1875 à altura que nunca mais alcançaria, 28 3/8.

Na política exterior atenuaram-se as consequências prejudiciais do Tratado de Aliança com o Uruguai e a República Argentina (1º de maio de 1865), que dava a parte do leão à última nos efeitos da campanha do Paraguai – firmando-se a linha do Pilcomayo, que ao mesmo passo resguardava o território da nação vencida e ressalvava os direitos da Bolívia.

*

Depois do ministério Rio Branco, desenhou-se pela terceira vez no cenário uma dessas “épocas sem fisionomia”, pressagas de transformações profundas. Mas, evidentemente, estas se efetuariam fora do aparelho monárquico.

Dizia-o o curso impressionador da história.

As nossas fases sociais tinham-se desdobrado com um ritmo perfeito, onde a dispersão e convergência sucessivas e alternadas dos acontecimentos denunciavam ao mais incurioso espírito o rigorismo inflexível de uma lei universal da vida.

A princípio: o agregado difuso, a nebulosa humana, desprendida do colonato, cindida de ideais revolucionários em uma larga dissipação de movimento, refletindo, no período de 1808-1831, o processus geral de todas as existências orgânicas. Depois, de 1831 a 1837: a delimitação dos lutadores nos três partidos definidos da Regência, traduzindo-se a tendência para uma fase mais definida, a par de uma distribuição mais íntegra e heterogênea do prestígio governamental, até então enfeixado na autoridade caprichosa ou inconstante de um príncipe. Subsecutivamente, com o crescer da reação monárquica, de 37, balanceando-se a simplicidade maior do governo com a complexidade maior da sociedade, evidenciou-se, iniludível, a refletir-se tangivelmente no binário conservador e liberal, a marca gradual para o equilíbrio, das duas forças coexistentes, democrática e reacionária, que persistiam desde a Independência. Por fim, em 1848, e sobretudo com o marquês de Paraná, na quadra que uma intuição de gênio resumiu na palavra conciliação: a harmonia completa dos lutadores, ultimando-se inteiramente a admirável evolução monárquica, no equilíbrio dos partidos.

O Império Constitucional atingira, de fato, o termo de suas transformações; e, de acordo com a própria lei evolutiva que o constituíra, iria desintegrar-se submetendo-se por sua vez ao meio, que até então dominara, e aos excessos de movimento que este adquirira.

Ora, esta dissolução é tão demonstrável, que até teve, e era necessário que o tivesse, o seu primeiro sintoma no primeiro retratar com a fidelidade de um decalque os estádios anteriores. Assim, a Liga de 1862, surgindo do excesso do movimento do meio, nas eleições de 1860 – e logo depois dela o cisma dos “progressistas” e “históricos”, diante dos “conservadores” transformados, reproduziram, sucessivamente e numa ordem inversa, os tumultos desordenados dos primeiros dias das lutas da liberdade e a tríplice fisionomia política da Regência…

Mas a nova concentração de forças e o novo equilíbrio já não se poderia fazer em torno do regímen imperial. Os seus mais eminentes sustentáculos justapor-se-iam, sem o pensarem e sem o quererem, à nova diretriz dos acontecimentos – destacando-se, como expressivo exemplo, o próprio ministério Rio Branco, tão acentuadamente demolidor e reconstrutor, ao mesmo passo que com as suas medidas administrativas memoráveis derivara para o campo das agitações políticas as energias renascentes da sociedade.

Depois dele – a atitude curiosíssima do Partido Liberal em todo o período que vai de 1878 a 1886 – de Cansansão de Sinimbu ao último ministério do conselheiro Saraiva – já agitando esterilmente, como reforma única, a pseudorreforma liberal da eleição direta e censitária, já estonteando a opinião com os seus vários governos incoerentes sustentados antilogicamente com o amparo do elemento conservador, e caindo todos batidos por violentas moções de desconfiança dos próprios liberais – seria bastante incisiva no delatar o artificialismo de um regímen teoricamente extinto, e implicativo das novas aspirações sociais.

É, porém, uma história recente demais. Acotovelam-se, vivos ainda, alguns no fastígio da República, outros, na glorificação de um exílio virtual imposto pela inflexibilidade de suas convicções – os seus principais atores.

Como fato predominante dessa política artificial, espelhada no invariável contraste entre os velhos princípios que a alentavam e a situação verdadeira do país, o historiador futuro comentará, sorrindo, a abdicação graciosa e belíssima de 13 de Maio de 1888, em que o ministério conservador do conselheiro João Alfredo cortou as últimas amarras do Império, abandonando-o na caudal irresistível das ideias republicanas.

*

Depois disto, a República não podia ser uma surpresa, inexplicável estribilho dos que enfermam da nostalgia desse passado brilhante, que também veneramos porque é toda a justificativa do nosso regímen atual.

Vimos, nas várias fases, a traços largos esboçadas, o constante despontar, cair e renascer de uma aspiração dispersa em movimentos isolados; suplantada a princípio pelo pensamento primordial da autonomia política, depois pela preocupação superior da unidade nacional. Impertinente em 1822, inoportuna em 1831, abortícia em 1848, era-o a República, sobretudo porque se não podia inverter a série natural da evolução humana.

Aspiração política, requeria que lhe propiciasse o advento o desenvolvimento social.

A sociedade não a repelia; prorrogava-a.

E a partir de 1875 começou a incorporá-la.

Mudáramos muito.

Diante da grande maioria indiferente e amorfa que ainda existe em virtude da lei universal da persistência – como um prolongamento da colônia – formando o caput mortuum do grande organismo deste país, só se alevantara até 1875, através de agitações exclusivamente políticas, o espírito crítico da metafísica revolucionária de que é impecável modelo o próprio Manifesto Republicano de 1870. Mas este, que ilusoriamente preside o ascender crescente do novo ideal político até 15 de novembro de 89, resvalara a segundo plano.

A propaganda republicana (evitamos descrevê-la, inaptos para sintetizá-la, em meia dúzia de linhas, com o inconveniente de citar-lhe os protagonistas, na maioria ainda vivos) fazia-se por si mesma. Atribuir-lhe o sucesso feliz à palavra dos tribunos, ao jornalismo doutrinário ou agitador, ao entusiasmo de uma mocidade robusta, à indisciplina militar, e por fim ao levante de um exército que, nada mais foi que a ordenança passiva da nação em marcha – equivale a atribuir a maré montante às vagas impetuosas que ela alteia.

Porque, na realidade, o que houve foi a transfiguração de uma sociedade em que penetrava pela primeira vez o impulso tonificador da filosofia contemporânea. E esta, certo, não a vamos buscar nesse tão malsinado e incompreendido positivismo, que aí está sem a influência que se lhe empresta, imóvel, cristalizado na alma profundamente religiosa e incorruptível de Teixeira Mendes.

As novas correntes, forças conjugadas de todos os princípios e de todas as escolas – do comtismo ortodoxo ao positivismo desafogado de Littré, das conclusões restritas de Darwin às generalizações ousadas de Spencer – o que nos trouxeram, de fato, não foram os seus princípios abstratos, ou leis incompreensíveis à grande maioria, mas as grandes conquistas liberais do nosso século; e estas compondo-se com uma aspiração antiga e não encontrando entre nós arraigadas tradições monárquicas, removeram, naturalmente, sem ruído – no espaço de uma manhã – um trono que encontraram…

Este abalara-se de há muito. O nobre espirito do homem que o ocupava com a sua preocupação absorvente de perquirir ansiosamente as coisas da ciência, com o seu anelar o título de filósofo, com o ansiar pela camaradagem nobilitadora dos pensadores de seu tempo, a sua indiferença superior pela força organizada, que lhe escorava o império, com o estimular os decretos libertadores, que lhe destruíram o apoio da propriedade territorial – tornou-se no termo da vida o exemplo vivo da transmutação de seu próprio país.

É natural que fosse o seu último ministério conservador que realizasse, a 13 de Maio de 1888, a mais alta das reformas liberais; e fosse o seu último ministério liberal que planeasse reviver as energias conservadoras das tradições monárquicas desfalecidas.

Não tinham mais significação os nomes dos partidos. Existiam pela força da inércia. Tendo-se prendido ao curso irreprimível da propaganda abolicionista, iniciada ativamente em 1884, a Monarquia obtivera uma estabilidade momentânea, porque ia derivando ao som da correnteza democrática.

De sorte que, em 1889, quando o seu último ministério liberal tentou a última reação conservadora, ela caiu – porque não podia mais parar.

O 3º Reinado, esteado na esplêndida envergadura do visconde de Ouro Preto, lançou-se como uma represa na torrente.

Foi o que se viu a 15 de novembro de 1889: uma parada repentina e uma sublevação; um movimento refreado de golpe e transformando-se, por um princípio universal, em força; e o desfecho feliz de uma revolta.

Porque a revolução já estava feita.

*

O nosso século XIX acaba naquela data.

Não devemos constringi-lo no inexpressivo de uma exação numérica.

Teve um remate bastante incisivo para caracterizar uma época, porque a República, de fato, desvenda uma outra era. Recente ainda, não há lobrigar-se-lhe o determinismo próprio.

Todos os sucessos da sua brevíssima vida de dez anos não ressaltam ainda na escala superior da História.

Cerremos esta página.

[ 1 ] Diante do quadro lastimável da política nacional, têm ainda hoje a mais perfeita oportunidade as palavras austeras do grande naturalista, em 32: “Les Brésiliens […] ne sauraient établir chez eux le système fédéral, sans commencer par rompre les faibles liens qui les unissent encore. Impatiens de toute supériorité, plusieurs [des] chefs hautains de ces patriarchies aristocratiques dont le Brésil est couvert, appellent sans doute le fédéralisme de tous les vœux; mais que les brésiliens se tiennent en garde contre une déception qui les conduirait à l’anarchie et aux vexations d’une foule de petit tyrans mille fois plus insupportable que ne l’est un seul despote”.
[ 2 ] Joaquim Nabuco, Um estadista do Imperio, t. I.
[ 3 ] Joaquim Nabuco – Um estadista do Imperio.
[ 4 ] Conselheiro Nabuco de Araujo.
CUNHA, Euclides da. Da Independência à República (Esboço político). In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. À margem da história. Parte III, Esboço de História Política. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/a-margem-da-historia/da-independencia-a-republica. Acesso em: [data]. Publicado originalmente no O Estado de S. Paulo, São Paulo, 31 jan. 1909, com o título “O Brasil no Século XIX”.