Euclides da Cunha, ilustre autor dos Sertões, e pessoalmente muito conhecido aqui, onde viveu algum tempo, e de onde há meses saiu para chefe da Comissão Brasileira de limites com o Peru — seguiu doente, dizem telegramas, de Manaus para o Alto Purus.
O fato de ter seguido, apesar de doente, não indica, infelizmente, para quem o conhece bem, que a sua doença seja sem gravidade. Porque Euclides leva até ao exagero o sentimento do dever, e realiza a hipérbole dita por um estadista da monarquia no velho Senado do Império: “Só há uma desculpa plausível de não se comparecer em certas ocasiões: é a certidão de óbito”.
Vimo-lo em condições bem difíceis, tentando cumprir a todo o transe um dever bem duro… Tínhamos sido surpreendidos na ilha deserta dos Búzios por um famoso temporal caído à boca da noite. O pequeno Alamiro, um rebocador, que lá nos levara e lá nos esperava, passara a noite de fogos acesos, pronto a fujir do seu abrigo estreito, onde a fúria do mar ameaçava a cada instante esmagá-lo nos costões… Antes de clarear o dia, repetiam-se os apitos do rebocador, chamando-nos. Nós estávamos no alto de um morro, a oitenta metros acima do nível do mar; e não podíamos, no escuro da noite, que o temporal de chuva em torrentes fazia mais escura, descer a íngreme escarpa e atravessar o áspero costão, que nos separavam do mar.
Aos primeiros clarões do feio dia que raiava, descemos.
Conseguimos, encharcados da chuva e dos borrifos das ondas, chegar ao Alamiro. E, largando o seu perigoso abrigo, uma remansosa enseada que a fúria do oceano violara e pusera a perder, o pequeno Alamiro meteu valentemente a proa no mar largo e no temporal desfeito que esbravejava e rugia.
Euclides tinha a incumbência oficial de visitar a ilha da Vitória, mais ao largo, que aparecia no horizonte carrancudo, através da chuva que caía, como uma mancha cinzenta e lúgubre. Mandou aproar para a Vitória.
Logo ao sair da enseada, o pequeno vapor começou aos boléus. Tínhamos de segurar-nos aos varões de ferro para não sermos atirados ao mar, varridos pelas ondas que entravam pela proa do Alamiro e iam sair-lhe, espumantes e mugindo, pela popa. A cada passo, o rebocador subia, vagarosamente, — como por uma montanha acima — por uma onda enorme que lhe viera ao encontro; e chegado ao cume, na rapidez da própria marcha e do movimento da vaga em contrario, precipitava-se, como uma flecha, com a proa quase em rumo vertical, ao fundo do mar…
Euclides, pouco afeito ao oceano, pelo qual sente verdadeiro pavor, conservava-se pálido, com os olhos fitos na mancha longínqua e meio apagada que designava no horizonte e na solidão do mar, a ilha da Vitória.
O mestre do barco, um velho lobo do mar, que neste se criara como marinheiro da armada nacional, veio a custo, aos trambolhões, agarrando-se por onde podia, dizer a Euclides que a ida à Vitoria era um perigo, contra as águas e contra o vento, com aquele mar e com aquele tempo.
“Ninguém sabe, dizia ele, o que vem atrás do temporal… O que já está aqui é grande; mas não se sabe se lá fora nos pegará mais bravo ainda…”
— “A ordem é ir à Vitória, é preciso que vamos!” respondeu Euclides, aterrado, com os lábios franzidos, os dentes cerrados.
O temporal continuava; e tocado dele, o mar, cada vez mais colérico, cada vez se encapelava mais, sacudindo e rolando o Alamiro como a uma casca de noz, entrando e saindo por ele ferozmente, levantando-o sobre montanhas e precipitando-o ao fundo de verdadeiros vales formados entre duas ondas…
E o Alamiro, obedecendo às ordens inflexíveis de Euclides, avançava para o largo mar, penetrava cada vez mais no temporal e no perigo…
Afinal, a situação tornou-se grave. O mestre veio novamente procurar Euclides, e declarou-lhe isso mesmo. Havia risco iminente em continuar aquela rota inflexível. Tornava-se urgente aproar para S. Sebastião, dando costas ao mar e ao vento, e demandando a segurança dum porto abrigado… Se continuássemos, era muito possível que numa daquelas decidas vertiginosas em que o vapor se precipitava entre duas ondas, não conseguisse ressurgir…
Só diante dessa declaração categórica Euclides cedeu.
Deixou-se vencer. E, ainda assim!
— “Se eu morresse, dizia-me ele, tinha uma bela morte, a morte no cumprimento do dever. A sua é que seria estúpida; morrer num passeio…”
Creio que foi por essa razão, de ir ali, a passeio, quem escreve estas linhas, que não morremos. Se o que escreve estas linhas também fosse a cumprir deveres, adeus nossas encomendas!
Tínhamos morrido honradamente, e belissimamente.
Qual será a doença de Euclides, de que dão notícia os telegramas, e que não o impediu de seguir para as longínquas, as fundas regiões do Alto Purus?
Nenhum juízo podem formar os amigos que o conhecem bem… O que podem é dizer conosco, repetindo o belíssimo voto do poeta:
Deus acompanhe o peregrino audaz…!
Santos — 1905
Vicente de Carvalho
Carta de Euclides da Cunha a Vicente de Carvalho, de 11 de outubro de 1902, Colônia Penal (Relatório sobre as ilhas dos Búzios e da Vitória) e o artigo Euclides da Cunha sofria de talassofobia? de Henry Bacon