Dossiê sobre a morte de Euclides da Cunha

RISSATO, Felipe Pereira (org.). Dossiê sobre a morte de Euclides da Cunha. In: EUCLIDESITE. Artigos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/artigos. Acesso em: [data]. Reprodução permitida para fins educacionais e desde que citada a fonte.

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 de Agosto de 1909

Lamentável tragédia

NA ESTAÇÃO DA PIEDADE
O ABISMO DAS SUSPEITAS
UM MORTO E DOIS FERIDOS
O DR. EUCLYDES DA CUNHA

Os antecedentes – Revolta íntima – Na véspera do desfecho – Resolução inabalável – O desenrolar da tragédia – A morte do Dr. Euclydes da Cunha – Os dois feridos – Socorros e providências – No Necrotério – Outras notas.

Uma notícia triste impressionou vivamente no dia triste de ontem. Mas a tristeza da notícia acúlea, incisiva, golpeante, nem se pode descrever, porque não feriu apenas a sensibilidade humana. Doeu na afeição dos homens inteligentes, porque se tratava de um dos mais conspícuos e insignes entre os que pensam e produzem no Brasil.
O Sr. Euclydes da Cunha, o escritor substancioso e lapidar que surgiu há poucos anos, com um livro que era literatura e era história, que era ciência e era arte, Os Sertões, caíra varado por uma bala certeira em um lance inesperado e brutal.
Quando traçamos estas linhas, ao primeiro instante em que se nos dá como verdadeira a notícia, ainda não conhecemos pormenor a tragédia.
Se houve razão em um desforço ou foi impensado o gesto de quem agrediu, ainda não se sabe neste primeiro momento, em que nos cai de chofre, para étape lutuosa das informações que a avidez dos leitores e as obrigações do ofício nos impõem, este capítulo improvisado que abre um sulco no nosso mundo literário.
Porque, o Sr. Dr. Euclydes da Cunha, engenheiro e militar doutr’ora, não era de fato, senão um espírito bem aparelhado e culto, ardente e inspirado, que explodira havia pouco e agora ainda prometia mais do que já dera.
Raros homens no Brasil têm feito aquele surto incomparável.
Até Os Sertões Euclydes da Cunha era um poeta e era um prosador, mas não havia, senão alguns íntimos, que lhe sabiam das energias e da capacidade excepcional de produção.
Tendo acompanhado as forças enviadas para defender a remota região sertaneja da Bahia, ele, soldado, não era, entretanto, o soldado que se ia bater; era já o escritor que ia observar e estudar e recolher a emanação inspiradora da paisagem e dos costumes.
Não que lhe falhasse o sentimento do patriotismo, que tão dignificadora influência exerce no destino dos homens.
Ele tinha-o bem acentuado, e o seu patriotismo, não sendo o de ação bruta, pelas armas, era de efeito mais decisivo e eficaz, porque era o patriotismo de convicção e de orientação.
Se da jornada de Canudos não houvesse resultado nenhum proveito, que até do mal e do infortúnio a sábia fatalidade que, desfere as notas da vida, as boas, como as más, tira proveito, bastaria o campo de observação que se deparou ao escritor para, no futuro, compensar um tão desastroso episódio da história nacional.
Aquela campanha, porém, ainda deu mais compensadoras vantagens: chamou a atenção do Governo para os inóspitos e abandonados lugares; invocou a catequese para a gente não ignora e supersticiosa.
N’Os Sertões, Euclydes da Cunha revelou-se um dos conhecedores mais práticos do Norte da República em toda a sua configuração e latitude, dando mostras, igualmente, da sua estrutura geológica e de ter feito uma séria investigação dos seus aspectos étnicos.
A crítica recebeu essa obra com aplauso e foi unânime em proclamar-lhe a erudição e a forma, forma una e indivisível, sem solução e sem tibieza e correntia, fluente, ao mesmo tempo, como um veio de água cristalina.
O livro esgotou edições umas após outras, e Euclydes da Cunha, pleiteando uma cadeira na Academia de Letras, alcançou-a sem hesitação, e foi recebido no seio da douta corporação pelo órgão do Sr. Dr. Sylvio Romero.
Como houvesse estado na região do Acre, em comissão do Governo, há cerca de dois anos, ele era ultimamente um dos que mais entendiam daquelas paragens, em todos os seus pontos discutíveis, discorrendo com proficiência sobre a sua confinação, os seus rios, o seu clima, as suas produções naturais. Era sempre assim: apanhava, apreendia em flagrante as coisas, e, logo que delas se aproveitava, reconhecia-as e familiarizava-se de pronto com os seus processos e os seus segredos, que sintetizava e amoldava no cadinho do seu estilo próprio, pessoal, cheio de vigor e de sonoridade vibrante.
Ao Ministério das Relações Exteriores prestou relevantes serviços e, ultimamente, a sua palavra era ouvida em consultas de consideração e importância.
Publicara, recentemente, um livro de profundo inquérito diplomático, Peru versus Bolívia, e esse livro foi sendo citado, depois, como prova documental e de seguro arbítrio em mais de uma dúvida…
Há poucos dias fora nomeado lente de lógica do Ginásio Nacional.
Tinha uma têmpera rija e inflexível, que não iludia, e se estampava nitidamente no seu tipo seco e moreno, que a adustia mesológica do norte acabara de conformar, e a rede nervosa, em uma cianose, em relevo, palpitava sob o seu pigmento como uma pilha envolvida em um isolador transparente.
Era pequenino, de olhos vivos, de amêndoa, prognata, mas uma luz clara de inteligência inundava-lhe a fisionomia, dando-lhe um ar amplo e definitivo de criatura inteligente.
Amava a polêmica e obstinava-se até a prova cabal, não deixando sem elucidação nenhum ponto, que tudo queria perfeito e iniludível, e tinha uma lógica constritora e um fraseado esmagador, sem ser retórico, nem prolixo.
A sua política era uma fé, e não um interesse. Fôra exaltado republicano no tempo em que a República vagamente se esboçava em um horizonte nublado e plumbo.
Tais são os traços que se podem improvisar para dar a ideia desse homem, que parece que o foi em toda a extensão do termo, e que caiu, não decerto como um vulgar impulsivo vitimado por uma represália, mas como um crente incendido pelo próprio sentimento inflamado.

As primeiras notícias

da tragédia de ontem, embora desencontradas, correram céleres, por toda a Capital.
Em vários pontos falava-se, com tristeza, lamentando-se o infausto acontecimento.
Sabia-se que ele se prendia a um caso de honra, pelo menos era esta a versão mais corrente, mas faltavam os pormenores, os detalhes impressionantes, para a curiosidade aguçada do público, sensivelmente alarmado.
O “Jornal do Brasil” foi procurado por muitas pessoas, visivelmente contristadas que desejavam saber como se passara a tragédia da Piedade.
Pode-se assim denominá-la, por ter sido a poética estação da Piedade o teatro do sanguinolento desfecho.
E exatamente por ter sido neste subúrbio, em lugar longínquo, foi que tardaram as informações completas, chegando tardiamente também ao conhecimento da polícia.
Do que se passou, pouco e pouco, em linhas gerais, foram-se sabendo novos informes pelo telefone, enquanto não voltavam as autoridades policiais e representantes da imprensa, que se dirigiram ao local.
Couberam ao Delegado do 20º Distrito as providências sobre o deplorável drama sanguinolento, providências que nada poderão adiantar, a não ser para ficarem patentes os pormenores e antecedentes, envolvidos pelo mistério e pela dúvida.
Acompanhando a ação da polícia, ou ainda colhendo informações em outras fontes diversas foi que a nossa reportagem se habilitou a narrar o drama sensacional, ao começar pelos

Antecedentes

O Dr. Euclydes da Cunha, engenheiro militar, a principal figura da tragédia, como já estão vendo os leitores no decorrer desta notícia, considerava o seu lar como um santuário, sempre devotado em extremo à família.
Tinha se casado com a Sra. D. Anna Solon da Cunha, filha do falecido General Solon, há cerca de 17 anos, advindo do consórcio quatro filhos.
O mais velho, de nome Solon, tem 16 anos; o segundo, Euclydes, 14; Manuel Affonso 4; e ainda outro, o último, Luiz, de 1 ½ ano.
Residia com sua família à rua Nossa Senhora de Copacabana n. 28 H.
Sua casa era assiduamente freqüentada por dois rapazes, filhos do Rio Grande do Sul, amigos íntimos da família e bastante conhecidos na nossa sociedade.
Eram os estudantes militares Dilermando Cândido de Assis e Dinorah Cândido de Assis, filhos do Tenente do 2º regimento de cavalaria do Exército, João Cândido de Assis e de D. Joanna Carolina de Assis, já falecidos.
Depois da morte, há seis anos, do Tenente Assis, que era seu primo, a esposa do Dr. Euclydes da Cunha tomou a si o encargo de auxiliar os dois moços estudantes.
Dilermando, que era da Escola Militar, passou no fim de algum tempo a ser aspirante a oficial do Exército, continuando Dinorah a ser aluno paisano da Escola Naval.
D. Sinhá, como é familiarmente conhecida aquela senhora, votava grande estima aos dois parentes, a ponto de lhes fornecer os meios necessários para prosseguirem nos estudos, com o que concordava também o seu marido.
Ao que parece, porém, a amizade de D. Sinhá pelos rapazes, notadamente por um deles, não era vista com bons olhos, suscitando inveja ou despeito até de pessoas da família.
Daí adveio, pelo que pudemos colher, a

Intriga urdida

Há tempos, ao que soubemos, fôra o Dr. Euclydes avisado de que desconfiasse do procedimento de sua companheira para com os dois protegidos, parecendo mesmo que o aviso ia ao ponto de ferir a sua honra.
É fácil de imaginar o que então sucedeu. Os sentimentos que se chocaram no seu espírito. A confiança a despenhar-se, a dúvida a tornar-se nítida, a fazer surgir a suspeita. Enfim, o inferno para um homem cioso do seu nome…
Teria sido obra puramente da intriga a tragédia de ontem? Talvez, quem sabe? Pelo menos tomou nela grande parte, foi o principal veículo fomentador.
O Dr. Euclydes começou a lutar, a debater-se com uma grande luta moral, refazendo e reunindo energias para não sucumbir ao peso da dor da incerteza que o afligia.
Mostrou-se, a princípio, indiferente para com os dois rapazes, chegando estes a notar a sua escusa em falar-lhes.
Dilermando escreveu-lhe nesse sentido, obtendo resposta, em carta que ele julgou satisfatória, mas pouco depois verificou que o Dr. Euclydes continuou a mostrar-se esquivo, não lhe dando o franco acolhimento de outrora.
D. Anna Cunha, embora sabedora das desconfianças do marido, sendo dotada de espírito forte, não julgava que ele desse crédito ao que ela dizia ser uma intriga infamante.
Procurava dissuadi-lo, mas nunca deixou de proteger os dois jovens, considerados por ela como filhos.
D. Anna, acreditava que tudo fosse urdido por umas tias, já idosas e residentes em sua casa, entre as quais uma, de nome Angélica Ratto.
À vista disso, aconselhou os dois moços a que se mudassem para longe, não mais a procurassem freqüentemente, afim de que se dissipassem as suspeitas do marido.
Foram eles residir à Estrada Real de Santa Cruz n. 214, na estação da Piedade.
D. Anna, segundo afirma, não podendo resistir à estima que a ligava aos jovens, foi mais de uma vez visitá-los na sua vivenda suburbana, arrastando embora o perigo de causar maiores suspeitas ao marido.
São estas as suas próprias afirmações, tendo-se dado o que ela esperava.
O Dr. Euclydes, ao que parece, fôra novamente informado do procedimento da esposa, o que lançou maior revolta no seu espírito, ao ponto de ser levado ao tremendo desfecho que mais adiante vamos narrar.

Resolução da esposa

Vendo-se em situação angustiosa, não podendo suportar mais o convívio de pessoas que ela tinha como traidoras, Dona Anna da Cunha resolveu ir residir temporariamente na casa de sua mãe, a Exma. viúva do General Solon, à rua de S. Cristóvão n. 94.
Pensava que assim poderia viver tranqüilamente, esperando mesmo que as pessoas suspeitadas abandonassem a sua casa.
Não se sabe, porém, se esta resolução de D. Anna foi tomada de acordo com o marido, sendo certo, todavia, que ele ali a procurava.
Ainda sexta-feira foram visitar o menino Euclydes, aluno do internato do Ginásio, que se achava doente naquele estabelecimento.
A união dos esposos era, ao que parece, aparente simplesmente, pois do contrário não se explica o procedimento tomado pelo Dr. Euclydes.
Agiu somente impelido por um sentimento de revolta, em explosão, diante de uma informação que lhe pareceu confirmada.
Poderia ter recebido nestes últimos dias tais comunicações que não pôde mais sofrear a revolta, não teve ânimo para levar adiante a suspeita até uma confirmação plena ou sua completa destruição!

Na véspera

Anteontem, durante o dia, o Dr. Euclydes Cunha foi procurar a esposa na casa de S. Cristóvão.
Não a encontrou, e, depois, de esperar por algum tempo, dirigiu-se ao Ginásio para visitar o filhinho, na suposição de ali a encontrar.
D. Anna não estivera no estabelecimento de ensino.
O Dr. Euclydes resolveu então levar em sua companhia o enfermo, transportando-o para sua residência em Copacabana.
Em casa, talvez ainda sob a influência de pessoas que armavam a sua desdita, teve explosões de raiva, proferiu ameaças tremendas.
Dilermando e Dinorah, de preferência o primeiro, foram alvo de seu desespero.
Teria de acabar com os seus sofrimentos morais, que faziam a sua desgraça!
Matar! foi a palavra que mais lhe veio aos lábios, sendo ouvida por seu filho Solon, de 16 anos.
No dia seguinte teria de matar, dizia e pronunciava o nome de Dilermando, bem como o de seu irmão.
Vendo a trágica resolução de seu pai, o menor Solon foi à casa da rua de S. Cristóvão, dando ciência de tudo a D. Anna.
No primeiro momento, D. Anna não quis acreditar no que dizia seu filho, mas diante das afirmações deste convenceu-se a tomar uma resolução forte e varonil.
Queria impedir o trágico desfecho, confiando nas suas forças, no grande amor que sempre lhe votara seu esposo.

Na Piedade

Saindo de casa, pela manhã de ontem, o Dr. Euclydes da Cunha tinha uma resolução formal, inabalável.
Dirigira-se para a estação inicial da Estrada de Ferro Central do Brasil, tomando um trem de subúrbios.
Não sabia onde moravam os dois moços, mas havia de fazer diligências para encontrar a casa. Saltou na estação e começou a indagar onde residiam os dois estudantes militares.
Nada apurou, nos primeiros momentos.
O Dr. Euclydes estava resolvido a encontrar a casa e não desanimou.
O seu fato, coberto já de poeira, era o mais velho que tinha no seu guarda-roupa.
Vestira-o propositadamente talvez, tomando botinas pretas e chapéu preto.
Ninguém o conhecia naquela redondeza, sendo estranhada a sua insistente maneira de indagar a casa dos rapazes.
Afinal, cerca de 10 horas da manhã, houve quem lha indicasse.
Para lá se dirigiu, resolutamente.
A esse tempo uma senhora saltara na estação da Piedade, seguida de dois filhos.
Era D. Anna da Cunha, em companhia de seus filhos Solon e outro menor.
Tomara também a direção da casa dos irmãos Assis, situada como já dissemos, na Estrada Real de Santa Cruz n. 214.
Caminhava apressadamente e, ao chegar, próximo àquela estrada, na rua do Cattete, parou estatelada, ao ouvir detonações repetidas de arma de fogo.
Reuniu todas as forças para não cair, tal o seu pressentimento, dizendo:
— Não posso mais evitar a desgraça!
Foi ao local, uma casinha, com pequeno jardim na frente e ali se lhe deparou um triste espetáculo.
O marido estava morto e os dois rapazes feridos gravemente.

A tragédia

que se desenrolara, então, pelo seu imprevisto, toca às raias do inverossímil.
Foi um lance quase inenarrável, que não se pode descrever com toda a precisão.
O Dr. Euclydes, ao que parece, dirigiu-se para ali na certeza de encontrar a esposa.
De outro modo não se explicam as suas frases ao deparar o estudante Dinorah Assis à janela da casa.
— Onde está minha mulher? dizia ele. Onde está meu filho! Estão aí, não é verdade?
Obtendo embora resposta negativa, entrou apressadamente e penetrou em um quarto, de porta cerrada, no qual o aspirante Dilermando de Assis lia calmamente um livro.
O Dr. Euclydes interpelou-o com relação às suspeitas, que lhe ferviam no cérebro, e, sem dar tempo a qualquer resposta, desfechou três tiros contra Dilermando, dizendo ainda:
— Agora, miserável, vais pagar!
O alvejado foi atingido apenas por um dos projéteis na virilha esquerda.
Nessa ocasião, ouvindo o estampido, Dinorah de Assis procurou socorrer o irmão, no que foi impedido pelo Dr. Euclydes, que estava enraivecido, em grande exaltação.
Vendo que ele lhe apontava a arma, procurou desviar-se, sendo, porém, atingido por uma bala, na coluna vertebral.
Foi então que se passou o ponto culminante da tragédia.
Um duelo de morte, bem se pode denominar.
O aspirante Dilermando, apanhando o seu revólver, do autor Smith and Wessom, bem como o do seu antagonista, apertou o gatilho e deu dois tiros para o ar, com o fim de amedrontá-lo, segundo mais tarde declarou.
O Dr. Euclydes, longe de ceder, desfechou o seu revólver contra ele por duas vezes, ferindo-o no ventre e no mamelão esquerdo.
A esse tempo, como bom atirador que era, Dilermando foi detonando a sua arma por três vezes, ferindo o Dr. Euclydes no pulso direito, no braço esquerdo e, por último, na região infra-clavicular direita, próximo ao peito.
Foi este tiro que o prostrou. Mortalmente ferido, o Dr. Euclydes cambaleou, indo cair fora, no jardinzinho da casa.
Dilermando correu em seu socorro; julgava-o ferido, mas não em estado grave.
— Que é isto, doutor? interroga-o.
— Sofri muito… matei… morro… mas perdôo…
Foram estas, segundo dizem, as suas palavras, pronunciadas a custo, falecendo pouco depois.
Não se descreve agora a cena comovente que foi a chegada de D. Anna da Cunha e dos filhos, em caminho já de casa, quando se deu a tragédia, tendo ouvido os estampidos dos tiros.
Momentos de angústia e de aflição, de dor e de estupefação. Lá saiu um vizinho a avisar a Polícia do 20º Distrito, enquanto na casa continuava o quadro desolador.

As providências

Foi chamado o Dr. Capanema de Souza para socorrer os feridos, nada mais podendo fazer esse facultativo para salvar o Dr. Euclydes da Cunha.
Os irmãos Assis foram socorridos, recebendo ligeiros curativos, tratando a polícia de sua remoção para local mais próprio ao tratamento.
Depois da chegada de um comissário, esteve no local o Dr. Oliveira Alcântara, Delegado do 20º Distrito, bem como o escrivão Anor Margarido.
Foram tomadas as declarações dos feridos, das testemunhas e de D. Anna da Cunha.
Os depoimentos vão de acordo com a nossa narração, dizendo D. Anna da Cunha não haver razão para a suspeita de seu marido, que ultimamente andava muito neurastênico, naturalmente devido a prolongados estudos, agravando-se o seu estado nervoso com as informações malévolas e destituídas de fundamento.

Os feridos

O aspirante Dilermando Cândido de Assis acha-se gravemente ferido.
Foi atingido por três projéteis, como dissemos, no ventre, no mamelão esquerdo e na virilha esquerda.
A polícia fez removê-lo, em trem, para a estação de S. Francisco Xavier, seguindo dali para o Hospital Central do Exército.
Dilermando conta 21 anos de idade e seu irmão Dinorah tem apenas 20.
Acha-se este ferido na região dorsal, próximo à nuca.
Foi medicado no Posto Central da Assistência, pelo Dr. Adalberto Ferreira.
Seu estado, apesar de não ser grave, inspira cuidados.
Mais tarde, recolheu-se ao hospital da Misericórdia, onde, naturalmente, será submetido a operação, para extração da bala.

O morto – Algumas notas

O cadáver do Dr. Euclydes da Cunha, depois de algum tempo, foi removido para o Necrotério, por ordem da polícia do 20º Distrito.
Como já dissemos, o Sr. Euclydes da Cunha era natural do Estado do Rio de Janeiro, tendo nascido em Cantagalo, em 1867.
Contava, pois, 42 anos de idade.
Cursou na Escola Militar, antes da proclamação da República, de que fôra exaltado prosélito, tendo sido dali desligado no último Ministério conservador, em conseqüência de um incidente disciplinar, devido à efervescência política do momento.
Voltou à Escola, depois da República, completando o curso de engenharia militar e conquistando o posto de 2º Tenente, no qual se formou pouco depois.

No Necrotério

À 1 hora da madrugada, vimos o cadáver do Dr. Euclydes da Cunha, envolto em um cobertor vermelho, cercado de flores, alumiado por dois círios à cabeceira, estava colocado em uma mesa ao fundo, à esquerda. À direita, à entrada, jazia um desses pobres anônimos.
Euclydes da Cunha não se descolorira ainda. Tinha a fisionomia nítida, com uma serenidade de quem dorme.
Um risco de sangue coagulado corria pelo pescoço, do ombro direito.
Como estivesse desnudo, levantando uma ponta do cobertor, vimos-lhe o ferimento mortal. A bala localizara-se na clavícula, do lado direito. Deixara uma cavidade negra.
O braço esquerdo deslocara-se, levantando uma saliência óssea. Era outro ferimento, no terço superior respectivo.
Quando chegamos, estava isolada a sala.
Depois chegou mais gente.
Deram-nos explicações. Já lá estivera o Sr. Dr. Afrânio Peixoto, que ficara de voltar hoje, afim de embalsamar o corpo.
As flores, tinha-as mandado o Sr. Barão do Rio Branco. Estava deliberado que o enterro seria feito hoje, às 4 horas, pela Academia.
Estiveram no Necrotério os Srs. Dr. Brício Filho, Coronel Ernesto Senna, M. Carvalho, Júlio Barbosa, Olavo Bilac, Agenor de Carvoliva, João Guimarães, Dr. João Lavrador e alguns moços estudantes.

Notas diversas

D. Anna da Cunha é, como dissemos, filha do falecido General Frederico Solon de Sampaio Ribeiro.
Conta atualmente 38 anos de idade.
É senhora de fino trato e de educação, gozando de estima no círculo de suas relações.
— Nos bolsos do Dr. Euclydes da Cunha foram encontrados diversos papéis e uma carteira, contendo um livro de cheques do London Bank, dois recibos de matrícula de um seu filho no Ginásio Nacional, uma cédula de 50$, etc.
Havia ainda dois retratos sendo um do próprio Dr. Euclydes, com dedicatória à então sua noiva, D. Anna Solon.
— A polícia arrecadou ainda um relógio de prata oxidada e um anel de engenheiro militar, tendo a falta de dois brilhantes, perdidos há três anos.
— No 20º Distrito Policial prosseguirá hoje o inquérito sobre a sensacional tragédia.

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 de Agosto de 1909

Lamentável tragédia

NA ESTAÇÃO DA PIEDADE
O ENTERRO DO DR. EUCLYDES DA CUNHA
MANIFESTAÇÕES DE PESAR

Do Necrotério à Academia de Letras – O saimento fúnebre – Pessoas presentes – No cemitério – O inquérito policial – Os dois irmãos feridos – Nos Hospitais do Exército e da Misericórdia – Notas diversas

Não se pode com justeza assinalar a impressão dolorosa causada pela tragédia da Piedade. Os sentimentos de pesar foram profundos, sinceros não só daqueles que privavam com o brilhante escritor, tragicamente morto como daqueles que o conheciam unicamente através de sua obra.
O desaparecimento inesperado e brutal do autor d’“Os Sertões” lançou imensa dor no círculo de seus amigos, sendo considerada uma grande perda a sua morte.
Para se fazer ideia, disto basta acompanhar as manifestações de pesar e as homenagens prestadas ao ilustre morto.
Grande foi o número de pessoas que se dirigiram ao Necrotério, onde ficou depositado o cadáver, para levar o seu último preito de dor e de saudade.
O sentimento de pesar acentuou-se também nos estabelecimentos de ensino, sendo em alguns suspensas as respectivas aulas.

No Senado

Ontem, no início da sessão do Senado o Sr. João Luiz Alves pronunciou o seguinte discurso:
“O Senado já manifestou o seu legítimo pesar pelo falecimento de dois dos mais brilhantes representantes da literatura brasileira, os Srs. Machado de Assis e Arthur Azevedo. É justo, portanto que eu lhe venha pedir também um voto de pesar pelo doloroso fato do falecimento do Dr. Euclydes da Cunha.
Moço, pelas suas tradições republicanas e só por elas já se impunha à consideração de todos os republicanos brasileiros; homem pela limpidez impoluta de seu caráter pela grandeza de sua alma e só por isso já se impunha à consideração de todos os homens de bem; escritor, que perpetuou na nossa língua as suas maiores belezas; pensador, que deixou monumentos de uma alta filosofia sobre os problemas sociais que nos agitam; historiador que soube escrever as páginas notáveis d’“Os Sertões”; geógrafo que prestou os mais relevantes serviços ao Brasil nas fronteiras do Acre e continuou a prestá-los com a publicação do seu notável livro “Peru versus Bolívia”, quando pelos seus sentimentos republicanos somente pela sua elevação literária, pelo seu culto devotado à história e à geografia de nossa pátria não merecesse esta homenagem do Senado merecê-la-ia, por certo, pelos serviços que prestou ao país defendendo os direitos da Nação, a integridade do território como auxiliar do eminente Ministro das Relações Exteriores.
Estou certo que o Senado corresponderá ao meu apelo mandando consignar na ata dos nossos trabalhos um voto de pesar pelo falecimento do eminente escritor brasileiro – Euclydes da Cunha.”
— Falou depois o Sr. Quintino Bocayúva, que disse:
“O Senado ouviu o requerimento verbal apresentado pelo nosso colega, Senador pelo Espírito Santo. A unanimidade de aplausos com que foram acolhidas as palavras de S. Ex. dispensa consulta ao Senado para que seja consignada na ata dos nossos trabalhos, a expressão de profundo e sincero pesar, que neste momento, comove toda a Nação e de que o Senado vai dar a demonstração autêntica.
O requerimento do honrado Senador pelo Espírito Santo pedindo a votação ou a expressão de um voto de pesar pelo falecimento do Dr. Euclydes da Cunha, corresponde, creio ao sentimento geral da Nação Brasileira, (Apoiados) que via nesse moço uma das glórias mais legítimas da geração atual, assinalada não só pelos serviços prestados à República, como pelas produções de alto engenho que atestarão, no futuro quanto, este representante da nova geração brasileira, era, pela pujança de seu cérebro um dos mais nobres e dos mais brilhantes representantes da Pátria.
O voto de pesar requerido pelo honrado Senador pelo Espírito Santo, será consignado na ata de nossos trabalhos de hoje.”

Na Câmara

No expediente, o Sr. Érico Coelho, em nome do Estado do Rio, pediu a inserção na ata, de um voto de pesar, classificando o morto de genial escritor.
O elogio fúnebre, propriamente dito, foi feito em seguida pelo Sr. Coelho Netto, que disse que o Dr. Euclydes Cunha era, no momento o maior cultor da língua portuguesa.
Fez calorosos elogios ao seu livro “Os Sertões”. Nesse trabalho o escritor que acaba de sucumbir soube descrever e interpretar a valente raça dos caboclos do Norte, raça sofredora e forte.
O requerimento do Sr. Érico Coelho foi unanimemente aprovado, tendo o Sr. Coelho Netto concluído, solicitando, não manifestações da Câmara, mas do Brasil inteiro.
O seu discurso terminou com palmas dadas pelos colegas.

No Necrotério

O corpo do Dr. Euclydes Cunha, pela manhã de ontem, achava-se na última mesa à esquerda, do Necrotério Público; estava ainda sobre a manta vermelha que lhe serviu de transporte para a padiola que o levou àquele estabelecimento.
Quatro velas de cera ardiam em torno. Durante a noite foi o corpo velado por diversos amigos e parentes, entre os quais os Srs. Dr. Arnaldo Pimenta da Cunha, Luiz Nestor Augusto da Cunha e outros.
O número de visitantes tinha sido extraordinário. Entre eles achavam-se os Srs. Drs. Miguel Calmon; Leão Velloso Filho; Alberto Ferreira; Antonio Calmon; Theotonio de Oliveira; Vieira Fazenda; Paulo de Moraes e Barros; Oscar Brant; Luiz Moreira; Max Fleiuss; Rodgerio Moniz Freire; Pinheiro Chagas; Ribeiro da Silva; Octavio Dutra; Oscar Dermeval; Mário de Vasconcellos; Dr. Araripe Júnior; Olavo Bilac; Campos Mello; José de Caracas; Oscar Clart; Luiz Nazini; Mário Ramos da Silva; Jacques Raymundo; Dr. Alberto M. Lino; Radagazio Moniz Freire; Antonio Acatavanni Nunes Filho; S. Silva; David Madeira; Castellar de Carvalho; Nicoláo Ciancio; Marcellino Machado; Jorge de Toledo Dedswort; J. Ferreira Guimarães; Dr. Marcos Baptista dos Santos; J. Guimarães de Souza Sobrinho; João Lima Monteiro e Castro; Paulino Antonio de Souza; Luiz Gonzaga Barbosa; Felippe N. Ferreira Brandão; Álvaro da Silveira Gusmão; Tenente Arthur Alves; Joaquim Honório de Meira; Waldemar Ferreira da Silva; Argemiro Toscano de Britto; Affonso Magalhães Júnior; Joaquim Antonio Pimentel Júnior; Gualxxr de Almeida; Luiz de Affonseca; Valmore Magalhães; Aneno F. S. Santos; Justino A. Ferreira; Antonio Cid Lobelta; Antonio A. Moyano; “Corresponze Exxxxxxxxx”; José Manuel de Carvalho Pedroso; Dr. Guarany Goulart; Saint-Clair; F. de Pádua; Dr. Alfredo Andrade; Dr. Cunha Cruz; Aluízio Lima Campos; Dr. Lassance Cunha; Jayme de Azevedo Villas Boas; Raul Moura de Azevedo Maia; Victor Mondaine; Octavio de Menezes; Lourival de Andrade; Antonio Pereira da Costa; Samuel Clarck Neves; Horácio Bosur; Vicente Trotte; Argemiro Mattos de Souza; Marianno de Brito; Antonio O. Moraes Lacerda; Octavio Soares; Elysio da Silva Pinheiro; Cid de Menezes Pádua; Nestor Rodrigues Silva, 2º Tenente do Exército; Miguel Salazar de Moraes, 2º Tenente do Exército; Adhemar Pimenta; Bartholomeu do Rego; Carlos Baptista Pereira Bastos; Alcides Rosa; Heleodoro Augusto de Medeiros; José Joaquim Ribeiro Lima; Camisão de Mello; Moysés Villaça de Azevedo; Agenor Mafra; Jacintho Silva; Henrique Aderne; Nelson Pulcherio; Henrique Teixeira Campos; Edgard Sampaio; M. Sampaio; Homero Carneiro; Álvaro Antonio da Cunha; Newton Simolain; O. Delpech; José Bernardino de Senna; Luiz de Sá Carneiro; Olympio de Niemeyer; Afrânio Marinho da Cruz Camarão; Capitão Oliveira Gameiro; José Alexandre de Souza Filho; Desembargador José Antonio Gomes; Alfredo Gomes Felix de Souza; Arnaldo da Cunha Ferreira; Annibal Couto; Hache Polcherio; Agenor de Carvoliva; Flávio dos Santos e João Guimarães, do “Jornal do Brasil”, etc.
Às 10 horas da manhã, presentes os Drs. Afrânio Peixoto, chefe do Serviço Médico-legal da Polícia; Diógenes Sampaio; Cunha Cruz e Rodrigues Caó, médicos legistas, e Alfredo de Andrade, encarregado do Laboratório Químico da Polícia, foi o cadáver transportado para a sala das autópsias.
Retirado do caixão mortuário e colocado sobre a mesa apropriada, foi o cadáver despojado das vestes para ter início o penoso trabalho médico legal.

A autópsia

foi então feita pelo Dr. Afrânio Peixoto, tendo como assistentes os profissionais acima citados e como auxiliares o escriturário Roberto Bruce e o servente Armando Soares.
O cadáver achava-se em estado de rigidez, de olhos entreabertos. Passemos a descrever o serviço médico legal, que, como verão abaixo, os leitores do Jornal do Brasil, foi completíssimo.
HÁBITO EXTERNO. – O cadáver é de um homem de cor branca, medindo 1m.65 de comprimento, vestindo calça de casemira escura, ceroula branca de linho, desabotoada em parte e descida; camisa de linho branco e outra interna de flanela, ambas manchadas de sangue e apresentando ambas solução de continuidade de 21 milímetros de extensão, e correspondendo a uma ferida na região infra-clavicular direita.
No dorso e à direita estas vestes apresentam dois rasgões embebidos de sangue e correspondendo a dois ferimentos situados aí na pele.
Retiradas as vestes verificaram os peritos: na região infra-clavicular direita 11 centímetros de linha média e 10 centímetros da curva deltoidiana, um ferimento circular, de bordas enegrecidas e equimosadas medindo dois centímetros em seu maior diâmetro, apresentando os caracteres das feridas por arma de fogo; na parte média do braço, na região antero-interna e postero-externa esquerda, dois ferimentos também de bordas enegrecidas e auréola equimótica em torno, medindo um sete milímetros e outro 12 milímetros, afetando a forma de orifício de entrada e de saída de um projétil, correspondendo-se pela sondagem.
O braço esquerdo está encurtado e deformado pela fratura do úmero com cavalgamento, crepitação, esquirolas e fragmentos ósseos.
No punho, à direita, uma ferida de bordos enegrecidos, medindo 9 milímetros, correspondendo, na face palmar da mão a uma outra ferida, de lábios revirados para fora de um centímetro de extensão.
No dorso, à direita, na parte superior da região costal, duas feridas: uma de bordas enegrecidas e medindo 15 milímetros em seu maior diâmetro, outra de lábios revirados para fora, correspondendo-se pela sondagem um trajeto de 55 milímetros, com o orifício de entrada e saída de um projétil.
HÁBITO INTERNO. – Retirada a calote craniana, aliás resistente, de meninges duras, pouco aderentes, verificaram os peritos que se apresentavam bastante desenvolvidas as granulações de Pachione.
Placas leitosas de lepton-meningite no encéfalo e ligeiro edema nas imediações das circunvoluções laudicas.
O cérebro foi retirado para ulteriores investigações.
Pesava 1.515 gramas.
Em seguida foi aberta a cavidade torácica.
Encontraram na cavidade pleural direita um derrame sanguinolento de 1.300 gramas de sangue escuro e fluído.
Correspondendo à ferida externa, na região infra-clavicular, encontram-se em todos os tecidos moles um trajeto de bordos equimoseados e penetrando na cavidade, lesando o pulmão no lóbulo superior, através de toda a sua massa. O pulmão direito apresenta numerosas aderências na parte superior e em sua massa nódulos numerosos. O pulmão esquerdo igualmente aderente na parte superior e inferior do lóbulo superior. Na cavidade torácica esquerda existem 50 gramas de líquido sanguinolento.
O pericárdio contém cerca de 20 gramas de líquido citrino. O coração vazio, flácido, com ligeira sobrecarga gordurosa; cavidades esquerdas igualmente vazias.
Válvulas arteriais suficientes. Placas de ateroma na aorta. Coronárias vazias e permeáveis. O pulmão direito apresentando numerosas sínfises na parte superior e dorsal.
O orifício externo, já mencionado, corresponde a um interno e inferior, indo ter após o trajeto de nove centímetros a uma lesão da sétima vértebra dorsal, em cujo corpo penetrou o projétil, fraturando a costela direita correspondente, achando-se cravada na lâmina vertebral.
É uma bala de chumbo, das de revólver, deformada na ponta, pesando 10 gramas e medindo 17 milímetros de comprimento sobre nove milímetros na base.
Nódulos e núcleos caseosos na massa do pulmão direito. No pulmão esquerdo grande, congesto e engorgitado nas partes declives, arejado, mas apresentando focos congestivos na sua parte superior; nódulos caseosos menos numerosos.
Passaram os peritos a examinar a cavidade abdominal.
Nenhum líquido anormal foi encontrado.
O fígado grande, apresentando-se à seção, amarelado, havendo a espaços ligeira hipertrofia do tecido conjuntivo.
O baço, pequeno, retraído, exangue ao corte e se apresentando com ligeira hipertrofia do tecido conjuntivo.
O rim esquerdo de tamanho regular, cápsula aderente a espaços, nada apresentando de anormal.
O rim direito com a cápsula aderente a espaços, apresentando anemeado à seção.
O estômago grande cheio de gases, contendo pequena quantidade de substância semi-líquida em digestão.
Intestino contendo líquido e gases e a bexiga cheia de urina amarelo-clara.
Terminada a autópsia, foi dada como “causa mortis” – hemorragia do pulmão direito, consecutiva a ferimento por arma de fogo.
O trabalho médico legal durou cerca de duas horas, findo o qual foi recomposto

O cadáver

pelo servente Armando.
Em seguida os Drs. Afrânio Peixoto e Diógenes Sampaio vestiram-no com um terno de casaca, camisa de linho branco, meias pretas de seda e sapatos de verniz.
Encerrado em rico caixão de primeira classe, foi, às 12 e 40 minutos, feita

A trasladação

do Necrotério Público para a Academia de Letras, no Silogeu, na praça da Lapa.
O caixão foi conduzido para o coche fúnebre pelos Srs. José Veríssimo, Leôncio Corrêa e alunos do Externato Pedro II.
O coche foi acompanhado a pé por muitas pessoas, entre as quais, os Srs.: General Dantas Barreto; E. Senna, pelo Instituto Histórico; Dr. James Darcy; Solon da Cunha, filho do desditoso escritor; José Veríssimo; Dr. Afrânio Peixoto; Commendador Léo d’Affonseca; Carlos de Araújo; Desembargador Gomes, Presidente do Tribunal da Relação do Estado do Rio; Arnaldo Cunha; Dr. Nestor Cunha, etc.

Na Academia de Letras

Chegando o corpo à Academia de Letras, foi o caixão primeiramente depositado na sala da Secretaria do Silogeu, onde funciona a Academia de Letras.
À esta instituição científica foram enviados telegramas, entre os quais destacamos os seguintes:
“Pará. 16 – Estado do Pará associa-se à funda consternação da literatura pátria pela morte de Euclydes Cunha. – João Coelho. Governador.”
“Buenos Aires. 16. – Acompanho o luto da Academia Brasileira de Letras pela trágica morte de Euclydes Cunha. – Domício da Gama.”

A câmara ardente

O salão de recepção do Silogeu Nacional, semi-cerradas as janelas, estava imerso em uma penumbra, mais intensa nos cantos. No centro, ladeado por seis longos tocheiros, elevava-se o catafalco, baixo, largamente agaloado de ouro, onde repousava, dentro de um caixão de luxo, de veludo e seda, o corpo do Dr. Euclydes da Cunha.
Vestia casaca e calçava escarpins de verniz, tendo o rosto coberto por um lenço de seda; levantamo-lo; as feições do grande literato apareceram, conservando aquela expressão de indiferença que lhe era peculiar, quando não o assaltavam acessos da neurastenia que lhe minava o estado moral.
No fundo do salão erguia-se um altar singelo, panos de veludo com lágrimas de ouro, onde ressaltava, iluminado por seis círios, um Crucifixo de prata.
Muitas flores, muitas coroas e uma pesada melancolia sentia-se ali, em cada um dos amigos e admiradores que lhe velavam o último sono, naquele ambiente triste que mais triste tornava a semi-escuridão.

O saimento

Às 5 horas colegas de Academia, amigos e admiradores do ilustre extinto rodearam o catafalco.
O esquife ia ser fechado.
Nesse momento o acadêmico Sr. Coelho Netto, Deputado Federal pelo Maranhão, aproximou-se do catafalco para fazer o elogio fúnebre do seu inditoso colega.
Foi uma alocução rápida, mas extraordinariamente impressionante.
O orador, cuja voz bem traduzia a sua funda emoção, deplorou o prejuízo que veio sofrer a literatura nacional com o trágico desaparecimento de um cultor do merecimento do autor d’“Os Sertões”.
As palavras do Sr. Coelho Netto traduziam fielmente a emoção que todos sentiam calaram por isso mesmo profundamente no espírito dos que o ouviram.
Fechado o esquife, pelo Sr. Nestor Cunha, primo do finado pegaram-lhe nas alças, conduzindo-o ao coche, os Srs. Senador Ruy Barbosa, José Veríssimo, Dr. Pecegueiro do Amaral, Dr. Miguel Calmon, Capitão-Tenente Galvão Bueno, representante do Sr. Presidente da República e Solon Cunha, filho do extinto.
Quando desfilou o préstito fúnebre grande era o número de populares que se achavam defronte ao Silogeu.
O coche estava coberto de coroas sendo muitas outras levadas em dois “landaus”.

Coroas

As coroas eram todas riquíssimas, confeccionadas com apurado gosto.
Vimos as que levavam os seguintes dísticos:
“A Euclydes Cunha, saudade eterna do Desembargador Gomes e sua família”; “Homenagem da tia Honorina e dos primos Nestor, Álvaro e Isaura”; “Última lembrança do primo Arnaldo Cunha”; “Saudade eterna de seu pai”; “Ao Euclydes saudades de sua sogra e cunhada”; “Ao Euclydes, saudades de T. Araripe Júnior”; “Saudade imorredoura de Adélia, Octaviano e filhos”; “Ao Euclydes, saudades do amigo Behring”; “Saudosa lembrança de Miguel Calmon”; “Saudades da Academia de Letras, a Euclydes da Cunha”; “Saudades de Anna Solon da Cunha e filhos”; “Dr. Euclydes da Cunha o “Estado de S. Paulo”; “Ao Euclydes da Cunha, Júlio de Mesquita”; “O “Jornal do Commercio”, ao seu distinto colaborador”; “A Folha do Dia”, a Euclydes da Cunha”; “A Euclydes Cunha, o admirador e muito amigo Arthur Lemos”; “A Euclydes Cunha, “O Paiz”; “Ao maior escritor brasileiro, veneração dos Tenentes Álvaro, Moraes, Odilon, Nestor, Jayme, José, Júlio e Daltro Filho”; “Ao Dr. Euclydes Cunha, lembrança do amigo grato Rio Branco”.

No cemitério

Quando o préstito fúnebre chegou ao cemitério de S. João Baptista, foi recebido por vários admiradores do inditoso acadêmico, entre os quais os Srs. Senador Lauro Sodré, Dr. Raja Gabaglia e Sylvio Romero.
O esquife foi retirado do coche e conduzido à sepultura pelos Srs. Senador Arthur Lemos, Alberto de Oliveira, Arnaldo Cunha, Coelho Netto, Capitão-Tenente Galvão Bueno e Felinto de Almeida, tendo também em substituição pegado nas alças os Srs. General Dantas Barreto e Dr. Miguel Calmon.
Ao baixar a terra, falou apenas o Sr. Olympio de Niemeyer que exaltou as qualidades morais do extinto.
O corpo do pranteado homem de letras foi inhumado no carneiro n. 3.026 que fica a esquerda da entrada do cemitério.

As pessoas presentes

Como era natural, a romaria ao Silogeu foi considerável, notando-se representantes do Corpo Diplomático, do mundo oficial, homens de ciência, literatos, jornalistas e admiradores do pranteado extinto.
Entre as pessoas que lá estavam e que acompanharam o préstito fúnebre notamos as seguintes:
Dr. Cláudio Pinilla, Ministro da Bolívia; Capitão-Tenente Galvão Bueno representando o Sr. Presidente da República; Senador Ruy Barbosa; Dr. Miguel Calmon; General Dantas Barreto; Deputado Eloy de Souza; Sangervano Michello; José Alves Netto Júnior; E. Borges Filho; Dr. Érico Coelho; Capitão Henrique Silva; Belarmino Mendonça Filho; Frederico de Carvalho; Alfredo Américo Carneiro da Cunha; Ruy Carneiro da Cunha; Durva Lacerda Franco; Francisco Marianno de Lunna Setta; Paes Barreto; Francisco P. Carneiro da Cunha; Alberto Faria; Orville A. Derby; Dr. James Darcy; Dr. Gentil Norberto; Antonio J. do Paço, pelos funcionários da Biblioteca do Exterior; Mário Motta; J. Henrique Aderne; Floriano de Brito; Dr. Francisco de Castro; Francisco José da Cruz Gomes; Oliveira de Menezes; Amaro Lourenço da Silva; Antonio Henoch dos Reis; José Vianna Marques; Jacintho Paes de Mendonça Dias; A. de Carvalho Moreira; Dr. Oldemar J. Alves Moreira; Francisco de Avellar Balthazar da Silveira; Tenente Juvenal da Silveira; Joaquim Nicoláo Filho; Carolino Linhares; Euclides Ferreira Pinto; Carlos Silveira; Cláudio Coelho; J. M. Goulart Andrade; Dr. Matatel; Sílvio Romero; Juvenal Pacheco; Arthur Guimarães; Benjamin C. Bhering; Alfredo Gomes; Felix de Souza; Desembargador José Antonio Gomes Humberto Gusmão; Alfeu Meyrelles; Alfredo Backer Filho; Alfredo Mariano de Oliveira; Joaquim de Freitas Brandão; Jacques Raymundo; João Ribeiro; Paulo Tavares; Olympio de Niemeyer; Antonio Carneiro Leão, representando a Academia do Recife; José Corrêa Pinto Peixoto; Licínio Cardoso; Francisco Bhering; Bento Amarante; F. A. Araripe Júnior; Mário Menna Barreto; Augusto Ernesto Pereira Lassance; Alfredo Castro de Guttemberg; Coelho Lisboa; Luiz A. Santos; Constancio Alves; Rodrigues de Brito; Tenente Octavio Felix; Dr. Olympio da Fonseca; Francisco José Affonso de Carvalho; Armindo Pereira; Júlio Medeiros; Sebastião Brito; Olyntho Costa; Mariano da Fonseca; Antonio Bruno; Theotonio de Oliveira; Dr. Arruda Beltrão; David Eulálio de Souza; E. de B. Raja Gabaglia; Edmundo A. de Caldas Brito; Oscar Corrêa; Odoastro Godoy; Nestor Victor; Iago Pimentel; Modestino Couto; Jonathas de Mello Barreto Filho; Um filho dos sertões do Norte; Carlos José Augusto de Oliveira; comissão do Externato Pedro II com o estandarte, composta dos alunos, Jopert da Silva, Othon Seabra e Thomaz Cockrane; Marcello E. Farias pelo Instituto Affonso Pena; Dr. Ignácio Cockrane; João Luso; Heitor Modesto; Joaquim Pereira Teixeira; Ludgero Feital; Aspirante Guillobel; Joaquim de A. Lisboa; comissão de alunos do Internato Bernardo Vasconcellos, composta dos Srs. Euclides Roxo; José Azevedo; Octavio Soares; Fernando Petronilho; Álvaro Hechsher; Flávio Roxo; Aniceto de Souza; Marques Porto Júnior; Carlos Almada; Alamir Martins; Jayme Linhares e Octavio Rocha; Lindolpho Xavier; Arnaldo Solon Ribeiro representando a viúva Solon; Sadock Pastor; Lafayette B. R. Pereira; João Alfredo Pereira Rego; José Veríssimo; Olavo Bilac; Dr. Alfredo Barcellos; Coelho Netto; Antonio Coelho; Atair Rios; Deocleciano Cunha; Octavio Durão; Oscar Filgueiras; Medeiros e Albuquerque; Othon do Amaral; Viriato de Araújo; Octavio Novaes; Dr. Leopoldo de Bulhões representado pelo Sr. Nestor Augusto da Cunha, auxiliar de gabinete; Manuel Carvalho; Manuel Bernardes; Augusto Cunha; Cândido Antunes Filho; Mário da Silva Araújo; Felix Pacheco; Major Joaquim Lacerda; 2º Tenente Arthur Alves; 2º Tenente Odilon Antenor de Araújo; 2º Tenente Jayme Mendes; 2º Tenente Miguel S. Mendes; Dr. Primitivo Moacyr; Dr. Carlos Peixoto Filho; Ulysses Falcão Vieira; Rebello Júnior; Dr. Afrânio Peixoto; Dr. Francisco Pinheiro Guimarães por si e pelo Dr. Gastão da Cunha; Escragnolle Doria; Dr. Deoclecio de Campos; Dr. Eurico Cruz; Dr. Baptista Pereira; Sinval Saldanha; Victor Silveira; Raphael Pinheiro; Brito Guerra; Dr. Pecegueiro do Amaral representando o Sr. Barão do Rio Branco; Dr. Araújo Jorge e Muniz Aragão; Antonio Leitão; Rodolpho Neiva; José Nolasco Pereira da Cunha; Pedro de Lima Valverde; Silveira Martins Leão; Alípio Teixeira de Souza; Ângelo Bonfanti; 2º Tenente Euclides Pequeno; Felinto de Almeida; Mattos Lavrador; Dr. Luiz Bahia; Teixeira e Silva; João Guimarães e Flávio dos Santos, do “Jornal do Brasil”.

No Hospital do Exército

O aspirante Dilermando Cândido de Assis, um dos figurantes da lamentável tragédia da Piedade, como se sabe, acha-se recolhido ao Hospital Central do Exército.
Foi internado na 1ª enfermaria dos oficiais, a cargo do Dr. Ivo Soares.
Apresenta três ferimentos, já descritos, parecendo de mais gravidade o do mamelão esquerdo.
Ontem, às 10 ½ horas da manhã, foi removido do seu leito, na enfermaria, para o pavilhão de eletricidade, afim de nele ser feita aplicação de raios X para a descoberta dos projéteis.
O enfermo, que foi ontem submetido a corpo de delito, manifestava alguma dispnéia e tinha pequenos escarros de sangue, sendo de acreditar que uma das balas lhe tivesse atingido os pulmões.
A aplicação dos raios X foi feita pelos Drs. Paula Guimarães e Ivo Soares, médico do Exército, tendo dado bom resultado e confirmado as suspeitas dos facultativos.
Ainda ontem, no hospital, o aspirante Dilermando declarou que lamentava bastante a cena passada em sua casa, inesperadamente, pois, quando usou do seu revólver, não tinha a intenção de matar o Dr. Euclydes da Cunha, tanto assim que os primeiros tiros foram disparados para o corredor, afim de ver se o intimidava.
O jovem militar disse mais que antes fosse ele o morto, pois é solteiro e a ninguém faria falta, ao passo que o Dr. Euclydes tinha filhos, aos quais não mais poderá educar como eles merecem.

O aspirante Dilermando

terminou o seu curso na Escola de Porto Alegre, onde sempre foi bom estudante, vindo para esta Capital no ano passado.
Foi aqui incluído no 1º regimento de cavalaria, onde serviu durante três meses, exercendo um dos cargos de instrutor.
Matriculou-se depois na Escola de Artilharia e Engenharia, afim de tirar o curso de engenheiro militar.
O aspirante Dilermando tem-se distinguido sempre como esgrimista e bom atirador.
O revólver, de que se serviu anteontem, foi ganho em um campeonato de tiro, realizado em Porto Alegre.
No hospital recebeu diversas visitas, entre as quais dos Srs. Coronel Luiz Barbedo e Capitão Ramiro Souto.
Também o visitou o aspirante Mário Barbedo, seu amigo íntimo, a quem relatou sentidamente a ocorrência.
Disse mais uma vez que a amizade que mantinha com sua prima era a mais respeitosa possível, dela apenas recebendo benefícios, acreditando que tudo que houve fosse obra puramente de perversa intriga.
Tivemos comunicação, à noite, de que se havia agravado o seu estado.

No Hospital da Misericórdia

O estudante Dinorah Cândido de Assis, o mais moço dos dois irmãos envolvidos no trágico acontecimento, foi recolhido ao Hospital da Misericórdia.
Tem ele um único ferimento na coluna vertebral, próximo à nuca.
Foi internado em um dos ângulos da 18ª enfermaria, separando-o dos demais recolhidos um biombo adrede colocado.
Embora de aparência leve, o seu ferimento reclama certo cuidado, a que não se quer sujeitar.
Passou a noite relativamente bem, parecendo, porém, impressionado com os tristes sucessos.
Pela manhã esteve na enfermaria o Dr. Rodrigues Caó, médico legista da polícia, que foi proceder a corpo de delito no ferido.
Verificou esse médico que o projétil o atingira na parte superior da região dorsal, ao nível da espinha do omoplata esquerdo, tendo-se alojado na camada muscular.

O estudante Dinorah

tem apenas 20 anos, como é sabido, achando-se matriculado como aluno externo do curso de máquinas da Escola Naval.
No Hospital, entre outras pessoas recebeu a visita de alguns colegas daquele estabelecimento.
Dinorah de Assis, de exemplar comportamento e maneiras distintas, é considerado excelente “sportman”.
Tem grande predileção pelo “foot-ball”, como ontem dissemos, ocupando saliente lugar no 1º “team” do Botafogo “Foot-Ball” Club, à rua Conde de Irajá.
No próximo domingo deveria tomar parte em grande “match”.

O inquérito policial

Ontem, pela manhã, o Dr. Oliveira Alcântara, Delegado do 20º Distrito, acompanhado de seu escrivão, Anor Margarido da Silva, dirigiu-se à residência do malogrado engenheiro, à rua Nossa Senhora de Copacabana 23-H e, ali, tomou por termo o depoimento da viúva D. Anna Solon da Cunha.
Em nada adiantou ao que já sabem os leitores do “Jornal do Brasil” sobre o triste desfecho, apenas detalhes íntimos que escapam ao programa desta folha.
Durante o dia a mesma autoridade andou em diligências externas, prosseguindo, à noite, na Delegacia o interrogatório das pessoas que pudessem melhor orientar a polícia sobre os precedentes do ocorrido, isto é, o que determinou a violenta cena de sangue de que foi teatro a modesta habitação da Estrada Real de Santa Cruz n. 214.
Assim, interrogou às 9 horas da noite, as irmãs DD. Angélica Rato e Lucinda Rato, que foram, por algum tempo hóspedes do Dr. Euclydes Cunha.
Esses depoimentos foram tomados cada um de per si, em segredo de justiça, com o testemunho, porém, do Dr. Egydio Barbosa de Oliveira Itaqui e de José Monteiro de Sá Freire, funcionário da Polícia.
Sabemos, entretanto, que essas senhoras se referiram largamente à vida íntima do casal em pontos que nos obstemos de registrar.
Compareceu, espontaneamente, na Delegacia, Dinorah Cândido de Assis, um dos feridos, irmão do acusado Dilermando e testemunha ocular do lamentável acontecimento.
Conforme dissemos acima, Dinorah tivera alta do Hospital da Misericórdia dizendo que ia tratar-se no Hospital Militar em companhia de seu irmão.
Tomado o seu depoimento, o Delegado ia, à última hora acareá-lo com as testemunhas DD. Angélica e Lucinda Rato ligando a autoridade grande importância a essa acareação.
Finda essa diligência, que se prolongara até a madrugada devido à dificuldade com que fala Dinorah e mesmo não querer o Delegado fatigá-lo, serão tomados os depoimentos de Mário de Araújo Hora, compositor, residente na casa n. 220 da Estrada Real de Santa Cruz e da sexagenária Anna de Almeida, cozinheira e lavadeira dos imãos Dilermando e Dinorah.
E foram essas as diligências da Polícia, aliás de muita importância para a justiça pública.
Esperava o ferido alta, afim de ir ao Hospital do Exército lado de seu irmão Dilermando, cujo estado é grave.
Saiu do Hospital, cerca do meio-dia.

Notas avulsas

O Sr. Manuel Bernardez, escritor argentino, dirigiu ao Sr. Barão do Rio Branco o seguinte telegrama:
“Reciba mis pesames por la imensa perda que acaba de sufrir com la muerte del altissimo pensador Euclydes Cunha, el pensamiento sul-americano”.
— O Sr. Alberto de Oliveira, membro da Academia e professor de literatura do Colégio Pio Americano, em sinal de pesar pelo trágico acontecimento, suspendeu a aula, proferindo por essa ocasião, algumas palavras com referência ao extinto.
— A viúva do General Solon, sogra do ilustre morto, levou grande choque ao receber a notícia da tragédia de anteontem.
Seus filhos, por medida de precaução, visto ela estar bastante enferma, tomaram providências no sentido de deixá-la na ignorância dos pormenores do fato.
— O Dr. Cláudio Pinila, Ministro da Bolívia, enviou uma linda coroa de flores naturais, com a seguinte inscrição:
“La legación de Bolivia, al brillante literato y publicista Dr. Euclides Cunha.”
— A seguir à sua estréia brilhante no mundo das letras, com “Os Sertões”, o malogrado escritor, morto tão tragicamente, publicou obras importantes, às quais já ontem nos referimos.
Foram dadas à publicidade nas seguintes datas: “Os Sertões”, em 1902; “Constrastes e Confrontos”, em 1907; “Peru versus Bolívia”, em 1907; “Martin Garcia”, em 1908.
Em 1906 publicou também o “Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purús”, que foi muito apreciado.
No prelo deixa um volume “À Margem da História”.
— O pai do Dr. Euclides da Cunha, que é o Coronel José Pimenta da Cunha, fazendeiro em S. Carlos do Pinhal, Estado de S. Paulo, há cerca de um mês que está sofrendo de pertinaz enfermidade.
— A polícia acredita que fosse o estudante Dinorah de Assis, quando veio medicar-se na Assistência, quem passou o telegrama de S. Francisco Xavier para a casa do Dr. Euclydes, em Copacabana, nos seguintes termos:
“Angélica. – Satisfeita a tua vontade”.

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 de Agosto de 1909

Lamentável tragédia

NA ESTAÇÃO DA PIEDADE
OS IRMÃOS ASSIS
O ESTADO DOS FERIDOS

As pesquisas da polícia – Os depoimentos tomados – Na sede do 20º Distrito – Em Copacabana – Na residência da viúva – Informações importantes – No Hospital Militar – A intervenção cirúrgica – Pormenores interessantes – Notas e informações.

Ainda perdura dolorosamente no espírito público a impressão terrível que produziu a lamentável tragédia da Estrada Real de Santa Cruz, em que tombou, sem vida, o malogrado engenheiro Euclydes da Cunha.
Os comentários, atentas as circunstâncias que rodearam o ocorrido, são constantes e os mais desencontrados possíveis.
Não fosse o inquérito policial, conduzido com rara dedicação pelo Dr. Alcântara, Delegado do 20º Distrito, que muito se tem esforçado para a elucidação da verdade, e ficaria esse crime, como tantos outros, sepultados sob a primeira versão.

O Inquérito

tem revelado pormenores importantes para a ação da Justiça, conforme registramos na edição de ontem do “Jornal do Brasil”.
A autoridade trabalhou em seu gabinete até alta madrugada em companhia de seu escrivão, Sr. Anor Margarido, ouvindo várias testemunhas e procedendo a algumas acareações.
Ontem, o depoimento mais importante tomado, foi o da sexagenária Anna de Almeida, que se incumbia do preparo das refeições e da lavagem de roupas dos irmãos Dilermando e Dinorah de Assis, em cuja casa, como estarão lembrados os leitores, se deu o assassinato.
Essa testemunha, que, seja dito de passagem, foi, em tempo, criada de confiança da família do inditoso engenheiro, disse ao Delegado Dr. Alcântara, que D. Anna Solon da Cunha fôra quinta-feira, à tarde, à residência daqueles dois moços, regressando à noite para a cidade, afim de dormir na residência de sua mãe, em S. Cristóvão, para, no dia seguinte, ir visitar seu filho Euclydes, que se achava no Internato Bernardo de Vasconcellos.
Feita essa visita, voltou Dona Anna Cunha à Estrada Real de Santa Cruz, então acompanhada de seu filho “Lulu” e de Dinorah Assis, ficando, ali, hospedada até domingo.
Sábado, à tarde, apareceu Solon Cunha, outro filho de Dona Anna Cunha, que era, igualmente, íntimo dos moços, tanto que ali pernoitou.
Acrescentou a testemunha que, domingo, pela manhã, quando souberam da aproximação do Dr. Euclydes da Cunha, a esposa deste e seus dois filhos se ocultaram cautelosamente em um quarto existente nos fundos da casa, que servia de câmara escura para revelar chapas fotográficas.
Terminou dizendo que só dali saíram depois da cena de sangue.
Esse depoimento foi reduzido a termo na presença de duas testemunhas.
A autoridade ouviu novamente

Dinorah de Assis

que esteve detido na Delegacia, até ulteriores averiguações.
Relatou detalhadamente o ocorrido, sendo o seu depoimento perfeitamente igual, em linhas gerais, ao de Anna de Almeida, verificando, ainda, o Delegado a exatidão das informações anteriormente prestadas por D. Angélica Rato.
As relações de D. Anna Solon da Cunha com os irmãos Assis datam de quatro anos.
Dinorah tem passado relativamente bem, de seu ferimento, parecendo, não haver necessidade da intervenção cirúrgica para a retirada do projétil, que se acha alojado nas costas, não só por ser muito pequeno como por não prejudicar o organismo a sua permanência no sítio atingido.

Dilermando de Assis

o irmão de Dinorah, o principal protagonista da lamentável tragédia, continua recolhido ao Hospital Militar, sendo satisfatório o seu estado.
Ontem, pela manhã, visitou-o o Dr. Paula Guimarães, com quem conversou demoradamente, mostrando-se Dilermando seriamente acabrunhado com o ocorrido.
Passou a noite bem, sem febre, tendo repousado um pouco e aceitado algum alimento.
Seu médico assistente ainda não julga azada a operação.
É provável, porém, que, ainda esta semana seja levada a efeito a intervenção cirúrgica.
Novamente interrogado pelo Dr. Alcântara, Delegado do 20º Distrito, prestou as informações mais minuciosas possíveis sobre os precedentes do fato, que determinou a cena de sangue, pondo a polícia ao corrente do que se passava, relativamente às suas relações de amizade com Dona Anna Solon da Cunha.
A mesma autoridade voltou ontem, à tarde, à residência de

D. Anna Solon da Cunha

em Copacabana, reinquirindo-a sobre vários pontos omissos, em seu primeiro depoimento.
Ali esteve também, momentos antes, em diligência, o comissário Miranda, do 20º Distrito.
D. Anna aguardava a chegada de seu vestido de luto, que mandara fazer com urgência, para sair.
Iria falar ao Sr. Rio Branco, íntimo amigo de seu desventurado marido.
— Mas, ele, me receberá bem? perguntou a uma pessoa que se achava presente.
— Não creio que haja dúvidas a respeito…
— É que as intrigas que levantaram…
— Mas os jornais não fizeram alusões desairosas…
— Bem. Como vai o Dilermando? Passa bem dos ferimentos?
— Não tem gravidade alguma.
— E a bala da virilha?
— Não foi na virilha; foi na coxa…
— Então?
— É leve.
— Ainda bem, e o senhor escreva o que eu digo: vingar-me-ei dos intrigantes, custe o que custar, caso fique em dúvida a minha honestidade!
— !…
— E terei o auxílio dos rapazes. (Referia-se aos irmãos Assis).
Depois de pequena pausa continuou:
— O senhor bem pode avaliar, que eu não me iria apaixonar pelo Dilermando, que é um moço e dentro de alguns anos estará casado eu ficaria à margem. É certo que lhe dispensava muita amizade, tanto a ele como ao irmão, ao ponto de lhes dar as minhas economias, quando eles precisavam recorrer a mim.
— Meu marido não era rico – prosseguiu – ganhava, entretanto bom ordenado, o que me proporcionava fazer economias. E muitas vezes, – avalie o senhor, o grau de minha amizade – deixei de dar dinheiro a meus filhos para não deixar mal os irmãos Assis, que tinham de vestir-se e de pagar casa, etc.
Com a chegada de Mme. Cincinato Braga, que lhe ia dar pêsames, terminou essa palestra que procuramos reproduzir fielmente.
D. Anna Cunha pretende passar-se hoje para a residência da família do Deputado Sr. Coelho Netto, à rua do Roso n. 79, nas Laranjeiras.
— No inquérito policial, porém, foram apurados certos fatos, inclusive a permanência e pernoite da viúva, na Casa da Estrada Real de Santa Cruz, o que contradizem completamente as suas declarações acima dadas.
D. Anna Cunha fôra, também, há dias, visitar o pai de seu extinto marido, em S. Paulo, dizendo-se que o aspirante Dilermando seguira em sua companhia.
Nesta viagem, ao que apurou a polícia, gastou aquela senhora a quantia de 500$, sendo que 300$ foram dados por seu marido e 200$ pedidos ao sogro, em São Paulo.
Por esta razão houve desavença no casal, o que motivou a saída daquela senhora da companhia do marido.
Consoante ao nosso programa, deixaremos de mencionar outros fatos de caráter íntimo, dos quais não necessita mais o leitor para julgar dos precedentes da tragédia da Piedade.

Notas Avulsas

O Sr. Dinorah de Assis foi mandado em paz da Delegacia do 20º Distrito momentos depois de ser reinquirido.
— Por ocasião de ser ontem reinquirida a viúva D. Anna da Cunha, em sua residência, deu-se ligeiro incidente entre um cavalheiro, amigo da família, que ali entrou protestando contra as declarações prestadas por aquela senhora, dizendo que tal não deveria ter feito, e o Delegado que teve de chamá-lo a ordem.
— Diz-se que as despesas, tanto de roupa, como de casa e comida, dos irmãos Assis eram pagas por D. Anna da Cunha.

ESTADO DO RIO

Assembléia Fluminense

(…)
Na hora do expediente usou da palavra o Sr. Adílio Monteiro, que requereu fosse lançada em ata um voto de pesar pela morte do Dr. Euclydes da Cunha, sendo aprovado.
(…)

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 de Agosto de 1909

Lamentável tragédia

O Prosseguimento do Inquérito – O Acusado Dilermando – Seu Estado Agrava-se

Nada mais temos a acrescentar às minuciosas notícias publicadas pelo “Jornal do Brasil”, sobre a lamentável tragédia na estação da Piedade.
O que temos dito, aliás, baseado em pura fonte oficial, qual a dos autos do inquérito, já demonstrou, claramente aos leitores o que foi a lutuosa cena de sangue que vitimou o engenheiro Dr. Euclydes Cunha e quais as causas que determinaram o ocorrido.
Assim temos, apenas, a dizer que o Dr. Alcântara, Delegado do 20º Distrito, aguarda nova reinquirição do acusado Dilermando de Assis, que, como sabem, se acha recolhido ao Hospital Militar do Exército.
O seu estado, atualmente, não permite essa diligência, que será levada a efeito oportunamente.
Seus médicos assistentes, Drs. Paula Guimarães e Ivo Soares, aconselharam completo repouso ao enfermo, que ontem apresentou alguma febre e escarros sanguíneos.
A sua dieta tornou-se mais rigorosa.
Dos ferimentos que recebeu, o mais grave é o do peito, cujo projétil se acha alojado no pulmão direito, conforme demonstrou o exame radiográfico a que foi submetido.
A intervenção cirúrgica, porém, só terá lugar quando Dilermando recuperar inteira calma, porquanto se mostra de dia para dia, mais agitado.
— O Dr. Alcântara, Delegado do 20º Distrito, conferenciou ontem com o Sr. Dr. Chefe de Polícia sobre a triste ocorrência, expondo detalhadamente todas as diligências a que tem procedido a respeito.
S. Ex., aprovando todos os seus atos, elogiou a sua atividade e bem assim a de seus auxiliares.
— Aquela autoridade vai mandar examinar por dois peritos o chalé da Estrada Real de Santa Cruz, em que se deu a lamentável tragédia e fotografar várias peças, que serão juntas ao respectivo inquérito, constantes: da parede em que se acham cravadas várias balas de revólver; a cama em desalinho; o quarto em que se escondeu D. Anna Cunha com seus filhos e roupas encontradas na aludida casa.
— Comunicam-nos:
“Um grupo de sócios do Botafogo Foot Ball-Club, amigos e admiradores do aspirante Dinorah de Assis, mandam rezar uma missa em ação de graças na Igreja de S. João Baptista da Lagoa, às 9 horas de sexta-feira 20, em regozijo por ter escapado o mesmo quase ileso da tragédia passada na Estrada Real de Santa Cruz.”

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 de Agosto de 1909

Lamentável tragédia

NOVAS REVELAÇÕES
NA CASA DA ESTRADA REAL
TESTEMUNHA DE VISTA

As pesquisas da polícia – As descobertas de ontem – Uma criança assistiu à tragédia – Outros depoimentos – Dinorah na Delegacia –Notas diversas.

Importantes descobertas foram feitas ontem com relação à tragédia da Piedade, graças à atividade do Delegado do 20º Distrito, Dr. Oliveira Alcântara, que muito tem trabalhado para o seu completo esclarecimento, sendo auxiliado eficazmente nas diligências pelo escrivão, Sr. Anor Margarido.
Aquela autoridade foi ontem dar rigorosa busca na casa da Estrada Real de Santa Cruz n. 214 onde se passou a deplorável cena de sangue, sendo acompanhado por diversos representantes da imprensa.
Foram também peritos, nomeados para proceder a exame no local, bem assim para esclarecer alguns pontos que fossem do interesse da justiça.
Em caminho, tendo visto o estudante Dinorah de Assis, um dos irmãos envolvidos na tragédia, ordenou o Delgado a sua detenção, até ulterior deliberação, seguindo ele para a sede do 20º Distrito Policial.
Chegando à casa que se achava guardada por duas praças de polícia, soube a autoridade que Dinorah ali estivera antes procurando abrir a porta no que fôra impedido, apesar dele dizer que era morador e possuir a respectiva chave.
Naturalmente pretendia destruir qualquer indício que lá houvesse, visto que a visita da autoridade fôra anunciada pela imprensa.

Na Visita

ficou plenamente confirmado que D. Anna Solon da Cunha, acompanhada de dois filhos, pernoitara naquela casa na noite anterior à tragédia.
Denunciavam isto não só os leitos adrede preparados, em desalinho, como as xícaras de café que serviram na primeira colação da manhã.
Outras provas colheu a autoridade da presença de Dona Anna, como sejam: pentes e travessas de senhora, ainda com fios de cabelos; um par de botinas n. 38, já usadas; um par de sandálias; um “peignoir” branco com rendas, demonstrando bastante uso; roupas brancas de senhora, etc., etc.
Patenteavam estas peças de roupa tais torpezas, uma perversão tão repelente, que não puderam os presentes fugir a um gesto de repulsa.

Duas Malas

Mandou o Delegado que fossem arrombadas duas malas encontradas nos aposentos dos dois irmãos Assis.
De uma foram retiradas muitas roupas de homem, achando-se no fundo uma diversidade de retratos de mulheres, com dedicatórias amorosas, não tendo conta as cartas assinadas e escritas por mãos femininas.
Encontraram-se, cinco dúzias de colarinhos e cinco pares de botinas, pertencentes ao aspirante Dilermando de Assis.
Havia uma conta da alfaiataria Mendonça, à rua Gonçalves Dias no valor de 385$ assinalando o recebimento de 200$000.
Outra conta lá estava, na importância de 328$900, de um fornecedor de gêneros, perfazendo estes a quantia de 197$100 e sendo o restante de dinheiro emprestado.
Tudo isto era pago por D. Anna Solon, bem como o aluguel da casa, que era de 100$000.
Foram descobertas ainda, em uma das malas, doze cautelas de penhores representando jóias de senhora, na importância de réis 688$000.
Essas jóias tinham sido caucionadas recentemente, o que se verifica nas datas das cautelas apreendidas.

Sobre a Tragédia

também muito apurou ontem o Delegado Dr. Oliveira Alcântara.
Começou por verificar que o aspirante Dilermando atirava contra a vítima de dentro de seu quarto, com a porta fechada, denotando isso terem sido encontradas duas perfurações por bala na madeira da mesma porta, indo os projéteis se encravarem na parede fronteira.
Com relação à chegada do Dr. Euclydes da Cunha, pela manhã, na Piedade, soube a autoridade que ele se dirigira a um vizinho da casa sinistra de nome Constantino Fontainha Cabral, entregador do “Jornal do Commercio” e morador no prédio n. 216 da Estrada Real de Santa Cruz.
Constantino, um português de maneiras rudes e francas, expôs ontem ao Delegado a cena que se passara entre ele e o malogrado escritor, lamentando que tivesse sido quem lhe indicara a casa dos irmãos Assis.
Disse que Domingo último fôra abordado por um homem desconhecido que indagava onde ficava a citada casa, dizendo ele que os rapazes eram seus vizinhos.
Nessa ocasião entrou em um açougue para comprar carne apontando ao seu interlocutor, o local da casa.
Saindo mais tarde, do açougue, soube então da tragédia.
A esposa desta testemunha, D. Maria Augusta Fontainha Cabral, informou à autoridade que a casa dos rapazes era assiduamente freqüentada por uma senhora e que esta senhora lá estava no momento da cena de sangue, porquanto a vira pela manhã despejar uma bacia d’água de uma janela.
De mais importância é ainda o

Depoimento de uma Criança

A menina Celina, de 9 anos de idade, filha do casal acima indicado, foi testemunha casual da morte trágica do Dr. Euclydes da Cunha.
Domingo, pela manhã, ouvira a criança diversos estampidos partidos da casa contígua, julgando serem eles de bombas chilenas que os rapazes estivessem queimando, como sempre faziam, principalmente quando lá estava uma senhora a passeio.
Por curiosidade foi ver o que era, deparando então com um homem a correr da casa para o jardim, sendo perseguido pelo vizinho mais velho, segundo disse a menor.
Pôde ver ainda o vizinho disparar dois tiros contra o homem gritando para ele: “cachorro, que cachorro!”
O homem desconhecido, que era o Dr. Euclydes, caiu, dizendo: “miserável!”
De muita importância é esse depoimento, dando margem à outras investigações policiais, para a elucidação do assassinato do malogrado escritor.

Notas Avulsas

Na mesa de jantar dos irmãos Assis, além de xícaras de café, estava uma obra de Schnan Logerlof – “Cura de um louco”, de propriedade do Dr. Euclydes Cunha, segundo denota um carimbo com o nome do malogrado escritor.
— O estudante Dinorah confirmou ontem na Delegacia do 20º Distrito, o seu segundo depoimento, dizendo que D. Anna Solon pernoitara em sua casa.
— A polícia apurou que o menor Solon pretendeu subtrair a carteira de seu pai, atirando-a depois para baixo de uma cama, segundo verificou o comissário Gouvêa.
Este menor foi intimado a depor.
Ainda ontem o Delegado do 20º Distrito não conseguiu tomar novas declarações do aspirante Dilermando, que se acha recolhido ao Hospital do Exército.
— Esteve na redação do “Jornal do Brasil”, ontem, à noite, o menor Solon Cunha, filho do malogrado escritor, que nos veio pedir para declarar não ser verdade que fosse visitar o aspirante Dilermando no Hospital.
Disse também que as autoridades policiais procuram caluniá-lo, dizendo que ele pretendeu se apossar da carteira de seu pai.
O menor Solon declarou mais que estava na casa da Estrada Real de Santa Cruz, por ocasião da tragédia, sabendo que seu pai fôra atacado e que tivera de lutar com os irmãos Assis, o que bem deve saber o compositor Mário Horta que correra ao local.
Esta testemunha, que deve ser ouvida quanto antes pelo Delegado, muito deve esclarecer a cena de sangue.

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 de Agosto de 1909

Lamentável tragédia

O prosseguimento do inquérito – Novas Diligências – O Exame das Armas – Notas e Informações

O Dr. Oliveira Alcântara, Delegado do 20º Distrito, prosseguiu ontem no inquérito relativo ao assassinato do Dr. Euclydes da Cunha, ouvindo duas criadas do malogrado escritor, de nomes Basília e Rosa e, bem assim, algumas pessoas da vizinhança da vítima.
Nada adiantaram ao que já sabem os leitores do “Jornal do Brasil”, nem quanto às relações de intimidade entre D. Anna Solon da Cunha e Dilermando de Assis, nem quanto ao crime.
A aludida autoridade oficiou ontem ao Diretor do Hospital Central do Exército pedindo a remessa de um revólver que foi encontrado em poder de Dilermando quando deu ali entrada.
Essa arma e as de que se serviram o inditoso homem de letras e o próprio acusado vão ser examinadas por dois peritos nomeados pelo Delegado, que juntará o laudo aos autos do inquérito que já está bastante volumoso.
— O Delegado do 20º Distrito esteve ontem, mais uma vez, no local da tragédia da Piedade, acompanhado do escrivão e do estudante Dinorah de Assis, um dos figurantes da cena de sangue.
Dinorah prestou-se a reconstituir essa cena de sangue, tendo aquela autoridade nomeado o engenheiro Segurado, para fazer o “croquis” da referida cena.

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 de Agosto de 1909

Lamentável tragédia

MISSA POR ALMA DA VÍTIMA
— AS PESSOAS PRESENTES

Por alma do inditoso escritor Dr. Euclides Cunha, foi ontem rezada na Igreja de S. Francisco de Paula, uma missa solene com Libera-me.
O piedoso ato foi mandado celebrar pelo pai do ilustre extinto Sr. Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha e pelos Srs.: Dr. Octaviano da Costa Vieira, senhora e filhos (ausentes), Arnaldo Pimenta da Cunha, Nestor Augusto da Cunha, Desembargador José Antonio Gomes e filha, pai, cunhado, irmã, sobrinhos e primos do morto.
No centro do vasto e suntuoso templo, que tinha uma assistência crescida, achava-se armado um catafalco, rodeado de tocheiros e círios.
Tomaram parte nos solos entoados em volta do catafalco os Revms. Padres Francisco Pinto da Cunha, Martins Dias, Olympio de Castro, Silveira Madruga e Serafim de Oliveira.
Foi celebrante o Revd. Monsenhor Moura Guimarães, tendo por diácono o Padre José Maria da Rocha e por sub-diácono o Padre Epaminondas Rolim, sendo mestre de cerimônias o Revd. Padre João da Matta Tarié.
Acolitaram os sacerdotes celebrantes os sacristãos Cypriano Corrêa, Clóvis Lamgruber e Nicácio Baez.
No coro o professor Tavares executou ao órgão diversos trechos sacros.
O altar-mor e a respectiva banqueta e trono estavam iluminados e cobertos de crepe, deixando ver ao fundo o crucifixo.
A cruz alçada foi conduzida pelo Sr. Alberto de Carvalho.
Entre o avultado número de pessoas presentes, vimos os Srs.:
Capitão-Tenente Galvão Bueno, pelo Presidente da República; Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores; Almirante Carlos Balthazar da Silveira, Barão Homem de Mello, Deputado Francisco Veiga, General José Christino Pinheiro Bittencourt, Dr. Ângelo da Veiga, Dr. Araújo Jorge, General Olympio da Silveira, Conselheiro A. Coelho Rodrigues, General Bellarmino de Mendonça, Tenente Arthur Alves, Coronel Rodolpho Nunes Pereira, Dr. João Pedro de Aquino, Diretor do Externato Aquino; Dr. Raul Pederneiras, General Thaumaturgo de Azevedo, Dr. Theotonio de Meirelles, Agenor de Carvoliva, Mme. Macedo Soares, Mme. Celso Guimarães, Mme. Ernesto Machado Guimarães, Coronel Ernesto Senna, Comendador Antonio Rodrigues Ferreira Botelho, Dr. Eduardo Machado, Dr. Carlos de Araújo, Antonio Pereira Leitão, José Maria Pereira e Castro, Benedicto B. de Oliveira Júnior, Frederico Alves, Fábio de Azambuja, Fernando de Azambuja, Manuel José de Campos, João Luso, A. Gasparom, Coronel Joaquim Lacerda, Dr. Luiz Bahia, ator Domingos Machado, Manuel Antonio da Silva Pillar e família, Amary Aché Pillar por si e por seu tio o Coronel Napoleão Aché, Miguel Vasco, Oswaldo O. Storino, Joaquim Henrique Coutinho, Felix Pacheco, Coronel Benjamin Carvoliva, Elistário Malta da Costa, Elysio Silva Pinheiro, pelo terceiro ano do Colégio D. Pedro II; Carlos Bittencourt, Lucindo da Costa Pires Trino, Alfredo Henrique da Costa, Luiz P. da Costa, Enéas Martins, Domingos de Castro Lopes, Cid de Menezes Pádua, Lauro Salles da Silva, Santos Maia, Raphael Holanda, Oswaldo Ferreira de Mendonça, José Beriene de Almeida, Luciano Fragoso pelo Major Tarso Fragoso, Antenor Guimarães, Aty Kernex, Gil de Araújo, Dr. Xxixerceiro Lima, Dr. , Oscar Corrêa, Moniz de Aragão, Francisco S S , Adroaldo Solon Ribeiro, Adolpho de Almeida Figueiredo, Felix Pereira Marques, Ernart Menezes da Cunha, Alfredo Santos, Antonio Luiz Pereira, Victor Rossigneux, Dr. Fernando Terra, Dr. Beato Lisboa, Dr. Aristeu de Andrade, Walfrido Ribeiro, João Barbosa por si e representando o Dr. Júlio de Mesquita e o Estado de São Paulo, Oscar Peckolt, M. G. Moreira, Dr. Amaral Peixoto, João Coelho dos Santos, Hemetto, Vianna Figueiredo, Dr. Moura Ferreira, Dr. Pimenta de Mello, Hugo Wldmann, Dr. Petit Carneiro, Laemmert & C., Olindo Pinto Coelho, Eduardo Veiga, Araken Coutinho, Dr. Amaral Peixoto, Leôncio Corrêa, Gastão Betim, Dr. Eurico de Góes, Manuel Pires Ferreira, J. M. Cardoso de Oliveira, Raymundo de Abreu, Raul Barreto Maranhão, Barros Moreira, Dr. F. Simões Corrêa, Annibal Vianna, pelo Instituto Affonso Pena; Alfredo Guimarães, R. Moutinho Doria, Comendador Baldomero Carqueja Fuentes, Olympio Mendes, Joaquim Eulálio, Dr. Frederico C. Costa Brito, Alexandre da Costa Nunes, Annibal Babo, Horácio Boson, Vito N. Campos, Dr. Vergae de Abreu, Francisco Eduardo de Vasconcellos, Dr. Barros Almeida Castro, Dr. Lopes Rodrigues, Manuel Freire dos Santos, Tenente Alfredo Lemos, Graciano Pedroso, Joaquim Dias dos Santos, Frederico Furtado Cavalcanti, Mário Soares Magalhães, Oswaldo Duarte, Mário Barros Lins, Octavio Salles, Oscar Madeira, Alberto Terra, Horácio Dias, Bernardino Fonseca, Sócrates Pinto, Antonio Coelho Bittencourt, Jayme de Almeida, Manuel José da Silva, Alcino Chaves da Silva, Horácio Alves Moraes, Dr. Ernesto de Araújo Vianna, Victor Vianna, Carlos Vianna, Américo Pereira da Silva Pinto, Gustavo Augusto de Rezende, José Alves Ferreira Chaves e senhora, Alfredo Ferreira Chaves, Major Antero de Sequeira, Capitão Virgilio Lopes Rodrigues, Mário Nunes de Oliveira, Alcides de Souza Coutinho, Gustavo de Castro Rebello Kock, D. Maria Antonia Caminha, Alberto Francisco Xavier da Veiga, Edgard Pinto Ribeiro Duarte, J. S. Paes Leme, Antonio O. Moraes Lacerda, pelos alunos do segundo ano do Colégio D. Pedro II; Bento Joaquim Belinha; Dr. Guilherme de Moura, Dr. Alcides Medrado, Dr. João O’Dweyer, Dr. Cruz Abreu, Dr. Bellarmino de Mendonça Filho; Dr. João Baptista Campello, Roberto Moreira da Costa Lima, Leopoldo Coelho de Gouvêa, Manuel Lourenço Ferreira, Dr. Alfredo Balthazar da Silveira, João d’Ávilla Mello, Oliveira Coelho, Antonio J. Monteiro, engenheiro Bernardo Ribeiro de Freitas, Dr. Pedro Luiz Soares de Souza, Alfredo Alexander, Fritz Coelho, Dr. Olympio da Fonseca, Cyro Farina, Pedro Custódio Biolchini, Fernando Pinto Lisboa, pelo 1º ano do Colégio D. Pedro II; Genio Peres, Adroaldo Solon Ribeiro, comissário de polícia; Mlle. Archinéu Solon Ribeiro, Marino da Silva Oliveira, Mário Gomes, Edgard de Souza Telles e Oscar Affonso Alves da Cunha, pelo Colégio Pedro II; Dr. Pereira Lessa, Euclydes de Moraes, Dr. Quinto Alves e Luzim de Carvoliva.
— A viúva, D. Anna Solon da Cunha, que se acha de cama, assim como seu filho Affonso, de quatro anos de idade, mandou ontem chamar o delegado do 20º Distrito à sua residência, em Copacabana, afim de lhe declarar estar arrependida de haver escrito certa carta aos jornais, dizendo haver sido “forçada” a prestar o seu último depoimento.
Prometeu, entretanto, logo que melhorar, a prestar novas e sinceras declarações.
— Uma comissão do Ministério das Relações Exteriores esteve ontem na residência do malogrado escritor separando os papéis de importância do seu arquivo, os quais foram confiados à guarda da viúva.
— Hoje o Delegado do 20º Distrito ouvirá duas testemunhas cujos depoimentos julga a autoridade de muita importância para o inquérito.
— O engenheiro Dr. Segurado, perito nomeado pela polícia, levantou ontem a planta diferencial dos dois planos da casa em que se deu a tragédia; o superior em que se achava Dilermando na ocasião em que desfechara o último tiro sobre o Dr. Euclydes da Cunha e o inferior em que se achava este quando caiu para não mais levantar-se, medindo, também, as alturas dos dois personagens.
— Uma comissão de alunos da Escola de Artilharia e Engenharia do Realengo, vai pedir ao Sr. Ministro da Guerra conselho, de disciplina para o seu colega, o acusado Dilermando de Assis.
— O Delegado não pôde ouvir ontem Dilermando por ter sido informado de que o mesmo piorara consideravelmente.
À última hora, porém, soubemos que o seu estado não inspirava grandes cuidados.
Apenas os seus médicos assistentes verificaram a impossibilidade da extração do projétil do pulmão.

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 de Agosto de 1909

Lamentável tragédia

O prosseguimento do inquérito – Os trabalhos de ontem – Nomeação de peritos

Na Delegacia do 20º Distrito prosseguem com atividade os trabalhos da autoridade para o encerramento do inquérito sobre a tragédia da Estrada Real de Santa Cruz, que vitimou o desditoso engenheiro Dr. Euclydes da Cunha.
O Dr. Oliveira Alcântara, Delegado do Distrito, conforme noticiamos, ouviu ontem uma testemunha de vista, que foi Joaquim Vaz de Araújo, empregado da Companhia Leopoldina, residente na casa fronteira ao teatro do crime.
Disse que, no dia em que se deu o fato, isto é, domingo atrasado, se achava em casa, quando ouviu detonações de tiros de revólver.
Como seus filhos menores estivessem brincando na rua, correu pressuroso à janela, verificando que os tiros partiam da residência de Dilermando, vendo este, à porta, empunhando um revólver e o Dr. Euclydes da Cunha, que se achava no jardim, cair ferido por Dilermando.
— O Delegado, ainda ontem, recebeu informação do Hospital Militar de que Dilermando de Assis, o acusado, continuava em estado grave, não podendo, por esse motivo, ser interrogado sobre o crime.
Somos informados, porém, de que isso não é verdadeiro, porquanto, esse moço tem melhorado bastante, a ponto de ter sido visto ontem à janela da enfermaria, onde se conservou por algum tempo, lendo os jornais do dia.
— Foram ontem nomeados os seguintes peritos: Drs. Rodrigues Caó e Sebastião Côrtes para o exame das roupas que vestiam no dia do crime o acusado Dilermando e seu irmão Dinorah; Drs. Cunha Cruz, Diógenes Sampaio, Dantas Salles e Afrânio Peixoto, para o das roupas retiradas do cadáver do Dr. Euclydes da Cunha e o engenheiro Manuel Segurado para o das balas encontradas e das armas apreendidas.
— Causou péssima impressão na polícia o fato de haver Dinorah de Assis, um dos protagonistas da tragédia, tomado parte no “match” de “foot-ball”, ontem disputado no “ground” da rua Paysandu.
— O Delegado apresentou aos peritos incumbidos do exame das roupas que vestia Dilermando, os seguintes quesitos:
1º – Existem vestígios por projétil de arma de fogo na camisa e dólman, apresentados?
2º – Quantos e quais?
3º – Pelos orifícios encontrados podem determinar o calibre da arma usada?
4º – Esses orifícios coincidem com os projéteis apresentados?
5º – O chamuscado que se vê no punho da camisa, foi feito por arma de fogo?
6º – Em que posição devia estar o braço de forma a poder ser chamuscado o punho da camisa, parte interna, por arma de fogo?
7º – Por essa posição podem determinar se o projétil que perfurou os punhos da camisa e dólman é o mesmo que causou a mossa junto do 5º botão no mesmo dólman?”
Aos peritos incumbidos do exame das roupas de Dinorah, foram estes:
1º – Existem vestígios por projétil de arma de fogo no dólman branco a exame? Quantos e quais são?
2º – Pelos orifícios desses vestígios podem os peritos determinar o calibre da arma usada?
3º – Os orifícios encontrados no dólman coincidem com o projétil apresentado?
4º – O chamuscado que se vê na manga do dólman, braço esquerdo, foi feito por arma de fogo?
Esses quesitos que deviam ser formulados logo no início do inquérito, serão, entretanto, apresentados “sete” longos dias depois, com prejuízo evidente da ação da justiça, pois exames dessa natureza são feitos 24 horas depois, não dando tempo a que desapareçam vestígios nem a que os acusados se combinem para uma defesa uniforme.
Demais, quando o Dr. Delgado pretende apresentar os quesitos que deverá responder os peritos incumbidos do exame das roupas que trazia o cadáver?
A demanda é ainda, mais prejudicial.
Em todo caso esperemos mais um dia.

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 de Agosto de 1909

Lamentável tragédia

Nova testemunha interrogada – Prosseguimento do inquérito – Outras informações

Foi ouvida ontem mais uma testemunha de vista da cena de sangue desenrolada, na manhã de 15 do corrente, na Piedade.
Chama-se D. Henriqueta Medeiros de Araújo e estava em sua casa, fronteira àquela em que se deu a tragédia, quando viu o aspirante Dilermando disparar um tiro de revólver contra o Dr. Euclydes da Cunha, achando-se este já no jardim.
Nada mais viu a testemunha, que teve um desmaio neste momento.
O Dr. Oliveira Alcântara, Delegado do 20º Distrito, além de ouvir esta testemunha, redigindo diversos quesitos para serem apresentados aos peritos que devem examinar as armas de que se serviram o acusado Dilermando e o malogrado escritor.
A autoridade formulou também quesitos para os peritos que vão examinar o local da tragédia, e que são os seguintes:
“1º – Existem nas paredes do corredor e da sala de visitas da casa n. 214 da Estrada Real de Santa Cruz, e na porta do primeiro desse corredor, à esquerda de quem se dirige da sala de visitas para a sala de jantar, vestígios produzidos por projétil de arma de fogo?
2º – Quantos e quais são?
3º – Por estes vestígios podem os peritos determinar o calibre das armas usadas?
4º – Podem determinar por qual das armas apresentadas a exame foram feitos esses vestígios?
5º – Por esses vestígios podem determinar o ponto de partida dos projéteis?
6º – Pelo ponto de partida dos projéteis e pela sucessão dos vestígios podem determinar a direção tomada pelos contendores?
Ouvimos que o inquérito será encerrado, sem que a autoridade tenha conseguido interrogar novamente o aspirante Dilermando.

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 de Agosto de 1909

Lamentável tragédia

Os peritos nomeados para proceder a exame nos vestígios de bala, encontrados na casa da Estrada Real de Santa Cruz, onde se deu a recente tragédia do Dr. Euclydes da Cunha, apresentaram já o respectivo laudo ao Delegado do 20º Distrito Policial.
Damos abaixo os quesitos formados e as competentes respostas:
“Primeiro quesito: Existem nas paredes do corredor e da sala de visitas da casa n. 214 da Estrada Real de Santa Cruz e na porta do primeiro quarto desse corredor, à esquerda de quem se dirige da sala de visitas para a sala de jantar, vestígios produzidos por projétil de arma de fogo?
Resposta: Sim, existem vestígios produzidos por projétil de arma de fogo.
Segundo quesito: Quantos e quais são?
Resposta: Dois na parede do corredor, dois na porta do primeiro quarto já aludido, um na fechadura da porta da sala de visitas e corredor e um na parede da sala de visitas, sendo de notar que os dois vestígios encontrados na porta do quarto citado estão em visível correspondência, o primeiro com um dos vestígios da do corredor, também já aludido, e outro com o vestígio da parede da sala de visitas, sendo, portanto, produzidos pelos mesmos projéteis respectivamente.
Terceiro quesito: Por esses vestígios podem os peritos determinar o calibre dos canos usados? No caso afirmativo, quais são?
Resposta: Podem, porquanto as medições dos orifícios de entrada dos projéteis na porta do quarto referido em outros quesitos correspondem em m/m aos calibres 380 (revólver francês) e 38 (revólver americano), e ainda mais porque três desses projéteis foram encravados, dois na parede do corredor e um na fechadura da porta da sala de visitas e corredor, cujos diâmetros da parte posterior não amolgada pela resistência da alvenaria facilitam o perfeito confronto com os diâmetros das cápsulas detonadas.
Quarto quesito: Podem os peritos determinar por qual das armas apresentadas foram deixados esses vestígios. No caso afirmativo, por qual das duas, pela do primeiro calibre ou do segundo?
Resposta: Sim. Os peritos abaixo assinados determinam que foram feitos esses vestígios pelo projéteis da arma calibre maior (38 S. e W.) dentre as duas que lhes foram apresentadas.
Quinto quesito: Por esses vestígios podem determinar o ponto de partida dos projéteis?
Resposta: Sim, o ponto de partida dos projéteis foi o interior do quarto já citado, estando, quem da arma fez fogo, em sucessivas posições com relação à porta, que em sua metade fechada foi atravessada de dentro para fora por dois desses projéteis, como ficou dito.
Sexto quesito: Pelo ponto de partida dos projéteis e pela sucessão dos vestígios encontrados, podem determinar a direção tomada por dois contendores?
Resposta: Como já ficou dito, é de presumir o contendor que fazia uso da arma de maior calibre estando dentro do quarto já aludido e o outro no corredor, entre as duas portas dos quartos que com ele comunicam, mais próximo da primeira já referida do que da segunda, se dirigissem, este para a sala de visitas e aquele tomasse dentro dos quartos posições, de modo a nunca perder de vista o seu adversário, pois os vestígios feitos pela arma de fogo se sucedem nesse sentido até o último que, atravessando, como dissemos, a porta, resvalou na parede da sala de visitas em direção diagonal à dita porta.
O croquis junto a que se refere o auto de exame e cuja necessidade mostraram os peritos, melhor orientará sobre as respostas acima e como pensam os peritos.”
Laudo do exame do jardim e soleira da porta da entrada da sala de visitas:
“Quesito único: Qual a diferença de nível entre a soleira da porta da entrada da sala de visitas e o solo do jardim da casa n. 214 da Estrada Real de Santa Cruz, isto é, qual desses pontos está em nível superior?
Resposta: A diferença de nível entre a porta de entrada da sala de visitas e o solo do jardim do prédio é de 0m.75 em média, sendo que a porta está em plano superior.”
Acompanha as respostas uma planta demonstrativa dos compartimentos do prédio, estando assinalados os locais onde os projéteis passaram e onde se encravaram.
— O Dr. Oliveira Alcântara, Delegado do 20º Distrito, conseguiu ontem obter novas declarações do acusado Dilermando de Assis.
Confessou ele que D. Anna Solon da Cunha se achava em sua casa, desde a sexta-feira anterior à tragédia, para ali indo contra a sua vontade, pois se apresentou dizendo que ia sair da companhia do marido.
Declarou ela então que estava resolvida a ficar em companhia dele, Dilermando, sujeitando-se a todos os sacrifícios.
O acusado declarou à autoridade que pretendia fazer a sua defesa pela imprensa.
— Devem ser hoje ouvidos no inquérito os Srs. Dr. Capanema de Souza e João Ribeiro da Silva, que assinaram como testemunhas no auto de flagrante, lavrado contra Dilermando.

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 de Agosto de 1909

Lamentável tragédia

FALA O ASPIRANTE DILERMANDO DE ASSIS
AS ÚLTIMAS DILIGÊNCIAS
NO HOSPITAL MILITAR

Depoimentos importantes – Um filho do malogrado escritor – Como relata o assassinato de seu pai – Os precedentes – Resolução extrema – O estado do acusado – A sua incomunicabilidade – Um pedido que fez ao Delegado – O encerramento do inquérito policial – Notas e informações.

O Dr. Oliveira Alcântara, Delegado do 20º Distrito Policial, resolveu não mais tomar os depoimentos dos Srs. Dr. Capanema de Souza e Capitão João Ribeiro da Silva, comandante da Guarda Noturna de Inhaúma, que assinaram como testemunhas o auto das primeiras declarações prestadas pelo acusado aspirante Dilermando de Assis.
Essa autoridade assim resolveu depois de ter estado, pela manhã, acompanhado de seu escrivão Anor Margarido,

No Hospital Central do Exército

onde interrogou o aspirante Dilermando de Assis.
Este apresentou-lhe para ser reduzido a termo, o seu depoimento, escrito a lápis, em papel oficial do Hospital.
É longo e foi por ele lido com a maior calma, apesar de se queixar de dores no ferimento da virilha.
De vez em quando emendava trechos, que lhe não pareciam claros, prestando grande atenção ao que o escrivão ia reduzindo a termo.
Foi demorado

O Depoimento do Aspirante Dilermando

que é concebido nos seguintes termos:
“Tendo se levantado tarde, às 10 horas da manhã, mais ou menos, do dia 15 do corrente, tomava café em companhia de D. Anna, Solon e Dinorah, que, finda a sua refeição, levantou-se Dinorah nada lhe dizendo e regressando pouco depois para lhe comunicar que o Dr. Euclydes da Cunha se achava à porta, batendo; como se achasse em mangas de camisa, ordenou-lhe que mandasse entrar para a sala de visitas, enquanto o declarante vestia uma túnica em seu quarto, tendo D. Anna e Solon se conservado na sala de jantar, dizendo ao declarante que não deixasse o Dr. Euclydes entrar, afim de se não demorar.
Sem, colarinho se preparava para ir ter à sala, abotoando-se, quando ouviu, além do ruído dos passos do Dr. Euclydes, rápidos e em direção ao seu quarto, pronunciar as palavras: “matar e morrer”.
Que, quando se abrira a porta, o que foi feito com um ponta-pé, dado pelo Dr. Euclydes, não tivera tempo para evitar o seu encontro, só teve tempo de lhe perguntar: “que é isso, doutor”, e desfechara o primeiro tiro contra o declarante, dirigindo-o à virilha direita, retrucando-lhe: “Bandido, desgraçado”; e pouco depois: “Mato-os”; que ante tão súbita quão inesperada agressão, desarmado, procurou subjugá-lo, passando à porta do seu quarto, tentando aproximar-se de seu adversário sem o conseguir, pois este recuava, quando um tiro no peito o fez oscilar e retroceder, entrando novamente em sua câmara de repouso; que Dinorah, que o seguiu da sala, onde vira empunhar o revólver, tentou agarrar o Dr. Euclydes, o que não conseguindo, devido a ser alvejado, deitou a correr para os fundos da casa, quando foi ferido nas costas; que os movimentos do doutor, bruscos, eram acompanhados de imprecações e interjeições lancinantes, bem como de constante ação na tecla do revólver; que tinha os olhos desmesuradamente abertos, espuma pela boca, em uma agitação horrível; que, entrando em seu quarto, enquanto ele atirava em seu irmão, conseguiu tomar de uma prateleira um dos seus revólveres, calibre 38, Smith and Wesson, que se achava carregado, e, chegando à porta que dá para o corredor, dirigindo para a sala, em sentido contrário ao em que se encontrava o Dr. Euclydes, fez um disparo, afim de intimidá-lo, pois o seu intento era contê-lo e fazer cessar o tiroteio para então lhe falar calmamente; que um segundo tiro foi disparado nas mesmas condições, porém para a esquerda, pois à detonação o doutor corria para a sala, parando à porta do quarto do declarante, de onde alvejou-o novamente, não logrando infelizmente o seu expediente posto em prática o efeito almejado, pois, amedrontado, segundo lhe parece, assim tomou o doutor o ataque contra o declarante, tentando defender a sua vida, redobrando a sua ânsia; que, recebendo o quarto ferimento, produzido por um projétil de velocidade resultante enfraquecida pela transposição de algum corpo sólido interposto, que foi o que mais sentiu, pois não penetrara, produzindo uma grande equimose sobre uma das costelas direitas, alvejou-o no ombro direito, porque o adversário tendo o seu flanco esquerdo então apoiado à parede do corredor e quarto, só lhe mostrava o flanco direito; que, sem acionar as teclas do gatilho, o Dr. Euclydes, fugindo de costas, voltado para o declarante e este, perseguindo-o, chegou ao meio da sala, de onde deitou a correr, dando-lhe aí da porta da sala e corredor, onde se achava então o declarante, o último disparo; que, como pela janela aberta não o visse sair nem passar pelo jardim, chegou à porta da sala que dá para o jardim, empunhando o revólver, pronto para atirar, na suposição de que o Dr. Euclydes estivesse oculto, preparando-lhe uma emboscada; que então, vendo-o caído, de bruços, com as costas totalmente voltadas para cima, tendo o rosto voltado para os fundos da casa e ainda acionando a tecla do gatilho, quando, correndo, chegou Solon, que vinha do interior da casa e vendo seu pai caído, lhe perguntou: “Mataste, meu pai? Ah!” e puxou do revólver procurando fazer uso, não sabendo o declarante com que intenção, no que foi obstado por haver o declarante o prendido, sem movimentos, até chegar Dinorah, que o desarmou; que se aproximou então do doutor, conjuntamente Dinorah e Solon; que, perguntando que “loucura foi essa?”, “que desvario?”, “Veja o que fez!”, ao que respondeu: “que gente”, “odeio-te”, “honra”; que, auxiliado por Solon e seu irmão Dinorah transportou-o para o seu leito, onde procurou tratá-lo, friccionando-lhe o peito com drogas que tinha às mãos; que nessa ocasião o Dr. Euclydes disse algumas palavras entre as quais: “intrigas”, “perdôo-te” ou “perdão”, chegando nesse ínterim D. Anna que, vindo do interior da casa, pôs-se a chorar, lastimando o fato e dizendo algumas frases que o declarante não se recorda, lembrando-se, porém, que as mesmas eram de lástima e censura; que, saindo então para pedir a algumas pessoas das que acercavam-se já da casa, que fossem chamar um médico com toda a urgência e comunicar o fato à polícia e a um seu colega para que fosse este à escola comunicar o ocorrido; que feito isto tomou o quarto e ali acercou-se do leito, endireitando o braço fraturado do Dr. Euclydes, friccionando-lhe ainda mais o corpo, ao lado de D. Anna, Solon e Dinorah, que chegara de regresso da rua, pois fôra providenciar sobre a transmissão de alguns despachos telegráficos; que assistiu os últimos momentos do Dr. Euclydes da Cunha, verificando a morte com um espelho; que recebeu o médico, Dr. Capanema, conduzindo-o ao seu quarto, confirmando esse facultativo o passamento do Dr. Euclydes; que mandou depois medicar seu mano que desfalecera, sendo finalmente pensado pelo clínico acima citado.
Interrogado pelo Dr. Oliveira Alcântara o declarante disse mais que D. Anna o procurara na quarta-feira, 12 do corrente, em sua casa, à Estrada Real de Santa Cruz; que uma vez aí, D. Anna expôs ao declarante a situação difícil em que se achava perante seu marido, a quem tinha proposto o divórcio e de quem amargamente se queixava; que depois de jantar, ao escurecer, o declarante acompanhou D. Anna ao largo do Machado, onde a mesma havia marcado um “rendez-vous” com DD. Angélica e Lucinda Ratto; que aí chegados tiveram conhecimento por Dinorah e Solon, que essas senhoras não compareceram e que o Dr. Euclydes se achava aborrecido com a ausência de D. Anna; que à vista disto e estando o menor Euclydes adoentado no Ginásio, D. Anna pediu ao declarante, Dinorah e Solon, que a acompanhassem para a casa de sua mãe no Campo de S. Cristóvão; que, feito isto, o declarante retirou-se para sua casa; que só no dia seguinte, à tarde, de regresso da aula, encontrou em sua residência a esposa do Dr. Euclydes da Cunha; que aí permaneceu até domingo, dia em que se desenrolou a tragédia; que Solon chegara à sua casa, sábado, à noite, dizendo-lhe que o Dr. Euclydes se achava exaltado e que convidou sua mãe a regressar para casa do seu pai, no que ela não atendeu, por estar chovendo e por temer o estado de seu marido e por estar também de vestido branco, não obstante ter sido cientificada por Solon da doença de um outro filhinho; que Solon não obstante mostrar-se contrariado com a resolução de sua mãe, deliberou aí pernoitar, afim de a acompanhar no dia seguinte, sendo certo que Solon se mostrava também contrariado com o declarante, sem contudo travar discussão exaltada com o declarante; que pode afirmar ter Dinorah aberto a porta da sala, pois o fez a mando do declarante, não podendo asseverar ter o mesmo aberto o portão do jardim, que, entretanto, pode afirmar que esse portão não se achava fechado, pois a chave do mesmo trazia-a sempre consigo; que não temeu receber em casa o Dr. Euclydes, por não supor capaz de levar a efeito uma agressão e com quem pretendia entrar em explicações, mostrando-lhe a verdade dos fatos; que falhando a sua previsão e vendo-se agredido pelo Dr. Euclydes, deu dois tiros para intimidá-lo, e assim mesmo para os lados opostos a ele, por vê-lo também agredir a seu irmão Dinorah, esse fato muito o irritou, abandonando então o propósito de não responder ao ataque de seu adversário, como também acreditou que o Dr. Euclydes estivesse alucinado e procurasse cometer desvario; que julgando-se o único culpado e vendo assim seu irmão em perigo de vida, não mais atirou para os lados e sim alvejou diretamente o Dr. Euclydes, a quem, como já disse, perseguiu a tiros de revólver até a porta do corredor, onde deu o último tiro”.
Esse depoimento terminou às 11 horas da manhã, quando se retirou da enfermaria o Dr. Oliveira Alcântara, acompanhado seu escrivão.
Antes, porém, o aspirante Dilermando, cujo estado é satisfatório, pediu ao Delegado fosse suspensa

A Incomunicabilidade

em que se achava, contra a qual protestou, por achá-la ilegal.
A autoridade explicou-lhe, então, que não permitindo o seu estado de saúde, segundo alegavam os próprios médicos assistentes, prestar novo depoimento, não seria lícito que recebesse as pessoas que o procurassem, porquanto, o esforço que fizesse para falar, iria agravar o seu estado.
Acabou por pedir-lhe que obtivesse não só a sua alta como consentimento para ser visitado por seu irmão Dinorah de Assis e pessoas amigas.
O aspirante Dilermando pediu, ainda, à autoridade, que intercedesse junto ao Chefe do Estado-Maior para que seja recolhido no 1º regimento de artilharia, onde já trabalhou.

Um Depoimento Importante

tomado pelo aludido Delegado para o encerramento do inquérito foi, por certo, o de Solon da Cunha, filho do desventurado escritor Euclydes da Cunha.
Assim relatou a lamentável tragédia, pondo em destaque os fatos que a precederam.
Disse “que, sábado, 14 do corrente, foi o declarante chamado por seu pai, que lhe perguntou “onde está tua mãe”, ao que respondeu que não sabia; que, prosseguindo, seu pai disse-lhe, pois não está em casa da mãe dela; “tua mãe é uma adúltera”; que, à vista disso, disse-lhe: se isto é verdade, sairei daqui para a Detenção, pois era sua intenção desafrontá-lo; que, ato seguido, o declarante recebeu de seu pai duas pratas de 500 réis e não lhe dizendo para onde ia saiu; que, de posse das duas pratas e sabendo que sua mãe estava em casa de sua avó, dirigiu-se para a Estrada Real de Santa Cruz, casa do aspirante Dilermando, o que fez por ter ouvido D. Angélica dizer a seu pai que sua mãe estava naquela casa; que, chegando em casa do aspirante Dilermando cerca de 8 ½ da noite, lá encontrou sua mãe e o aspirante Dilermando, na sala de visitas, onde conversavam; que contou a sua mãe o estado de exaltação de seu pai, devido à sua ausência de casa, convidando-a e insistindo mesmo para que regressasse em sua companhia; que não foi atendido por sua mãe, dizendo-lhe ainda o aspirante Dilermando que a sua mãe de lá não sairia; que, à vista disso, possuiu-se de indignação contra o aspirante Dilermando, com quem três vezes travou calorosa discussão, sendo que em uma delas o aspirante ameaçou o declarante de o expulsar de casa; que a essa ameaça respondeu-lhe nestes termos: se me expulsar de casa, eu te expulsarei deste mundo; que após essa discussão o declarante e Dilermando acalmaram-se e isso por ter sua mãe prometido regressar à casa no dia seguinte, pela manhã, e Dilermando acedido a que o declarante aí permanecesse em companhia de sua mãe; que passou em vigília a noite toda para regressar no dia seguinte com sua mãe; que nessa manhã, cerca de 10 horas, mais ou menos, lavava o rosto em um tanque do quintal da casa, quando foi despertado por fortes detonações de revólver; que, com segurança pode afirmar que a primeira detonação foi muito forte, a segunda mais fraca e daí por diante não lhe foi possível perceber a diferença das detonações, tal a rapidez com que elas foram dadas; que, supondo a princípio tratar-se de uma brincadeira, teve, porém, desde logo certeza de que algum fato grave se passava dentro de casa, pois ouviu Dinorah dizer em voz alta: pega o outro revólver; que nesse momento já vinha o declarante do quintal para o interior da casa, quando ao chegar no centro do corredor, ouviu duas fortes e compassadas detonações; que chegando à sala de visitas viu em pé, na soleira da porta que dá saída para o jardim, o aspirante Dilermando, que empunhava um revólver oxidado Smith and Wesson; que ao chegar à porta da casa viu seu pai caído no jardim próximo a uma calçada de cimento; que seu pai nesse momento acenou-lhe com a mão ao que acudiu o declarante, aproximando-se dele; que, seu pai esforçou-se ainda por dizer-lhe alguma coisa, que não foi possível ser compreendida pelo declarante; que ato contínuo, mandou que o aspirante Dilermando e Dinorah recolhessem seu pai que foi colocado na cama de Dilermando; que, logo em seguida ouviu o aspirante Dilermando dizer a sua mãe, que havia matado o Euclydes, mas que ele e Dinorah também estavam perdidos; que o aspirante Dilermando mandou o declarante entrar no quarto e dizer a seu pai que ele Dilermando estava inocente do que o acusavam; que em seguida ele próprio entrou no quarto dizendo: “que loucura foi essa doutor?” ao que seu pai respondeu: “odeio-te”; que, logo depois, voltou novamente Dilermando, que se dirigindo a seu pai, pediu perdão ao que esse respondeu “Calúnias, intrigas, perdôo-te”; que daí por diante ficou o corpo de seu pai entregue às autoridades, que já haviam comparecido ao local.”
A autoridade vai encerrar o inquérito, cujos autos remeterá ao Dr. Juiz da 5ª Vara Criminal.

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 de Agosto de 1909

Lamentável tragédia

Prosseguimento do Inquérito – Exame de Roupas

Tomadas as declarações de Dilermando, pensa a autoridade policial já ter a precisa prova testemunhal para a condenação do acusado e acha que é inútil uma acareação entre ele e D. Anna Solon.
Apesar de divergirem, em vários pontos, os depoimentos de Dilermando, Dinorah, Solon e D. Anna, o Dr. Oliveira Alcântara pensa ter apurado e fortalecido, com as precisas provas, que esta última estivera na casa do indigitado assassino de seu marido, na quinta-feira, e que voltara na sexta-feira, para então ficar até o momento do crime, fatos esses que, entende, destroem a idéia de legítima defesa invocada pelo aspirante Dilermando.
Quanto ao fato da morte do Dr. Euclydes, há a prova testemunhal.
— Os Drs. Rodrigues Caó e Sebastião Côrtes, médicos legistas da polícia, responderam ontem aos quesitos formulados sobre as roupas de Dinorah e Dilermando.
São esses os quesitos com as respectivas respostas:
Roupas de Dinorah – 1º quesito – Existem vestígios por projétil de arma de fogo no dólman branco apresentado a exame?
Resposta – Sim.
2º quesito – Quantos e quais são?
Resposta – Existem orifícios produzidos por dois projéteis, além de pequenas manchas de sangue e de pontilhados negros de pólvora em combustão.
3º quesito – Pelos orifícios destes vestígios podem os peritos verificar o calibre da arma usada?
Resposta – Sim, cinco milímetros.
4º quesito – Os orifícios encontrados no dólman coincidem com o projétil apresentado?
Resposta – Sim.
5º quesito – O chamuscado que se vê na manga do dólman, braço esquerdo, foi feito por arma de fogo?
Resposta – Sim.
Quesitos relativos à roupa de Dilermando:
1º quesito – Existem vestígios por projétil de arma de fogo na camisa e dólman apresentados?
Resposta – Sim.
2º quesito – Quantos e quais são?
Resposta – Manchas de sangue, manchas de pólvora, combustão e orifícios produzidos por projéteis de arma de fogo.
3º quesito – Pelos orifícios encontrados podem os peritos determinar o calibre da arma de fogo usada?
Resposta – Sim, cinco milímetros.
4º quesito – Esses orifícios coincidem com o projétil apresentado?
Resposta – Sim.
5º quesito – O chamuscado que se vê no punho da camisa, parte interna, foi feito por arma de fogo?
Resposta – Sim.
6º quesito – Em que posição deviam estar os braços, de forma a poder o punho da camisa, parte interna, ser chamuscado por arma de fogo?
Resposta – Em posição aproximadamente horizontal.
7º quesito – Por essa posição podem determinar se o projétil que perfurou os punhos da camisa e dólman é o mesmo que causou a mossa junta ao quinto botão do mesmo dólman?
Resposta – Atendendo-se à situação dos orifícios encontrados na roupa de cama e dólman e mossa do dólman, provavelmente o projétil foi o mesmo.
8º quesito – A mossa que se nota na altura do quinto botão do dólman kaki compreende à equimose superficial descrita pelo exame do corpo de delito na décima costela?
Resposta – Sim.

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 de Setembro de 1909

Lamentável tragédia

O CRIME DA ESTRADA REAL
OS PROTAGONISTAS
O RELATÓRIO POLICIAL
A PLANTA DO TEATRO DO CRIME

O Dr. Oliveira Alcântara, Delegado do 20º Distrito Policial, remeteu ontem ao Dr. Juiz da 3ª Vara Criminal, para conhecer do pedido de prisão preventiva contra os irmãos Dilermando de Assis e Dinorah de Assis, os autos do inquérito sobre o assassinato do malogrado Dr. Euclydes Cunha, acompanhados do seguinte relatório:
“Às 12 horas, mais ou menos, do dia quinze de Agosto, próximo passado, chegou ao conhecimento desta Delegacia que, na casa n. 214 da Estrada Real de Santa Cruz, havia sido assassinado o Dr. Euclydes Cunha pelos aspirantes a oficiais do Exército e da Marinha, respectivamente, Dilermando Cândido de Assis e Dinorah Cândido de Assis.
Sobre tão lamentável notícia foi imediatamente instaurado o presente inquérito para que se apurassem as responsabilidades criminais que no caso coubessem e elucidadas as peripécias dessa lutuosa ocorrência.
Atendendo às providências que urgiam ser tomadas, fiz-me acompanhar do escrivão e diversos funcionários ao local do crime, onde encontrei o cadáver do Dr. Euclydes Cunha sobre uma cama, cuja fotografia acha-se à fl. ?.
Na mesma casa, já referida, achavam-se D. Anna Solon da Cunha, o menor Solon da Cunha, a doméstica Anna de Almeida Lima e os aspirantes Dilermando e Dinorah Cândido de Assis, que, interrogados, prestaram as declarações de fls. 3 a 6 v.
Perfunctoriamente analisadas essas declarações, vi que Dilermando nelas procurou insinuar que agira em legítima defesa, mas, tendo afirmado que “motivos íntimos” tinham determinado o conflito e impondo-se ao meu espírito a coincidência de encontrar-se no local do crime a mulher do morto, logo se me afigurou que tais “motivos íntimos” e a “estadia da referida senhora” constituíam um só dos elos causais dos antecedentes, e procurando averiguar estes antecedentes, encontrei a primeira das falsidades contidas nas declarações do agente direto do crime, isto é: que a esposa do morto não tinha chegado no momento, mas ao contrário, já ali estava quando teve início a luta.
Esta primeira falsidade foi o fio para reconstrução da cena criminosa e verificação dos antecedentes que a determinaram. Busquei então, calmamente, indagar desde quando e porque D. Anna Cunha encontrava-se em casa do aspirante Dilermando e apurei que – já tendo relações amorosas anteriores com este – que determinavam a desordem no lar do distinto e glorioso homem de letras – na quinta-feira, 12 – D. Anna Cunha saíra do seu domicílio conjugal, pelas 3 horas da tarde, em companhia de Dinorah, dizendo ir procurar casa maior para mudar-se com a família, afim de hospedar seu sogro que vinha do interior (declarações fls. 19 a 26 v.), e, no entanto, fora à casa de Dilermando, de onde só pelas 10 horas da noite se retirou, indo para a casa de sua mãe, no campo de São Cristóvão, onde pernoitou; que na sexta-feira, 13, D. Anna saiu da casa de sua mãe, sem chapéu, indo ao Ginásio Nacional visitar o menino Euclydes, de onde voltou pelas 2 horas da tarde, à casa de sua mãe; que aí tomou o chapéu e levando o menino Lulu, disse a D. Augusta Solon que ia para o domicílio conjugal em Copacabana (fl. 52), o que, no entanto, não fez, pois conforme se vê à (fl. 57) na sexta-feira, de manhã, tendo ela prometido a seu marido ir para Copacabana, este, no sábado, foi à casa da viúva Solon procurá-la, sendo informado de que – na véspera, pelas 2 horas, D. Anna saíra dizendo ir para casa – ; que, na sexta-feira Dona Anna se havia logo dirigido para casa de Dilermando, onde pernoitou de sexta-feira, 13, para sábado, 14, e de sábado, 14, para domingo, 15, em companhia de Lulu, desde 13 e de Solon desde 14 (fls. 46, 75 a 110).
Certo destes antecedentes, tive a evidência de que D. Anna, Dilermando, Dinorah e Solon estavam na intimidade das relações adulterinas entre Dilermando e D. Anna Cunha e formavam em torno do esposo ultrajado, um cordão vigilante e protetor que o isolasse da verdade e impedisse de defender a sua honra, tanto que sua esposa, Dinorah, Solon e o cúmplice adulterino iam em concurso e a pretexto de “rendez-vous” com DD. Angélica e Lucinda Ratto saber do estado d’alma do Dr. Euclydes, tendo Dinorah chegado mesmo a ir para esse fim, até Copacabana, de onde voltou dizendo a Dilermando e a D. Anna “que o Euclydes estava muito exaltado e disposto a resolver a questão, pondo tudo em pratos limpos”. (fl. 76).
Desta certeza à de que, estando todos em segura solidariedade no ataque à honra do malogrado Dr. Euclydes, decorria a convicção ou pelo menos forte presunção de que – dado um previsto conflito entre o sedutor e o ultrajado – todos se reuniriam e entre si se auxiliariam contra ele. Nesse sentido, aprofundei as minhas pesquisas, esclarecendo a parte que cada qual dos personagens tomara no fato criminoso, e apurei então que a luta se teria travado, conseqüente à certeza súbita que tivera o Dr. Euclydes de que sua mulher adulterava e à selvagem brutalidade de Dilermando e Dinorah que não quiseram evitar o conflito.
De que Dilermando era de há muito o cúmplice adulterino de D. Anna Cunha há no inquérito farta prova: a (fl. 3) é ele, Dilermando quem diz que “motivos íntimos” determinaram a luta; a (fl. 110), repete que D. Anna pernoitara em sua casa desde sexta-feira até o domingo em que se travou a luta e declara ainda que não obstante ser o Dr. Euclydes seu desafeto, queria recebê-lo em casa para expor-lhe a “verdade”; a (fl. 46) é D. Anna quem declara que “sendo maltratada por seu marido e sendo Dilermando o único responsável por esse estado de coisas fora para casa deste, deliberada a ficar lá com ele, pois, era ele quem devia assumir as conseqüências de seus atos” e lá ficara definitivamente com Dilermando que “sempre lhe correspondia com grande afeto e carinho”; a (fl. 19) é D. Angélica que revela ter lido uma carta em que Dilermando pede o pagamento de uma conta atrasada, confessando nesse momento D. Anna a paixão que tinha por Dilermando; a (fl. 96) conta Solon que vindo de casa de seu pai, onde houvera forte discussão, encontrou sua mãe em casa de Dilermando, só com este, na sala; Anna de Almeida Lima, ex-criada do Dr. Euclydes e de D. Anna Cunha, e por esta retirada da Santa Casa e dada a Dilermando (fl. 27), diz que de sexta-feira a domingo Dona Anna Cunha estava em casa de Dilermando e que de há muito tempo era hábito de D. Anna passar dias com seus sobrinhos Dilermando e Dinorah; D. Anna de Almeida e Dinorah contam a (fl. 27 e 42) a viagem feita por Dilermando e D. Anna a São Paulo, juntos, com dinheiro do morto; e outros indícios veementes, irrecusáveis, seguros, como, a apreensão de roupas pertencentes a D. Anna (fl. 63), auto de reconhecimento (fl. 66) e entrega (fl. 122) deixam evidentes que D. Anna e Dilermando eram amantes de data remota.
De que ela e seu amante sabiam que para o Dr. Euclydes Cunha a suspeita ia gradativamente encontrando os elementos da prova circunstancial que no espírito do emérito professor de lógica se iam concatenando, em ordem a formar a certeza, não resta o menor resquício de dúvida: – dada a constante desinteligência entre o extinto e D. Anna, tinham eles discutido com desusada veemência, de que dão notícia os amplos de dizeres de D. D. Angélica e Lucinda Ratto, Solon, Dinorah e D. Anna; a irritação de que tinham todos notícia, era no espírito do Dr. Euclydes tanta que Dinorah, tendo ido espreitar (fl. 42), como avançada do adultério, a casa do desonrado, de lá voltou desaconselhando D. Anna a regressar – “tal o estado de exaltação em que estava o extinto”; – tal era o sobressalto, que estavam prevenidos de portas fechadas, quando Dinorah levanta-se da mesa, onde a adúltera e seu filho tomavam café (fls. 46-110) e fotografia (fl. 109) com o cúmplice adulterino e “sem nada dizer” (fl. 42) ia verificar a porta, de onde voltava dizendo que o Dr. Euclydes aí estava; eles o esperavam tal a certeza de que ele procuraria os filhos e a esposa e de que só ali procuraria, já que só contra Dilermando lhe eram as suspeitas.
Tudo nos autos revela que arreceiados esperavam ali o Dr. Euclydes e sabiam que ele dissera no sábado (fl. 42) que no domingo “punha tudo em pratos limpos”.
Esperavam-no, portanto, os sinistros personagens que figuram no crime de assassinato da Estrada Real de Santa Cruz. De que eles se temiam da chegada do Dr. Euclydes; que estavam prevenidos de que ele viria fatalmente, há forte indicação nos autos – mas a vigilância de Dinorah textifica-a completamente.
Chegado ele, a comparticipação solidária de todos na tragédia que se vinha desenrolando, se evidencia: Dilermando, maneiroso e galante, insinuando o que se ia passar não lhe vai ao encontro logo e nem o evita; ordena (fl. 110) a Dinorah que o faça entrar para a sala de visitas e vai vestir uma túnica… vêde este traço característico: Dilermando está com D. Anna à mesa – íntimo; sem túnica, em mangas de camisa, mas para receber o marido desta, vai vestir-se… é que ele sabia que a cena seguinte seria solene.
Dinorah vai ao encontro do Dr. Euclydes, fá-lo entrar para a sala (fl. 5-42); vendo-o exacerbado, discutem, mas cauteloso vai impelindo a vítima para o fundo da sala, próximo à porta do corredor (fl. 76) e (figura a fl. 92) à vista do quarto de Dilermando, ficando ele Dinorah ao centro da sala, tendo a vítima entre ele e o irmão (fl. 76 e figura a fl. 92). Aí culmina a tragédia: Dinorah e Euclydes dialogam em frases lacônicas (fl. 25) e aí, diz Dilermando, (fls. 2-110) o Dr. Euclydes avança para a porta do quarto em que ele estava fechado, arromba-a e alveja-o. Esta declaração é falsa: como ia o Dr. Euclydes adivinhar que aquele aposento era um quarto – se ele não sabia da distribuição dos aposentos da casa, nem qual o quarto de Dilermando e nem mesmo, momentos antes, em que casa este morava? Como porque percepção milagrosa, sem ciência anterior, iria ele acertar com o quarto do sedutor e com tanta certeza e segurança que fosse logo arrombando a porta e alvejando?
É evidente que qualquer fato bastante impressivo manifestou ao Dr. Euclydes que ali estava o seu ultrajador e este fato sai claro das circunstâncias: Dilermando de dentro do quarto, que tinha fechado com o trinco (folhas 2-110), logo que percebeu que o trabalho de Dinorah estava feito deu o primeiro tiro que de que dá notícia a fig. a (fl. 92) linha 3-3’, ferindo o Dr. Euclydes no “dorso à direita na parte inferior da região costal” (auto de autópsia a fl. 23) tendo a bala anteriormente varado a porta, conforme a figura a (fl. 92) e exame de corpo de delito a (fl. 90). De que este foi o primeiro tiro e que foi disparado por Dilermando fazem certeza: a) que Solon a (fl. 98) diz que o primeiro tiro ouvido foi “o de uma detonação mais forte”. Ora o revólver de Dilermando era um Smith and Wesson, de campanha, calibre 38, ao passo que o do Dr. Euclydes era de calibre 22, de muito menor sonoridade – exame a fl. 102; b) a direção em que a bala do revólver calibre 38, de dentro para fora, atravessou a porta do quarto de Dilermando, deixando o vestígio na parede da sala, justamente no local em que Dinorah previamente colocara Euclydes, (declarações a fl. 76) e auto de exame a fl. 90; c) a forma do ferimento descrito no auto de autópsia “dorso à direita” – justamente o lado oferecido a Dilermando, quando Euclydes e Dinorah monologavam na sala.
Deste modo ao Dr. Euclydes, o que indicou o ponto em que estava Dilermando, foi o disparo da arma deste que o veio ferir, mostrando-lhe de onde partia e impondo-lhe a precisão de rapidamente entrar no aposento para não continuar a ser alvejado por trás da antepara.
O que sai, no entanto, dos “monumenta delicti” de fls. e fls. é que, conforme diz Solon a fl. 98 – o primeiro tiro foi o de grosso calibre e de detonação mais forte do revólver de Dilermando. Alvejada a vítima – já aberta a porta do quarto o Dr. Euclydes, tendo tirado do bolso o revólver (fls. 3 a 7) disparou-o duas vezes, conforme diz Solon, que ouviu, depois da detonação forte (fl. 98), duas fracas. Neste ponto Dinorah acomete ao Dr. Euclydes, cujos movimentos confessa a fl. 76, ter procurado tolher, prendendo-o por um braço junto ao ombro e pelo outro no antebraço.
Era a continuação do tramado pelos dois homicidas: enquanto Dinorah prenderia os movimentos ao Dr. Euclydes, o irmão impunemente o alvejaria, em ordem a pô-lo fora de combate; mas, o destino não quis que assim fosse totalmente, pois, Dinorah, tendo ficado entre o Dr. Euclydes e Dilermando, este não pôde alvejar convenientemente a vítima.
Ao contrário, esta, mal segura por Dinorah, com o braço direito meio livre, deu-lhe um tiro que, passando pela parte superior do braço esquerdo de Dinorah, chamuscou-lhe a manga do dólman (auto de exame a fl. 118) e não tendo acertado este tiro um outro veio, em seguida, passando na parte inferior do mesmo dólman junto ao bolso, chamuscando-lhe também a fazenda, mesmo auto.
Dinorah, então, apavorado, foge pelo corredor, indo procurar um revólver (fls. 42 e 76). A este tempo, tendo Dinorah impelido na luta ao Dr. Euclydes (fls. 76) para a posição – 1’ – (fig. a fl. 92) – Dilermando, sempre de dentro do quarto e por trás da porta, dá-lhe o tiro – 1-1’ – que parece não ter atingido ao Dr. Euclydes, mas a bala foi encontrada na parede, no ponto – 1’ – entre a porta do quarto de Dilermando e a sala de jantar – em que Dinorah tinha deixado ao Dr. Euclydes; (decls. e fig. a fls. 76 e 92). A vítima já tendo detonado ineficazmente quase todas as balas de seu revólver (exame de corpo de delito a fls. 10 e 12) procurou retirar-se para a sala de visitas, na direção – 1-1’ – ao longo do corredor, mas Dilermando, sempre de dentro do quarto, dá-lhe o tiro assinalado pelas marcas – 2-2’ – (mesma fig.), que fere ao Dr. Euclydes no punho e mão direita (autópsia a fl. 32), tendo ficado a bala na parede do corredor, à altura de 50 centímetros a medir de baixo para cima o que se evidencia pela autópsia que descreve esse ferimento de cima para baixo e produzindo a ruptura dos tecidos do pulso para a face palmar da mão.
O Dr. Euclydes Cunha já com esses ferimentos, com o punho direito dilacerado, impossibilitado de agir, procurou retirar-se definitivamente da luta em direção à sala de visitas (exame de fl. 90), quando recebeu ainda outro tiro, cuja bala, fraturando-lhe o úmero e fragmentando-lhe os ossos (auto a fls. 32) foi encravar-se na fechadura da porta da sala de visitas (fig. a fl. 92, linha 4-4’).
A vítima foge, para, atravessando a sala, sair para o jardim, mas Dilermando persegue-a (decls. a fls. 110). Conseguindo, no entanto, o Dr. Euclydes sair no jardim, cerca de 3 metros, Dilermando, chegando à porta da sala que dá para esse jardim, dirigiu-se ao Dr. Euclydes que se retirava, e dizendo-lhe “Espera cachorro”, alvejou-o e disparando o revólver foi o tiro ferir a vítima na “região infra-clavicular direita”. O auto de autópsia confirma esta hipótese, pois, mostrando a direção desse tiro, de cima para baixo, combina plenamente com a vistoria reveladora da diferença de nível entre o ponto em que estava Dilermando – B – na fig. a (fls. 95 e 96) e Euclydes – A – na mesma figura que mostra que havendo entre o ponto em que estava o homicida – uma diferença de 0,75 acima do em que estava a vítima – a inclinação é justamente uma linha com o declive de 30% que corresponde à linha formada pelo orifício de entrada do tiro e sua trajetória no corpo da vítima (auto de autópsia a fls. 32). Estes dois elementos estáveis da certeza, vêm deixar, indubitáveis os contestes depoimentos de Henriqueta Medeiros Araújo (fls. 87) e Celina Fontainha Cabral a (fls. 70), que viram Dilermando da porta da sala de visitas alvejar e atirar contra o Dr. Euclydes Cunha que inerme caiu ferido de morte.
São ainda incisiva prova as contestes declarações de Joaquim Vaz de Araújo a (fls. 82), de Solon e Dinorah a (fls. 98 e 76) que “viram Dilermando com o revólver a fumegar na soleira da porta da sala” e o Dr. Euclydes Cunha caído ao solo do jardim.
Não se pode provar com os elementos fartamente acumulados nestes autos que tivesse havido um conluio anterior entre os irmãos Dinorah e Dilermando para perpetrarem em conjunto, como premeditação caracterizada e dolo de propósito, o assassínio do desventurado Dr. Euclydes Cunha, mas, dos autos a indubitável certeza de que os dois estavam certos de que a hora havia soado em que o marido de D. Anna, certo de que esta abandonara o lar, para entregar-se com mais assiduidade e permanência aos carinhos de Dilermando, viria à casa deste, senão disputar a posse da esposa, ao menos buscar seus filhos e longe de quererem evitar a cena dolorosa que podia degenerar, tomaram todas as precauções para que ela não tomasse feitio desfavorável ao aspirante Dilermando. Para isto precavidamente – estando D. Anna na intimidade com Dilermando à sala de jantar – Dinorah levanta-se “sem nada dizer” e ia espreitar se algo de anormal havia até que de uma feita, tendo ido à janela e vendo que o Dr. Euclydes se achava ao portão veio avisar (fls. 3, 5 e 7) a Dilermando o que ocorria. Mas o diligente avançada de Dilermando (fls. 76) que sabia que o Dr. Euclydes estava em grande exacerbação (fls. 76); que os filhos e a mulher roubada ao lar ali estavam, longe de evitar a pugna – dizendo que o irmão não estava ou conservando fechada a casa – resolveu facilitá-la indo abrir o portão.
Dinorah é o cúmplice que cientemente dá o aviso ao irmão celerado, introduz, por ordem de Dilermando, a vítima do “guet-à-pens” no lugar onde devia ser morta; leva-a (fl. 76) para o ponto visível da porta do quarto em que está Dilermando – “au-guet”; procura prender e tolher os movimentos de Euclydes Cunha: – Dinorah incide pelo menos na sanção do art. 21, parágrafo 1º, do Código Penal, combinado com o art. 294, parágrafo 1º do mesmo Código e como tal não pode deixar de ser responsabilizado.
Dilermando não quis também, por forma alguma, evitar o encontro. Feita a provocação ultrajante pela posse tida acintemente da mulher de seu ex-amigo e protetor, em cuja casa e sob o mesmo teto morou – manteve-a e aumentou-a – resolvendo defrontar o ofendido e “dizer-lhe a verdade” (fl. 110). Como quer, pois, alegar derimente do art. 32 do Código Penal, se lhe falecem aos atos selvagens evitáveis, todos os requisitos do artigo 34 – ns. 1, 2, 3 e 4?
Falha o segundo requisito, pois, Dilermando podia ter facilmente impedido a ação já que ele sabia da desonra que humilhava ao Dr. Euclydes; não lhe era fácil conservar a casa fechada? Não lhe era azado retirar-se pelos fundos da casa enquanto o Dr. Euclydes Cunha batia?
Não existe o do n. 1: – a agressão já não era atual quando Dilermando matou o Dr. Euclydes. É o réu quem diz que – já quando o Dr. fugia pelo corredor e sala – tendo ele se irritado porque o Doutor alvejara Dinorah, “perseguiu-o na fuga a tiros de revólver”; e a autópsia revela que a “causa-mortis” foi o tiro intercostal que Dilermando confessa ter dado quando já não havia agressão, pois, o Dr. Euclydes com o pulso direito varado por uma bala e outro braço partido por outra bala, já era inofensivo e fugia pelo jardim; não era já atual a agressão, pois, as duas testemunhas de vista, narram que o Dr. Euclydes fugia pelo jardim, mal ferido, quando Dilermando com propósito homicida caracterizado, chegou à porta, injuriou-o – “Espera cachorro” – e alvejou-o com o tiro que lhe levou a morte.
Foi ato desnecessário à defesa, ferocia inútil que classifica o cruel matador entre os grandes criminosos de sangue que humilham a Espécie.
Também não se completa o quarto requisito, pois, Dilermando não só foi o provocador com o ultraje de seduzir a esposa à vítima, mas ainda o iniciador brutal e material da luta, conforme diz Solon, a (fl. 98) que o primeiro tiro, a detonação mais forte, partiu de Dilermando que tudo havia disposto para matar o Dr. Euclydes Cunha.
Também não se cumpre o terceiro requisito, pois, o tiro que enviou o matador já não era adequado meio para evitar mal maior porquanto o assassinado “fugia pelo jardim” (fls. 70 e 87) quando o assassino matou-o inutilmente. Incidiu inegavelmente na classificação penal do art. 294, parágrafo 1º do Código Penal, pois, praticou o assassinato com as agravantes dos parágrafos 4º, pelo reprovado motivo do crime; 5º, pela superioridade do seu revólver regulamentar, calibre 38, de campanha, sobre o de calibre 22 do adversário, superioridade procurada porque Dilermando possuindo dois revólveres – o de calibre 32, – que acompanha este inquérito, procurou o de calibre 38 por lhe ser maior o poder eficiente; 6º, o delinqüente fraudulenta e estrategicamente atirava o adversário por trás da porta, sempre oculto (corpo de delito a fl. 92); 7º, deu o primeiro tiro de dentro do quarto quando o Dr. Euclydes não podia saber ainda que Dilermando estava naquele quarto.
Certo de que deixei a instrução criminal completa, reconstruindo o crime em todos os seus aspectos já pelo depoimento de testemunhas de vista, já pelas provas diretas dos exames de (fl.), plantas topográficas, fotografias e mais elementos que levam ao julgador a certeza natural, as provas monumentais e miúdas do delito, penso que ficou edificada a certeza do fato e a evidência da autoria dos indiciados e cuido cumprir um dever representando sobre a necessidade da prisão preventiva pois, apesar de serem os indiciados aspirantes militares, revelaram em todo esse crime tal ausência de senso moral que é de presumir se furtem à ação da Justiça.
Para documentar a insensibilidade moral, a ausência dos elementos que disciplinam os homens normais e lhes moderam a ação basta lembrar que Dilermando, ao dar as suas primeiras declarações, procurou construir a hipótese de que o Dr. Euclydes da Cunha, homem próximo da genialidade, era quase um demente, impulsivo e insano; e Dinorah, poucos dias após o evento, que abalou de surpresa, dor e piedade a cidade do Rio de Janeiro, ousava – insensível e risonho – comparecer a uma partida pública de “foot-ball”, de “maillot” e calção, jogando vivaz e alegre com afronta aos sentimentos de piedade de uma sociedade inteira.
O MM. Juiz da 12ª Pretoria, a quem mando sejam remetidos estes autos, no entanto, resolverá em seu alto critério o que julgar legal e conveniente.
Rio de Janeiro, 10 de Setembro de 1909 (assinado). – Joaquim Pedro de Oliveira Alcântara.”

O Centro Acadêmico realiza hoje, às 3 horas da tarde, no salão do “Jornal do Commercio”, uma seção cívica em homenagem à memória do escritor Sr. Euclydes Cunha.