A Notícia, Rio de Janeiro, 16-17 de Agosto de 1909
Uma tragédia
HOMICÍDO DO DR. EUCLYDES DA CUNHA
A ACADEMIA DE LETRAS FAZ O ENTERRO
NO SILOGEU
OS DOIS IRMÃOS FERIDOS
NO NECROTÉRIO
OS FUNERAIS
O escritor. – Poucos escritores nossos terão surgido com tão grande sucesso, com tantos aplausos como esse que ontem a fatalidade arrancou à atividade infatigável do seu brilhante talento. Ele em verdade trazia já tão definida a sua individualidade artística, e essa individualidade era tão admiravelmente fadada, que logo se impôs à admiração de todos. Não era um escritor a fazer-se, mas um escritor já feito e que só poderia mais tarde apenas aperfeiçoar-se. Sertões afirmaram-no imediatamente como um prodigioso pintor da nossa vida e da nossa alma indígena.
São quadros de um admirável arrojo, traçados com uma espécie de grandiosidade épica, num estilo em que as palavras se torcem, se projetam, esfuziam, cantam ou deprecam como essas tempestades que o sertão conhece como essas tragédias em que o sertanejo muitas vezes é protagonista. Euclydes da Cunha era bem no seu estilo, o inverso da sua pessoa. Pequeno, magro, com uma grande timidez a fazê-lo encolhido, ninguém o diria o escritor suntuoso que era, louco da pompa e da grandiosidade, amando as palavras reboantes, os adjetivos ruidosos ou enfestoados, as imagens solenes e imponentes. Mesmo nos seus trabalhos de feição científica ou histórica essa preocupação aparece, insistente apresentando sempre o poeta através do cientista.
Essa tendência do seu espírito está afinal de acordo com o que ele viu e cantou. A vida do sertão, as questões de limites em regiões onde a natureza chega a ser assombrosa na sua grandeza, exigiam um espírito que bem traduzisse essa grandiosidade quase infinita num estilo que desse a impressão dessas cordilheiras que se estendem por muitos graus, dessas florestas que se confundem nas nuvens, dessas caudais que descem rugindo em cachoeiras imensas, desses céus que ardem e muitas vezes se rasgam em tormentas formidáveis.
As suas imagens são assim grandiosas e surgem na sua forma pomposa e opulenta como os montes surgem das nossas florestas erguendo os seus picos rochosos à glória do sol. Em meio dessa floresta as florinhas silvestres quase não têm atmosfera para respirar e perdem-se sufocadas pela vegetação superior, e do alto de tais cordilheiras, não é possível avistar-se os pequenos acidentes dos vales imensos; no fragor que as águas fazem desmpenhando-se como prata fundida ao sol, não se podem ouvir essas pequenas vozes que Flaubert, por exemplo, punha nas suas pomposas sinfonias fazendo sentir-se em contraste com as grandes harmonias, o rumor de uma folha seca que se desprende para rolar sobre as outras folhas já tombadas. O detalhe não o interessa muito porque a sua visão é imensa e abrange largos horizontes. E sobretudo sente-se na sua obra a palpitação de uma alma bem nossa, desabrochada numa natureza que só tem grandezas e maravilhas imprevistas, alma que se dilata no sonho e na contemplação aquecendo a imaginação como a luz intensa do nosso sol. Os nossos sertões estão no seu primeiro livro com tudo que tem de grandioso e essa alma arrebatada e estuante como as cachoeiras e como os vendavais que atravessam as nossas florestas, aparece ainda no estilo alcandorado e largo de Peru versus Bolívia, uma obra de ciência e história e ao mesmo tempo uma obra de arte. O nosso país perde em Euclydes da Cunha um escritor precioso pela sua feição genuinamente nacional.
O Dr. Euclydes Cunha nasceu em Cantagalo, Estado do Rio de Janeiro em 1868. Fez os seus estudos nesta capital, entrando mais tarde para a Escola Militar, na Praia Vermelha. Era filho de Manuel Rodrigues da Cunha e D. Eudóxia Pimentel da Cunha; casado há 17 anos com Dona D. Anna Solon Cunha, filha do falecido general Solon. Deixa quatro filhos: Solon, de 16 anos; Euclydes, de 14; Affonso, de 8 e Luiz, de 18 meses.
Era membro da Academia de Letras, ocupando a cadeira deixada por Valentim Magalhães.
Da Escola Militar desligou-se por ocasião da visita do ministro Thomaz Coelho, devido aos seus ardentes sentimentos de republicano, sendo então preso e demitindo-se do exército. Uma vez proclamada a República, Euclides Cunha foi reintegrado nas fileiras do exército, formando-se mais tarde em engenharia militar.
Mais tarde, já oficial, pediu exoneração do Exército, indo para S. Paulo onde fez diversos trabalhos de engenharia, e acompanhando mais tarde a expedição a Canudos como representante de um jornal daquela capital. De volta escreveu Os Sertões, livro que o consagrou como grande escritor nacional.
Era também sócio do Instituto Histórico e auxiliar técnico do barão do Rio Branco, no estudo das questões de fronteiras.
Nos últimos sete anos, Euclides Cunha publicou as seguintes obras:
Os Sertões, em 1902; Contrastes e Confrontos, em 1907; Peru versus Bolívia, em 1907; Martin Garcia, em 1908.
Em 1906 publicou também o Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purús, tendo feito em 5 de abril de 1905 o reconhecimento do Alto Purús, sendo chefe da Comissão Brasileira.
Deixa ainda um volume no prelo À Margem da História.
A tragédia de ontem está no domínio público, em todos os seus detalhes.
O Dr. Euclydes Cunha, que pelos seus esforçados trabalhos intelectuais se encontrava como que atacado de uma surmenage, ouvindo pessoas de sua casa fazer referências menos claras sobre sua senhora, que se achava passando dias em casa de sua mãe, tomou uma resolução sinistra, e partiu para a Piedade, em procura de dois moços, irmãos, que haviam sido seus protegidos, e uma vez ali, atirou de revólver contra os mesmos de surpresa. Um deles ficou gravemente ferido e o outro levemente.
O que mais grave se achava, entretanto, armando-se de um revólver, atirou contra o Dr. Euclydes Cunha, que caiu no jardim da casa, para ir morrer momentos depois, sobre uma cama, naquela mesma casa para onde fôra transportado pelos dois feridos, Dilermando e Dinorah de Assis.
D. Anna da Cunha, a esposa do Dr. Euclydes Cunha, que havia sido avisada na véspera pelo seu filho Solon, de 16 anos, do estado superexcitado de seu marido, tem saído acompanhada desse mesmo filho, e levando outro seu filho Luiz, de pouco mais de um ano de idade, dirigindo-se também à Piedade, no intuito de evitar o desastre, afastando os dois irmãos da casa.
A pouca distância, desta, ouve-se detonações.
— Tiros! Diz o jovem Solon.
— Chegamos tarde, meu Deus!
O jovem Solon deixa sua mãe com seu irmãozinho e corre para a casa dos irmãos Assis.
Entra e encontra a desoladora cena.
Os dois feridos, e ferido também a morrer, seu pai!
Momentos depois, entra D. Anna Cunha e a mesma cena acabrunhadora se desenrola.
Uma grande desgraça!
Os dois irmãos, feridos, interrogam aflitos o Dr. Euclydes da Cunha.
O querido homem de letras pôde ainda dizer — Perdôo…
E morre.
Dinorah de Assis. – Dos dois irmãos envolvidos tragicamente nos lutuosos acontecimentos de ontem, Dinorah de Assis, o mais moço, de 19 anos, foi como se sabe, recolhido à Santa Casa.
Instalaram-no num dos ângulos da 18ª enfermaria, separando-o dos demais enfermos por um biombo.
O seu ferimento, de aparência leve, permitiu que ele por si se conduzisse para ali.
Passou a noite relativamente bem, parecendo mais impressionado pelos tristes sucessos, que abatido por padecimentos físicos.
Muito cedo pedia os jornais do dia, lendo quase todos, não todas as narrativas do caso, ou mais propriamente do caso do seu irmão Dilermando.
Às 9 horas da manhã, compareceu na 18ª enfermaria o Dr. Rodrigues Caó, médico da polícia, que foi fazer o corpo de delito no ferido.
Verificou o Dr. Caó, que o projétil do revólver havia atingido o moço, na parte superior da região dorsal, ao nível da espinha da omoplata esquerda, tendo-se alojado na camada muscular.
O jovem Dinorah de Assis, só esperava o corpo de delito para pedir alta, afim de ir para o hospital central do Exército, onde pretende ficar ao lado de seu irmão Dilermando, cujo estado é grave.
Do nosso correspondente em Buenos Aires recebemos o seguinte telegrama:
Buenos Aires, 16. – O jornal La Nacion publica na sua edição de hoje extenso e elogioso necrológio do escritor brasileiro Sr. Euclydes da Cunha, lamentando o seu trágico fim.
No Hospital Central do Exército. – Dilermando Cândido de Assis está recolhido à 1ª enfermaria do Hospital Central do Exército, destinada aos oficiais.
O enfermo apresenta três ferimentos, um na virilha esquerda com dilaceração dos tecidos internos, um no peito e outro no pulso direito.
Dilermando passou a noite um pouco agitado não conciliando o sono.
Hoje, às 10 ½ horas, foi conduzido do seu leito para o pavilhão de eletricidade afim de ali ser submetido à aplicação de raios X para a descoberta dos projéteis.
Na sala de radiografia foi encontrá-lo um nosso companheiro, submetido ao processo radiográfico.
O enfermo, que hoje será submetido à corpo de delito, manifesta alguma dispnéia e tem escarros de sangue, parecendo que uma das balas foi alojar-se-lhe no pulmão direito.
O que diz Dilermando. – Logo que terminou a operação da aplicação dos raios X na virilha esquerda do ferido, o médico encarregado desse serviço deu-lhe um pequeno descanso para depois prosseguir nos trabalhos.
Nesse momento o nosso companheiro pediu-lhe que dissesse alguma coisa sobre a dolorosa tragédia.
Dilermando levantando a cabeça fez um esforço, como quem queria sentar-se, mas imediatamente voltou à posição primitiva e com um sorriso que traduziu toda a sua dor exclamou:
— Desejava mil vezes ter morrido em lugar de Euclydes. Há coisa de dois anos eu lhe escrevi uma carta pedindo para que explicasse sua indiferença a meu respeito, pois eu estava inocente. O Euclydes respondeu tranqüilizando-me e parecia tudo terminado quando surgiram algumas cartas anônimas e por fim a intriga até de parentes.
Nesse momento chegou em companhia do coronel Luiz Barbedo, diretor da fábrica de cartuchos, o aspirante Mário Barbedo.
Ao vê-lo, Dilermando comoveu-se e ia chorar, vindo porém logo a reação da sua têmpera forte e ele prosseguiu:
— Ontem eu estava deitado quando ouvi a voz de Euclydes que perguntou por mim a meu irmão. Levantei-me e ia vestir a túnica quando senti passos apressados e o Euclydes gritando: “onde está o Dilermando, quero matá-lo ou morrer” e ato contínuo a porta do meu quarto abriu-se alvejando-me Euclydes com os primeiros tiros.
Ferido procurei um revólver para amedrontar o meu agressor.
Recebi então mais uma bala que atravessando a porta veio cravar-se-me no peito. Ainda assim tive calma e dei dois tiros para o soalho quando vi, porém, que Euclydes atirava também a meu irmão, procurei alvejar Euclydes.
Quando vi Euclydes caído mesmo com o peito a deitar sangue procurei socorre-lo perguntando porque aquela loucura, Euclydes então disse: “honra” e outra palavra que me pareceu perdoe ou perdôo.
No Necrotério. – Na última mesa, à esquerda, do Necrotério, o cadáver do distinto homem de letras foi durante a noite velado por diversos amigos, entre os quais os seus parentes, Luiz Nestor Augusto da Cunha, Dr. Arnaldo Pimenta da Cunha, e coronel Ernesto Senna.
O corpo de Euclides da Cunha, foi nu da cintura para cima, para que se conhecesse da natureza dos ferimentos das balas, que o atingiram.
Estava sobre a manta vermelha que lhe serviu de transporte para a maca.
Quatro velas de cera ardiam aos lados.
Muito cedo começava a romaria de amigos do morto, apreciadores do literato e curiosos.
Davam as providências para o enterramento os Srs. Nestor Augusto da Cunha e engenheiro Arnaldo Pimenta da Cunha, primos do morto.
A autópsia
Cerca de 9 horas da manhã, compareceu no Necrotério o Dr. Afrânio Peixoto, chefe do gabinete médico-legal, para proceder a autópsia no cadáver do Dr. Euclides da Cunha.
Já aguardavam nesse estabelecimento a presença do Dr. Afrânio Peixoto os Drs. Diógenes Sampaio, Alfredo de Andrade, Rodrigues Caó e Cunha Cruz.
O corpo foi retirado do caixão mortuário e carregado até à mesa apropriada existente na sala das autópsias, sendo despojado das vestes começando a autópsia às 10 horas da manhã, pelos Drs. Afrânio Peixoto e Diógenes Sampaio, tendo como assistentes os Drs. Cunha Cruz, Rodrigues Caó e Alfredo Andrade.
Auxiliaram: o escriturário Roberto Bruce e servente Armando Soares.
Começou o trabalho pela INSPEÇÃO EXTERNA:
O cadáver é de um homem branco, medindo 1m.65 de comprimento, vestindo calça de casemira escura, ceroula branca de linho, desabotoada em parte e descida; camisa de linho branco e outra interna de flanela, ambas manchadas de sangue e apresentando ambas solução de continuidade de 21 milímetros de extensão, e correspondendo a uma ferida na região infra clavicular direita.
No dorso e à direita, estas vestes apresentam dois rasgões embebidos de sangue e correspondendo a dois ferimentos situados aí na pele.
O cadáver está em estado de rigidez, de olhos e boca entreabertos, não se escapando líquido algum das cavidades nasais.
Livores de hipóstase no dorso e partes declives.
Apresenta: na região infra-clavicular direita 11 centímetros de linha média e 10 centímetros da curva deltoidiana, um ferimento circular, de bordas enegrecidas e equimosadas medindo 2 centímetros em seu maior diâmetro, apresentando os caracteres das feridas por arma de fogo; na parte média do braço, na região antero-interna e postero-externa esquerda, dois ferimentos também de bordas enegrecidas e auréola equiomótica em torno, medindo um 7 milímetros e outro 12 milímetros, afetando a forma de orifício de entrada e de saída de um projétil, correspondendo-se pela sondagem.
O braço esquerdo está encurtado e deformado pela fratura do úmero com cavalgamento, crepitação, esquirolas e fragmentos ósseos.
No punho, à direita, uma ferida de bordos enegrecidos, medindo nove milímetros, correspondendo, na face palmar da mão, a uma outra ferida, de lábios revirados para fora e de um centímetro de extensão.
No dorso, à direita, na parte superior da região costal, duas feridas: uma de bordas enegrecidas e medindo 15 milímetros em seu maior diâmetro, outra de lábios revirados para fora, correspondendo-se pela sondagem um trajeto de 55 milímetros, com o orifício de entrada e saída de um projétil.
Seguiu-se a INSPEÇÃO INTERNA, CRÂNIO E ENCÉFALO.
A calote resistente, meninges duras, pouco aderentes, apresentando-se bastante desenvolvidas as granulações de Pachione.
Placas leitosas de lepton-meningite. Ligeiro edema nas imediações das circunvoluções rolândicas. O cérebro pesando 1.515 gramas e foi retirado para ulteriores investigações. Meninges aderentes à base do crânio.
CAVIDADE TORÁCICA E ABDOMINAL: Diafragma. Corresponde ao sexto espaço intercostal. Nenhum líquido anormal na cavidade abdominal. Aberto o tórax encontra-se, na cavidade pleural direita, um derrame sanguinolento de 1.300 gramas de sangue escuro e fluído.
Correspondendo à ferida externa, na região infra-clavicular, encontram-se em todos os tecidos moles um trajeto, de bordos equimosados e penetrando na cavidade, lesando o pulmão no lobo superior através de toda a sua massa. Pulmão direito apresenta numerosas aderências na parte superior e em sua massa nódulos numerosos. O pulmão esquerdo igualmente aderente na parte superior e inferior do lobo superior. Na cavidade torácica esquerda existem 50 gramas de líquido sanguinolento.
O pericárdio contém cerca de 20 gramas de líquido citrino. O coração vazio, flácido, com ligeira sobrecarga gordurosa; cavidades esquerdas igualmente vazias.
Válvulas arteriais suficientes. Placas de Ateroma na aorta. Coronárias vazias e permeáveis. O pulmão direito apresentando numerosas sínfises na parte superior e dorsal.
O orifício externo já mencionado corresponde a um interno e inferior indo ter após o trajeto de 9 centímetros a uma lesão da 7ª vértebra dorsal, em cujo corpo penetrou o projétil, fraturando a costela direita correspondente e achando-se encravado na lâmina vertebral.
É uma bala de chumbo, das de revólver, deformada na ponta, pesando 10 gramas e medindo 17 milímetros de comprimento sobre 9 milímetros na base.
Nódulos e núcleos caseosos na massa do pulmão direito. O pulmão esquerdo grande, congesto e engorgitado nas partes declives, arejado, mas apresentando focos congestivos na sua parte posterior; nódulos caseosos menos numerosos.
ABDÔMEN. – O fígado grande, apresentando-se à seção, amarelado, havendo a espaços ligeira hipertrofia do tecido conjuntivo.
O baço pequeno, retraído, exangue ao corte e se apresentando com ligeira hipertrofia do tecido conjuntivo.
O rim esquerdo de tamanho regular, cápsula aderente a espaços, nada apresentando de anormal.
O rim direito com a cápsula aderente a espaços, apresentando anemeado à seção.
O estômago grande cheio de gases contendo pequena quantidade de substância semi-líquida em digestão.
Intestino contendo líquido e gases a bexiga cheia de urina amarela clara.
A causa mortis – Hemorragia do pulmão direito, devido a ferimento por arma de fogo atravessando de um lado a outro o órgão.
Além desta, causa da morte, o cadáver apresenta três outras lesões por arma de fogo.
Terminada a autópsia, às 12 e 10 da tarde, foi o cadáver recomposto, pelo servente Armando, e logo após transportando para uma padiola.
Afrânio Peixoto e Diógenes Sampaio, vestiram o cadáver com um terno de casaca preta, camisa de linho branco, meias de seda preta e lhe calçaram sapatos de verniz, findo o que foi o corpo encerrado em um caixão de 1ª classe.
Os funerais. – Depois de autopsiado, o corpo de Euclydes Cunha será transportado para o Silogeu Brasileiro, na praia da Lapa, onde ficará em câmara ardente, até 5 horas da tarde, quando será feito o enterramento, no cemitério de S. João Baptista, pela Academia de Letras, da qual era membro o ilustre morto.
A trasladação do corpo. – Às 12 e 40 da tarde saiu o corpo do Necrotério para a Academia de Letras, sendo transportado em um coche fúnebre.
Por essa ocasião pegaram nas alças do caixão os Drs. Afrânio Peixoto, José Veríssimo, Leôncio Corrêa e alunos do Colégio Pedro II.
NO SENADO – O Sr. João Luiz Alves, fez o elogio fúnebre do ilustre morto, requerendo que fosse inserido na ata um voto de profundo pesar pelo seu falecimento, o que foi aprovado unanimemente.
No Silogeu – O coche fúnebre foi acompanhado, a pé por muitas pessoas, entre elas os Srs. general Dantas Barreto e coronel Ernesto Senna, pelo Instituto Histórico; Dr. José Veríssimo, comendador Léo d’Affonseca, Carlos de Araújo, desembargador Gomes, Presidente do Tribunal de Relação do Estado do Rio de Janeiro, Drs. Nestor e Arnaldo da Cunha, Dr. Afrânio Peixoto, Dr. James Darcy, Solon da Cunha, filho do ilustre morto.
O caixão foi depositado na sala da secretaria do Silogeu, armada em câmara ardente.
Muitas coroas já se viam ali, àquela hora.
O Sr. Manuel Bernardez dirigiu ao Sr. barão do Rio Branco o seguinte telegrama:
“Reciba mis pesames por la imensa perda que acaba de sufrir, com la muerte del altissimo pensador Euclydes Cunha, el pensamiento sul-americano.”
— A viúva do general Solon, sogra do ilustre morto, levou um grande choque ao receber a triste notícia da tragédia de ontem.
Seus filhos, por medida de precaução, visto ela estar bastante enferma, tomaram providências no sentido de deixá-la na ignorância dos pormenores do fato.
Pela manhã muitas pessoas foram visitar a veneranda senhora, mas não conseguiram falar-lhe.
— O Dr. Cláudio Pinilla, ministro da Bolívia, enviou uma linda coroa de flores naturais, com a seguinte inscrição:
“La legación de Bolívia, al briliante literato y publicista Dr. Euclydes Cunha”.
*
Telegramas
S. Paulo, 16 – A imprensa publica sentidos artigos, a propósito do Dr. Euclides Cunha, narrando a tragédia de ontem.
A Notícia, Rio de Janeiro, 17-18 de Agosto de 1909
Uma tragédia
O enterramento – O inquérito
A tragédia da Piedade terminou ontem a sua primeira parte, com o enterramento do ilustre escritor Euclydes Cunha, no carneiro n. 3026, no cemitério de S. João Baptista.
Agora, a segunda parte, que consta do inquérito policial, começa a merecer maior atenção.
O Dr. Pedro de Alcântara, delegado do 20º distrito, tomou ontem diversos depoimentos.
As declarações de D. Anna Solon da Cunha viúva do Dr. Euclydes Cunha, são muito longas.
Também são longos os depoimentos das irmãs DD. Angélica e Lucinda Ratto, tias de Dilermando e Dinorah de Assis, e primas, portanto, de D. Anna Cunha.
Depôs também o jovem Mário Brujo Móra, morador na casa vizinha da que serviu de teatro à tragédia e que declarou o que já se sabe sobre o caso, dizendo mais que era a primeira vez que ali tinha visto D. Anna Cunha.
Hoje pela manhã, prestou declarações a velha parda Anna de Almeida, que era quem se encarregava da limpeza da casa dos irmãos Assis, assim como do tratamento das suas criações e do jardinzinho.
Todos os depoimentos estão sendo tomados em segredo.
No hospital Central – Continua sendo satisfatório o estado do aspirante a oficial Dilermando de Assis, que passou a noite sem novidade tendo repousado um pouco e receitado algum alimento, sem nenhuma alteração no seu estado geral.
Hoje pela manhã esse militar esteve conversando com o Dr. Paula Guimarães, mostrando-se acabrunhado às vezes e de outras animado, bem disposto e loquaz.
Muitas têm sido as visitas recebidas pelo enfermo.
É provável que ainda esta semana seja o enfermo operado para a extração dos projéteis.
*
Pequenos ecos
Perdido, como ficou, entre os inúmeros detalhes da tragédia de anteontem, na Piedade, a maioria dos leitores de jornais ignora um aspecto desse drama, a ele ligado apenas pela qualidade da sua vítima e que se reflete sobre a nossa civilização. Esse aspecto, esse ponto triste num drama já de si tão triste é a ignorância em que estavam todos que se acercavam do morto no primeiro instante, da sua qualidade de grande escritor. Todos ouviram que se tratava do Dr. Euclydes da Cunha, mas ninguém ligava a esse nome mais que o atributo de um diploma de bacharel. Se nós somos quase todos bacharéis…
Já com Machado de Assis, que foi muito de perto acompanhado por Arthur Azevedo, sucedera o mesmo. É verdade que sempre que um livro seu vinha a lume, os jornais não o deixavam em silêncio; é verdade que o público lias as críticas; mas o livro ficava quase ignorado. E o que sucedia ao livro sucedia ainda com maior razão ao escritor. Quando pela cidade circulou a notícia do falecimento do grande romancista, muita gente ouvindo esse apelido de Assis, julgou que quem morrera fôra o Sr. major Assis, fiscal das loterias, tão certo é que nós conhecemos melhor as cautelas que, a um capricho da fortuna, nos podem dar a sorte grande, que os romances que nos podem fazer cabecear de tédio ou sono.
Com Arthur Azevedo sucedeu o contrário, não porque o saudoso comediógrafo fosse tão popular como os bilhetes de loteria ou o jogo do bicho, mas porque, com as suas revistas principalmente ele estivera na comunhão do grosso público, com ele efetivamente e por muito tempo vivera. Mas poucos conheciam os seus contos e as suas poesias, toda a sua obra que não passara pelo palco. Dos escritores vivos, quem sabe qual seja o número dos que verdadeiramente os conheça? Nós levamos a falar da nossa literatura, como de uma coisa admirável e admirada. Realmente é admirável que tenhamos essa literatura, quando tudo concorre para desalentá-la, como agora está sucedendo com a teatral; quanto a admirada, ela o é… pelos que a fazem, por três ou quatro amigos seus e pelo Sr. Anatole France ou pelo Sr. Enrico Ferri que mal a podem sentir, desconhecendo a nossa língua.
Não nos desiludamos, porém, ao mais. Nos tempos em que a nossa capital pouco mais era que uma aldeia, os literatos eram mais conhecidos que hoje. O seu isolamento, a sua vida bizarra feriam a observação popular mais fundamente que hoje os seus romances, os seus poemas ou os seus dramas. Ser literato, era como ser cigano ou bicho esquisito, e ficava sempre nos olhos do público uma imagem do sujeito que arrastava umas botinas de salto roído pelas calçadas, que arrojava ao vento uma gravata Lavalière de colorido forte e uma cabeleira cheia de inspiração e de caspa. De resto, essas gerações de sonhadores nem sempre mergulhados no sonho, tinham uma maneira bem prática de se tornarem conhecidos e se gravarem na memória dos contemporâneos: era pedir-lhes o necessário para o almoço. O dinheiro é às vezes um grande auxiliador da memória.
A cidade, entretanto, cresceu. O velho tipo do literato evaporou-se ou transformou-se. Hoje não usa cabeleira nem bigode e nem sequer pede dinheiro. E a cidade que se civilizou, que segue no seu jornal as modificações caprichosas da moda, fala naturalmente da nossa cultura, das nossas letras, sente um nobre orgulho quando Anatole France diz que em ciência e em arte a Europa nada tem a ensinar-nos, e desconhece os nossos escritores. Isso, mais que a vida intensa que passamos a viver, é devido a uma falsa noção do valor do nosso intelectualismo. Porque se é certo que já não vemos nos botequins aqueles literatos de outrora, não é também menos certo que o nosso conceito a seu respeito, embora moralmente atenuado, continua a ser o antigo.
Os que mais se conhecem são os que pela natureza dos seus trabalhos se aproximam do público. São os que podem chegar até o teatro, os que falam em momentos solenes diante de uma sala smart, são os que burilham crônicas nos jornais, mas esses mesmos desaparecem, se os seus trabalhos passam ao livro. O jornal é o nosso companheiro de bonde, se não aparece durante a viagem alguém mais interessante que ele e a quem nós ainda pagamos amavelmente a passagem. Os discursos são palavras para se ouvirem e perdem todo o seu encanto reduzidas à linguagem figurada do livro. Com tão ligeiros prazeres não é possível que nos fique profunda impressão do nosso intelectualismo. Por isso é admirável que ainda tenhamos a literatura que temos e tanto surpreendeu Anatole e Ferri.
Há decerto muito quem leia a Sra. Júlia Lopes ou a Sra. Carmen Dolores. São duas escritoras brilhantíssimas que realmente encantam. Há muito quem não perca uma crônica de Coelho Netto, de Medeiros e Albuquerque ou de João do Rio. Os poetas têm mesmo uma predileção especial quando aparecem nos jornais. Mas o maior número dos seus admiradores está entre os seus colegas, não talvez por um grande sentimento de admiração, mas por um seguro e imperioso instinto de fraternidade no mundo à parte que eles formam. A cidade enfestoa-se com os atributos da sua cultura e da sua civilização, mas por uma espécie de fetichismo inextirpável continua a admirar os escritores de fora que têm quase o prestígio de deuses que não descem à terra e não passeiam na Avenida.
A Notícia, Rio de Janeiro, 18-19 de Agosto de 1909
Uma tragédia
GRAVES REVELAÇÕES
Depoimentos e contestações
O ESTADO DO FERIDO
Num justo escrúpulo de guardar o devido decoro em se tratando de assuntos tão melindrosos que de qualquer forma porque fossem tratados, não poderia trazer em resultado reabilitações pois que a memória do ilustre morto disso não carecia, relatamos o prosseguimento do que se relacionava com tão triste fato, sem fazermos referências a circunstâncias graves depois conhecidas transpiradas do inquérito, mas sem o cunho oficial.
Pela manhã de hoje um nosso companheiro foi à residência da Exma. viúva Solon, no campo de S. Cristóvão, afim de obter informações que esclarecessem certos pontos da horrível tragédia desenrolada na estrada real de Santa Cruz.
Não foi possível falar-lhe, porque a respeitável senhora acha-se doente e, a conselho médico, ignora até agora o ocorrido.
Pessoas que lhe são caras, prevendo os perigos que ela corria, prepararam-lhe o espírito e lhe contaram, então, que o laureado homem de letras havia posto termo à existência.
Procuram por todos os meios furtar-lhe a leitura dos jornais.
Por uma deferência, conseguimos obter algumas informações com o ativo comissário Solon, do 3º distrito policial, cunhado do saudoso Dr. Euclydes da Cunha e que reside com sua Exma. mãe no Campo de S. Cristóvão.
Depois da palestra que tivemos com a inteligente autoridade, apuramos o que abaixo damos.
A família do general Solon não conhecia e nem mantinha relações com os irmãos Dilermando e Dinorah de Assis.
As duas senhoras que residiam em casa do Dr. Euclydes, em Copacabana, não tinham, como os rapazes, parentesco algum com a família, são apenas comadres da viúva do Dr. Euclydes.
D. Anna costumava ir visitar o seu filho que estava no Internato do Ginásio Nacional e quando o fazia ia até a casa de sua mãe que fica próxima daquele estabelecimento.
A família do comissário Solon quase não freqüentava a casa do Dr. Euclydes e por isso ignorava tudo quanto lá se passava.
Quinta-feira última D. Anna foi visitar o seu filho no Ginásio e depois foi à casa de sua mãe.
Ali pernoitou quinta-feira e sexta saiu depois de ter almoçado.
Sábado o Dr. Euclydes Cunha foi buscar o filho no Ginásio indo depois à casa da sogra, pedindo aí informações sobre sua senhora.
Pessoa da família informou-lhe de que D. Anna desde a véspera fôra para sua residência.
No domingo o comissário Solon foi avisado por um seu colega de que seu cunhado havia sido assassinado.
Procurou saber do que se tratava só obtendo pormenores do fato pela leitura dos jornais.
A morte do Dr. Euclydes Cunha foi geralmente sentida pela família Solon principalmente pelo seu cunhado com o qual falamos.
Vê-se na fisionomia de todos o abatimento, a tristeza.
Continua recolhido à 1ª enfermaria do hospital central do Exército, entregue aos cuidados dos Drs. Paula Guimarães e Ivo Soares, o aspirante Dilermando de Assis, cujo estado já não é mais de calma. Dilermando, que nos dois primeiros dias da tragédia se mostrava dócil, indiferente, agora impacienta-se, irrita-se e nega-se a tocar no assunto deixando mesmo entrever um sofrimento íntimo que lhe põe às vezes em sobressalto. Devido ao seu abatimento moral e mesmo atendendo à recomendação dos médicos o enfermo não fala a pessoas estranhas ao hospital, com exceção de seu irmão Dinorah que hoje visitou-o demoradamente, e seu advogado Sr. Deocleciano Martyr, que com ele teve longa palestra sobre os acontecimentos.
Dilermando conserva a mesma disposição física, com pouca febre, tendo alguns escarros de sangue. A sua dieta porém tornou-se mais rigorosa.
O ferimento mais grave, sabe-se agora ser o do peito, cuja bala foi alojar-se-lhe no pulmão direito, conforme está evidenciado pela aplicação radiográfica. A operação, segundo a opinião dos médicos, só pode ser levada a efeito quando o doente recuperar inteira calma para que não seja prejudicada a intervenção cirúrgica.
Parece que o diretor do hospital só consentirá no interrogatório de Dilermando com ordem do Sr. ministro da Guerra.
Ao nosso repórter, que visitou hoje o aspirante, perguntou-lhe por escrito, por não poder falar, qual o paradeiro da pobre viúva e do seu filhinho Luiz.
Perguntou ainda se sabiam que o infeliz Euclydes lhe havia morrido nos braços.
Interessou-se pelos acontecimentos, querendo saber como tinha sido o enterro.
Disse que confirma as suas declarações anteriores, não se afastando do seu depoimento, caso a polícia o queira interrogá-lo de novo.