Colônia Penal

Relatório Apresentado pelo Dr. Euclides da Cunha

8 de junho de 1902

Considerações preliminares

Planta nº 1 — Ilhas dos Búzios, Vitória e arredores. Arquivo Público do Estado de São Paulo

Esta notícia, resultado imediato de um reconhecimento ligeiro nas ilhas dos Búzios e da Vitória, indica-lhes os caracteres essenciais visando principalmente os que permitem, numa delas, a localização de uma colônia penal.

De acordo com as instruções verbais que me foram dadas pelo Sr. Dr. Cardoso de Almeida, chefe de Policia do Estado de São Paulo, examinei-as sobretudo quanto aos vários aspectos físicos preponderantes, limitando-me quanto aos topográficos às operações expeditas capazes de fornecer elementos aceitáveis para uma apreciação aproximada dos diversos contornos, relevos predominantes e dimensões principais.

Deste modo as plantas anexas são apenas um esboço sem a fixidez de linhas e a segurança matemática de um trabalho planimétrico modelado pelos processos normais. Como adiante demonstrarei, ainda quando ultrapassando aquelas instruções eu tentasse um levantamento regular, este só seria exequível num espaço de tempo sobremaneira longo, implicando a presteza essencial dos reconhecimentos.

Assim me limitei, quanto às posições geográficas daquelas ilhas, e conformação particular, a utilizar-me dos dados que se me antolharam sem grande dispêndio de tempo. Adotei para as primeiras as coordenadas averbadas nas cartas existentes, porque as ligeiras discrepâncias de alguns segundos, que acaso existam, certo não se revelariam em uma ou duas noites de observação nas operações expeditas do sextante. E quanto à segunda, diante da impossibilidade completa de praticar o mais simples caminhamento, fui obrigado, como se verá mais longe, a estear-me no mais antigo e simples dos recursos indicados para casos idênticos — o dos levantamentos a vela, consistindo em tornear, em canoa, a terra, avaliando as distâncias a relógio e orientando as linhas costeiras pelos azimutes e deflexões do trânsito.

Este meio, porém, além da instabilidade dos elementos que fornece, tem a agravante de exagerar quase sempre todas as linhas vivas dos relevos, ampliando-lhes os valores angulares relativos com o olvido quase sempre inevitável dos acidentes secundários. Embora sob o ponto de vista hidrográfico ele tenha o apoio franco e insistentemente proclamado de um geógrafo ilustre, o Almirante E. Mouchez — porque é o que melhor registra a impressão geral de quem, em pleno mar, contempla a terra —, está longe de bastar às exigências vulgares relativas às grandezas lineares horizontais ou verticais e áreas dos terrenos desenhados.

Quer isto dizer que este reconhecimento, feito embora com as maiores cautelas, sofrerá inevitáveis correções caso se realize ulteriormente, ali, qualquer outra operação topográfica.

E esta é necessária.

Aquelas ilhas, apesar de abeiradas do litoral, e aparecendo, nítidas, diante dos navegantes como o revelam os desenhos do quadro nº 1 —, são pouco conhecidas.

Panorama das Ilhas dos Búzios e da Vitória
Quadro nº 1, Ilustrações 1 a 3 — Panorama das Ilhas dos Búzios e da Vitória. Arquivo Público do Estado de São Paulo
Aspectos das ilhas dos Búzios e da Vitória
Quadro nº 1, Ilustrações 4 e 5 — Aspectos das ilhas dos Búzios e da Vitória segundo várias posições do observador depois de transposto o canal de S. Sebastião. Arquivo Público do Estado de São Paulo

Não têm existência histórica e não figuram em nenhuma narrativa de episódios de que foi, entretanto, notável teatro o vasto segmento de costa que fronteiam.

Ao atingi-las os mareantes tinham logo adiante, para o ocidente ou para o sul, na enseada aberta de Caraguatatuba, no abrigo seguro de Ubatuba, ou na curvatura setentrional intensamente articulada da ilha de São Sebastião, os atrativos de uma terra maior e de fundeadouros mais acessíveis; e passavam sem que nada os levasse aos dois ilhotes pouco distantes cujos contornos revoltos, de pronto apercebidos na alvura dos cordões de rochas desmanteladas que os debruam, lhes prenunciavam perigosos parcéis e desembarque penosíssimo.

Apesar disto foram notados desde os primeiros anos do século do descobrimento e tiveram os nomes que ainda persistem e se averbam no Tratado Descritivo do Brasil (1587), de Gabriel Soares.

Tais denominações, porém, abrangem-nos indistintamente, sendo trocadas consoante o capricho dos cartógrafos, de sorte que ainda hoje não há ajuizar-se acerca de suas aplicações reais, nem mesmo ante a admirável carta marítima de Mouchez (1869), onde a vacilação se põe de manifesto no denominar a ilha mais remota e setentrional de Búzios (anct. Vitória) e a mais próxima de Vitória (anct. Búzios).

E se considerarmos que o alvitre do notável hidrógrafo se contrapõe ao dos habitantes que chamam, hoje, Vitória à mais setentrional e Búzios à outra, vemos que não há critério algum para a fixação definitiva dos termos.

Temos por escusado citar sem-número de cartas espelhando idêntica ambiguidade.

Este fato delata por si só o grande olvido em que têm jazido aqueles dois fragmentos da nossa terra.

A pequena população de poucas centenas de almas, que existe na da Vitória (adotemos este nome para a mais próxima, de acordo com E. Mouchez), se bem que sob a jurisdição da comarca de Vila Bela, está de todo segregada do resto do país.

Vive sob o patriarcado de um octogenário, Joaquim de Oliveira, que, graças a notável ascendente moral, enfeixando todos os poderes, lhe regula todos os atos, dos que entendem com a organização da família aos que visam a manutenção da ordem e aos que orientam uma atividade resumida em pequenas culturas de cereais e à faina pesada das pescarias no alto do mar.

Este último meio de vida é o mais generalizado.

Quem rodeia a ilha da Vitória observa, de espaço a espaço, irregularmente intervaladas, grosseiras armações de paus roliços entrecruzados ou amarrados com cipós e cordas, instáveis à ponta dos fraguedos, de onde descem em planos inclinados fortes para as águas. No alto um alpendre — quatro pés direitos e uma cobertura de sapê — completa aquele dispositivo indispensável num litoral sem praias, onde as embarcações mais ligeiras não podem permanecer encostadas no marulho das vagas sobre as pedras. Por ali descem ou sobem, diariamente, arrastando-as a pulso, os pescadores que não raro ao tornarem das longas excursões, no final de um dia inteiro de fadigas, têm ainda que realizar prodígios de agilidade e de força, para, saltando em plena arrebentação das ondas, salvarem a embarcação, o que conseguem sempre.

São naturalmente homens de compleição robusta, vigorosos e ágeis, afeiçoados aos perigos que afrontam todos os dias, porque, canoeiros eméritos, se distanciam às vezes para sueste até perderem de vista a terra, ou atravessam constantemente o largo braço de mar que os separa de São Sebastião, principal mercado para onde levam, salgados, os produtos de suas pescarias.

O mar tem-lhes sido uma escola de força e de coragem, sendo natural que a ele devam as únicas tradições locais que de certo modo se prendem a uma fase da nossa História.

De fato —, quando pelo bill Aberdeen (1845), os cruzeiros ingleses exercitaram a repressão do tráfico africano até dentro de nossas águas territoriais, as ilhas da Vitória e dos Búzios foram as estações mais avançadas dos vigias que iludiam ou burlavam aquela fiscalização severa. Graças a sinais adrede combinados, de fogueiras acesas ao longo dos costões volvidos para o sul, ou de bandeiras de diversas cores levantadas no mais alto dos morros, os navios negreiros, ao longe, aproavam confiantes para a terra ou amaravam céleres furtando-se aos que os caçavam.

Toda a atividade naqueles pontos se resumia nas aventuras perigosas do contrabando de escravos.

Dali arrancavam em velozes canoas de voga os auxiliares dos traficantes, indo colher em pleno mar os negros manietados que conduziam para os recessos do Sombrio, ao fundo da baía dos Castelhanos, e para o litoral, de preferência na faixa vincada de pequenas angras que se estira de Mocooca às terras que defrontam o Bairro Alto.

Destas empresas arriscadas, nem sempre coroadas de êxito, resultam os únicos episódios da História, de todo destituída de interesse, daquelas ilhas.

Elas persistem no mesmo estado rudimentar.

Na única realmente povoada, a da Vitória, entre 358 pessoas, somente duas sabem ler e escrever. Um professor que ali esteve, há tempos, pouco se demorou, abandonando-a como quem foge a um degredo inaturável.

Por outro lado nenhum sacerdote houve ainda bastante abnegado para procurar a população esquecida, que é, digamo-lo de passagem, fervorosamente cristã.

Deste modo aqueles lugares, tão próximos do litoral, estão como que abandonados sem terem definidos os próprios nomes — como se estivessem a desmarcadas distâncias, em pleno Atlântico…

Merecem, contudo, alguma atenção.

Posto que diminutíssima a facção de nossa gente que por ali moureja numa atividade primitiva, enérgica e penosa, faz jus a melhores destinos. E uma escola — mesmo modestíssima — traduziria a mais bela intervenção dos poderes constituídos, no sentido de incorporar a uma pátria, que não conhecem, aqueles desprotegidos patrícios.

Ilha dos Búzios

(23° 44’ 15” lat. S. e 1° 51’ 30” long. O. do R. Janeiro)

Esboço Topográfico

Planta nº 2 Esboço topográfico da Ilhas dos Búzios. Arquivo Público do Estado de São Paulo

A planta anexa (nº 2), repitamos, não foi organizada segundo qualquer dos processos regulares. Tentei a princípio um caminhamento expedito, contorneante, com o teodolito de Casela, mas não consegui realizar a terceira visada. Impossibilitou-a o aparelho litoral altamente perturbado de grandes acervos de blocos, já acumulados, já desordenadamente esparsos e desaparecendo apenas nos trechos em que a rocha desce em paredões a prumo, tornando inexequível a travessia.

Verifiquei depois também irrealizável o traçado de uma base central e dominante, tendo a condição essencial da visibilidade dos pontos principais do contorno, facultando uma triangulada rigorosa. O caráter ortográfico da ilha imporia, em tal caso, a escolha de muitas bases secundárias para o apercebimento de todos os vértices, e estas exigiriam demoradas aberturas de picadas, etc.

Idênticos inconvenientes acompanhariam os processos por irradiação e o de ordenadas a uma linha mediana desenvolvida segundo a dimensão maior do terreno.

Reconhecidos tais empecilhos, adotei para logo o recurso único e mais próprio a fornecer indicações razoáveis: rodear a ilha numa canoa de voga, de marcha tanto quanto possível uniforme, que me permitisse apreciar as distâncias pelo relógio, à medida que iam sendo determinadas, com auxílio da bússola, as deflexões das linhas principais da costa.

Assim procedi:

Partindo da estação A, no meio de pequeníssimo estreito que separa a ilha principal da do Paredão, e orientado pelo azimute ponto B, na ponta do Oratório, segui para O e em ordem sucessiva para SO, S, SE, NE e N, tornando ao ponto de partida após 1 hora e 38 minutos de marcha ininterrupta.

Deste modo delineei o esboço citado, na escala de 1:20.000. Suficiente para que se forme ideia perfeita sobre a conformação geral do terreno, carece ele de rigor quanto aos elementos que sirvam para se apreciar as várias dimensões.

A marcha da canoa não foi uniforme. Num percurso envolvente, volvida a proa para todos os ângulos dos quadrantes, saltearam-na lufadas diferentes e a movimentação variável das vagas.

Partindo com o mar remansado e chão, à medida que nos avantajávamos na direção do sul, avolumavam-se as ondas, sobretudo ao longo do desabrigado costão de sueste, onde se tornou sobremodo morosa a travessia.

Assim, ao organizar a planta definitiva, tive de atender a estas circunstâncias fugitivas e instáveis, adstritas a todos os efeitos da apreciação pessoal e sem um só coeficiente prático e fixo que a fortalecesse.

Apesar disto, como procurei equiparar as grandezas obtidas neste reconhecimento com as que adquiri depois, cortando a ilha, por terra, em diversos sentidos, acredito que os erros inevitáveis cometidos tenham sido em grande parte atenuados.

De qualquer modo ficaram definidas as linhas essenciais das costas.

Considerando-as vê-se que a ilha principal se estende justaposta ao traço do meridiano, com um comprimento total de 2.180 metros. Recortam-na pequenas enseadas, duas das quais maiores e mais reentrantes, a das Frecheiras e a do Abrigo para os ventos do Sul, lhe dão a forma geral de um 8 incorreto, repartindo-a em duas partes desiguais, uma, a do norte, com 800 metros de eixo maior, e a outra, do sul, com 1.880 contados a partir do centro do istmo de Frecheiras.

Ora, se lhes dermos as larguras médias, respectivas, de 620 e 1.300 metros, consideradas as figuras como imperfeitos retângulos, o que basta para um cálculo aproximado, verificaremos para a primeira uma área de 496.000 m², e para a segunda a de 1.790.000 m², somando o total de 2.290.000 m², equivalentes, em medidas agrárias, a 229 hectares ou, em números redondos, 95 alqueires.

Tal é a superfície média a adotar-se, convindo, porém, observar que os habitantes do lugar a reputam ainda escassa e são acordes numa avaliação maior. Firmamo-nos, entretanto, nestes números.

A pequena ilha do Paredão, cuja situação real, bem definida na planta, é diversa da que lhe dá a carta de Mouchez, tem a forma mais ou menos triangular, permitindo avaliar-se-lhe melhor a superfície de cerca de 90.000 metros quadrados, correspondentes a pouco menos de 4 alqueires.

Concluímos, então, posto de lado o ilhote das Cabras, de solo arável, e insignificante, que se pode dar ao conjunto de terras a área total de 99 alqueires ou, arredondando o número, 100 alqueires de terras aproveitáveis — convindo aditar que este cálculo, segundo o preceituado, é calculado na projeção horizontal das terras, o que redunda na redução das dimensões efetivas sobretudo em terrenos, como aqueles, bastante acidentados.

Verifica-se este caráter ao simples enunciado das suas costas proeminentes.

De fato, considerando-se a porção setentrional da ilha dos Búzios, propriamente dita, tem-se logo à distância de uns trezentos metros, num ligeiro patamar do morro, a primeira cota de 110 metros. A ascensão, sobretudo para quem entra pela face que defronta a ilha do Paredão, é penosa, derivando por um declive de 20° a 25°. Apesar disso é nesta vertente, livre das ventanias do sueste e sudoeste, que se encontram em maior número as vivendas que a planta indica, circundadas de pequenas culturas, estando a principal delas no ponto definidor da altura indicada. Aí se arqueia um ligeiro socalco, levemente côncavo, centralizado por um banhado de águas perenes e rebalsadas.

Seguindo-se pela linha firme do sul, o terreno sobe até atingir a altitude de 165 metros, da qual descamba logo para o istmo das Frecheiras, que se alonga pelo mesmo rumo, descaindo em pendores breves para o poente e para o levante, em forma de sela, da qual o ponto mais alto alcança apenas 24 metros.

Galga-se então o segmento meridional e maior da ilha, prosseguindo na mesma direção, até ao seu ponto culminante, onde se observa a altura máxima de 188 metros [ 1 ].

Estes números fornecidos pelo aneróide comum, depois das correções de temperatura, revelam a feição montanhosa da ilha, ante a sua área relativamente estreita.

Apesar disto, excluídos a vertente do sueste, parte da do norte e pequenos esporões que vão descaindo para as pontas de leste e sudoeste, o terreno em geral permite subidas desafogadas e fáceis pelas rampas pouco íngremes que derivam para as pequenas enseadas expressas no desenho.

A um simples lance de vista nota-se que estas últimas se abrem da maneira mais própria a torná-las eficazes abrigos ante os ventos reinantes.

De fato, quem segue pelo rumo do reconhecimento feito, por mar, depara logo, transposta a pequena expansão que se lança para noroeste, extremando um dos lados do pequeno canal, o Saco da Aguada, arqueado para o sul e francamente varrido pelos ventos alísios de sueste, mas protegido dos que também com muita regularidade sopram de nordeste. A sua concavidade reduzida, porém, prejudicada ainda e pelo revolto do aparelho litoral, torna-a um imperfeito ponto de desembarque.

Mas estes inconvenientes se atenuam logo adiante. Encontra-se a reentrância maior e mais praticável, das Frecheiras, oferecendo melhor garantia contra o sueste e o nordeste, ainda que este último, canalizado pela selada fronteira à enseada, deve agitá-la fortemente desde que adquira grande violência.

Das Frecheiras em diante, passada a Ponta do Parcel e infletindo para sueste e nordeste até a Ponta da Laje Preta, o costão é todo desabrigado. As vagas investem-no de chapa, perpendicularmente, batidas pelos ventos ponteiros. Não há um único ponto de desembarque em todo aquele trecho, do Parcel à Ponta de Leste, passando pela Laje Preta.

Contorneada a Ponta de Leste, porém, entra-se no melhor abrigo da ilha. A costa encurva-se vivamente para SO e, torcendo sucessivamente para ONO, NO, NNE e NE, até a Ponta do Meio forma um ancoradouro que contrapõe às tempestades perigosas dos quadrantes do sul toda a massa dominante da montanha.

Não tem, além disso, um único escolho ou recife encoberto; é praticável em todos os sentidos e tem profundidade para navios de calado regular, atingindo, mesmo perto da terra, as rápidas sondagens que realizamos, a 11, 12 e 15 metros.

Deixada esta baía, volve-se em cheio para o norte até à Ponta do Oratório, além da qual a borda meridional da ilha do Paredão completa um novo fundeadouro, igualmente abrigado, onde lançou a âncora, numa profundidade de 16 metros, o rebocador Alamiro que até lá nos conduziu.

É um abrigo perfeitamente seguro, malgrado o inconveniente, revelado pelo esboço que aqui traçamos, indicando o estreito que lhe demora a oeste e por onde nos dias de muito mar podem avançar as vagas impetuosamente. A pequena largura dele torna fácil e pouco dispendiosa a sua obstrução, para o que já existem, a um lado, nos grandes monólitos que o marginam, os materiais indispensáveis.

Dessas breves considerações conclui-se a existência de três ancoradouros regulares, por certo ineficazes ante os grandes temporais, mas bastante para as condições normais da navegação, sobretudo após a construção de pequenos cais de desembarque, permitindo que encostem francamente as embarcações, calando 9 a 12 pés.

E considerando ainda o último fundeadouro, traçado, maior, outro esboço, da sua face sul, onde se veem em linhas pontuadas as secções que levantamos, verifica-se pelas sondagens indicadas, de que resultaram os cortes seguintes, que aquelas construções pouco avançarão nas águas para o alcance das profundidades convenientes.

Considerações Gerais sobre a Formação da Ilha — Natureza do Solo, Flora, etc.

Quem segue o itinerário do reconhecimento anterior, contempla notáveis efeitos da força erosiva do mar, exercitada por meio das marés e dos ventos, sobre uma costa rígida, de pedra.

Ora arredondados com o facies completo de enormes blocos erráticos, ora duramente esquinados ou apontoando vivamente as alturas, os fraguedos, alguns de muitos metros cúbicos de volume, se agrupam amontoados, em desordem, orlando inteiramente as ilhas, salvo os raros pontos em que se aprumam as falaises graníticas, verticais e extraordinariamente altas.

Não há um palmo de praia.

O aparelho litoral perturbadíssimo recorda um desmantelamento de muralhas. Não há descobrir-se uma única “itapeva” descendo, inclinada, para as águas, de modo a amortecer a violência das vagas. A força viva destas desencadeia-se, intacta, batendo em cheio na base dos costões. E mesmo nos trechos em que os núcleos mais resistentes da rocha originaram pequenos cabos ou pontas, como no Parcel, na Laje Preta ou no Oratório, os penedos se aglomeram retratando a mesma degradação poderosa e contínua. Apenas em quase todo o correr do costão de sueste a pedra se alevanta em falaise, inteiriça e largamente desdobrada, face volvida para os ventos impetuosos do sul. Mas mesmo nesta banda notam-se, intervaladas e denunciando os pontos fracos atacados, largas frinchas, algumas já em forma de longas galerias, onde acachoam as ondas, reprofundando-as e solapando-as, agravando todos os efeitos de uma decomposição mecânica em grande escala.

Uma destas furnas, que pelo se escavar à feição de um nicho deu o nome à ponta do Oratório, delata ainda na agulha que lhe permanece de pé, à entrada, o desabamento, porventura recente, da abóbada que ali se alevantava.

O trabalho de erosão do mar, como o indicam estas observações, progride lentamente acompanhando as linhas de menor resistência do terreno.

Considerando-se entretanto, a planta anexa, parece que ele se exercita independente da estrutura do solo.

De fato, os incorretos arcos de círculo que ali se veem abrem as concavidades precisamente para os pontos do horizonte de onde chegam os ventos mais constantes e fortes, e as tormentas, como se fossem feitura exclusiva destes elementos.

Além disto, o costão várias vezes citado, de sueste, com ser mais vivamente trabalhado pelas águas e desdobrar-se sem reentrâncias, extremando-se mesmo em ligeira ponta volvida para o OSO, não invalida e antes reforça a conjetura, porque esta protuberância, lançada segundo a resultante das rajadas mais violentas de SO e SE, indica por si mesma o resultado de esforços que ali incidem em ângulo reto, de sorte que as degradações operadas de um lado se atenuam pela simultaneidade das que se realizam do outro.

De qualquer modo o que se verifica, de modo inegável, é a ação demolidora do mar, bastante vagarosa, entretanto, para que se garanta a existência daquela terra por muitos séculos ainda.

Dela se colhe, além disso, o principal elemento para afirmar-se que a ilha dos Búzios é, no rigorismo técnico do termo, uma ilha de erosão, um produto das costas devastadas pelo mar, um fragmento destacado, em remotíssimas idades, do continente que lhe demora fronteiro.

Realmente todos os outros dados que conseguimos obter numa breve excursão fortalecem esse conceito.

Há, por exemplo, a natureza das rochas que formam a ossatura da ilha. Gnaisse-graníticas como as da Mantiqueira e da serra do Mar, associam-se-lhes outra cuja existência é, para o nosso caso, extremamente expressiva.

Consistem nas que encontrei com os caracteres frisantes de nefelinas graníticas (foiaíto) e fonólito. Ora, esta ocorrência idêntica à verificada pelo Professor Orville Derby em vários pontos do continente, de Cabo Frio a Iguape, passando pelo Tingirá, Itatiaia, serra da Bocaina, Poços de Caldas, etc., afigura-se-nos de importância considerável. Estabelece entre os solos da ilha e do continente uma uniformidade estrutural só justificável pela antiga expansão daqueles antes que o desbastassem as vagas, deixando-o profundamente retalhado em toda aquela costa.

Por outro lado a carta hidrográfica de Mouchez indica outros elementos. Realmente, uma reta qualquer traçada da ilha dos Búzios para qualquer ponto do litoral vai, numa continuidade perfeita, à medida que se alonga, passando sobre profundidades cada vez menores, revelando um declive perfeito, sem as dobras súbitas das grandes profundo ras em torno das ilhas oceânicas, repontando independentes das terras que avizinham.

Mas quando estas considerações não bastassem, uma simples excursão pelo interior da ilha confirmaria o conceito emitido.

Aí se nota logo o fato notável, e sem igual em qualquer outro país, da escala exagerada em que se realiza, sob a ação da atmosfera, a decomposição das rochas metamórficas no Brasil — pelas ações combinadas das chuvas violentas, das alternativas de calor e umidade e reação química das águas carregadas de carbonatos alcalinos —, enrugando e estriando as pedras mais duras, rachando-as de meio a meio, segundo as linhas naturais das litóclases, e, ao cabo, reduzindo-as à lama tenuíssima do caulim ou argilas vulgares coloridas pelo óxido de ferro das malacachetas decompostas.

Como nos demais lugares do continente em que o fato se patenteia, veem-se ali espalhados pelos pendores ou pelo teso dos morros, raro acumulados, blocos graníticos de grandes dimensões às vezes, cuja origem está na estrutura concêntrica da massa, feita de núcleos esféricos ou lenticulares, compactos e mais resistentes aos agentes exteriores que as camadas vizinhas envolventes mais facilmente destruídas. Estes blocos dispersos, porém, não são em cópia tal que imprimam o caráter pedregoso à região onde o solo arável se evidencia franco como resultado dessas decomposições profundas. A sua cor escura tão contraposta à vermelha da dos solos graníticos, provém de uma circunstância favorável: a mistura longamente acumulada dos detritos vegetais em terreno insulado e há muito inculto e que tudo indica ser de fertilidade rara.

Mostram-no as matas exuberantes que o revestem. Com efeito, embora o porte dos vegetais maiores não atinja as grandes alturas dos que se alevantam nas serras do litoral, são sensíveis, na variedade das famílias e gêneros distintos, no trançado inextricável da vegetação rasteira e no colorido forte das ramagens, às energias criadoras da terra.

Notamos as espécies principais, à medida que se nos antolhavam, ao acaso, um rumo de picada:

Louro-pardo — (Louro sassafraz) Laurácea
Ipê (Tecoma ipé)
Cuticaém
Bicuíba — (Myristica officinalis) (anonácea?)
Cedro — (Cedrela brasiliensis) meliácea
Goiabeira-do-mato (Myrtus sylvestris) mirtácea
Guapeba (Hupanthea guapeva) (Nhandiácea?)
Guatambu
Bacubichaba
Ambiju
Pitangueira — (Eugenia ligustrina) mirtácea
Cubatã; Cabaceiro — (Sttifitia parviflora) composta
Cambucá — (Eugenia edulis) mirtácea
Bacupari — (Salacia campestris?) hipodrateácea
Peroba
Araçarana
Cambará (Leandra scalera) melastomácea
Batalha; Mossotanha; Cuticaém
Aroeira (Schinus aroeira) anacardiácea
Araribá — (Centrolobium tomentosum) leguminosa
Guaiacá
Guaracipó
Guiti
Brejaúba.

Além do grande número de espécies rasteiras que não foram anotadas.

Ora, se considerarmos que aí se averbam apenas vegetais ocasionalmente encontrados, seguindo rumo prefixo e sem a preocupação essencial de observarmos a flora, conviremos em que é ela farta de gêneros e famílias utilíssimas.

Ainda quando, porém, não bastasse este quadro para atestar a fecundidade da terra, revelá-la-iam as pequenas e mal cuidadas culturas que lá existem.

Reduzem-se a diminutas plantações de feijão, mandioca e cana. Os resultados dessas roças maltratadas, entretanto, equiparam-se aos das melhores terras; bastando dizer-se que a plantação de um alqueire do cereal indicado produz em média 88, atingindo as mandiocas e as canas a grandes dimensões. Além disso — circunstância digna de nota —, em que pese a uma produção escassa, dado o restrito das culturas —, o feijão dos Búzios é conhecido em todo o litoral convizinho, em São Sebastião, Vila Bela e mesmo em Santos, como tendo propriedade de não apodrecer nunca, conservando-se intacto por muitos anos.

Algumas árvores frutíferas, abacateiros, ameixeiras e outras, além de cerca de oitenta laranjeiras plantadas na ilha, faz poucos anos, já assumiram o porte que lhes é próprio e produzem magníficos frutos, assim como um sem-número de bananeiras de várias qualidades, de desenvolvimento realmente notável. O mesmo diremos de pouco mais de uma centena de pés de cafeeiros tendo pouco mais de cinco anos, mas já elevados a uma altura média de 4 metros e espelhando, na coloração firme de uma folhagem espessa, vigor pouco comum. A maturação dos frutos figurou-se-nos, contudo, bastante irregular.

Num tal terreno é natural que não escasseiem mananciais perenes. Observam-se vários, sendo os principais:

1º — O que deriva à meia-encosta do esporão determinante da Ponta da Aguada; o 2º, próximo e mais desviado para o sul, fluindo do minúsculo lago a que nos referimos anteriormente; e o 3º na selada das Frecheiras e descendo para o abrigo de nordeste, além de outros que tivemos por escusado examinar; sendo a água toda de limpidez perfeita e potável.

A despeito de uma despesa insignificante que subirá quando muito, nos maiores, a 0,0005 m³ (meio litro) por segundo (mas que poderá ser aumentada por uma captação racional) é permanente o seu regime, no dizer de todos os habitantes dali e da Vitória. E é natural que isso suceda, ainda nas quadras de prolongadas secas, desde que é aquela terra varrida de modo regular pelos ventos SE e SO, preeminentes distribuidores de umidade.

Nem de outra maneira se explicaria a existência não de uma mas de quatro fontes perenes, na ilha menor, do Paredão, também fértil, revestida de mato e em pequena parte cultivada a despeito da exiguidade de sua área. Uma destas fontes, segundo informam os moradores, tem propriedades terapêuticas no facilitar a cura da opilação e outros males, sem que se conheça, entretanto, a natureza dos corpos que encerra, o que depende de análise ulterior.

Assim se compreende por que a ilha dos Búzios foi arrendada, ou aforada — mediante 50$000 anuais, pagos à Câmara de Vila Bela por habitantes da Vitória, cuja superfície mais ampla lhes devia bastar às maiores culturas.

É que a estas condições naturais favoráveis outras se aliam, por igual apreciáveis.

A fauna terrestre é paupérrima, reduzida a duas espécies de cobras — (a verde, de todo inofensiva, e jararacas das quais o veneno, ali, parece contestável) —, lagartos e batráquios.

Em compensação, a do mar é vastíssima, salientando-se, entre os mais numerosos, os chernes, sargos, garoupas, badejos, cavalas, dourados, salernas, jaguariçás, sororocas, pirajicas, cações, etc.

Veem-se pássaros comuns no litoral: beija-flor, tico-tico, sabiá, juriti, tiê, canário, bem-te-vi, pomba-rola, araponga, saracura, etc.

E nas quadras mais propícias às pescarias, de agosto a outubro, por ali se abatem, de parceria com outras aves de rapina, e perturbando seriamente, às vezes, os trabalhos dos rudes pescadores, os alcatrazes errantes e selvagens.

Uma brevíssima estação de dois dias nenhum elemento nos poderia dar para a caracterização do clima.

Podemos entretanto imaginá-lo constante, transcorrendo um ritmo seguro desde que a abrange o quadro maior da climatologia do Atlântico Sul.

Em tal caso os seus reguladores dominantes são fixos: os alísios, os ventos regulares de SE e NE, agindo livres, salvante as anomalias das quadras tempestuosas, com o rigorismo inflexível do fato astronômico que os determina, porque se forram, naquele ponto, à influência perturbadora das brisas diurnas periódicas, inevitáveis nas costas. Deste modo podemos prever a fixidez imanente aos climas marítimos e um regime em geral estável, sem as perturbações que o desequilibram nas paragens costeiras onde aqueles ventos, repuxados pelas componentes de intensidade variável, das brisas que não raro os suplantam, se desviam, incoerentes e vários, acarretando a variação perturbadíssima dos dados higrométricos e termométricos e a consequência forçada da instabilidade climática.

*

São estes, em imperfeito resumo, os caracteres mais salientes que deparamos na ilha dos Búzios — quase despovoada — com a sua população escassa (e adventícia porque é de moradores da Vitória) de 35 pessoas localizadas em nove casas humílimas, de pau-a-pique, cobertas de sapê, centralizando desvaliosas culturas, cuidadas apenas nos intervalos das pescarias.

Do que dissemos resulta que ela tem capacidade para povoamento muitas vezes maior, explicando-se o seu abandono pela distância [ 2 ] que a separa do litoral.

Ilha da Vitória

(23° 48’ 20” L. S. e 0° 58’ L. O. R. Janeiro)

A morfogenia e aspectos físicos desta, idênticos aos da anterior, dispensam o reproduzir de considerações já feitas. Por outro lado, a planta nº 3, anexa, revela a sua conformação geral e acidentes predominantes de modo a dispensar uma descrição pormenorizada.

Esboço topográfico da Ilha Vitória
Planta nº 3 — Esboço topográfico da Ilha Vitória. Arquivo Público do Estado de São Paulo

Limitamo-nos por isto a apresentar, claros, os motivos que de todo a impropriam ao estabelecimento da colônia planeada.

Destaquemo-los:

1º — o povoamento maior. A ilha tem 358 pessoas, repartidas em 52 famílias, vivendo estas em número igual de casas, das quais 18 são cobertas de telha, rebocadas e caiadas, e tendo um certo conforto.

Quer isto dizer que a sua escolha acarretaria uma indenização enorme porque, dado mesmo que isto lhe fosse permitido, nem um só habitante, conforme observei, ali permaneceria.

2º — caráter da propriedade. Resultado de uma posse imemorial para uns e para outros de compras perfeitamente legalizadas, aquela é ali definida — o que não sucede na dos Búzios.

3° — a natureza da terra. Ainda que sob o aspecto geognóstico idêntico à da outra — o solo, cultivado há duzentos anos, é estéril, exaurido. Ademais uma moléstia recente, porventura favorecida pela debilidade da terra, está prejudicando as culturas. Denominam-na saporema. Ataca o vegetal pelas raízes, que incham, endurecem e negrejam, matando-o em poucos meses. Assim acabaram cerca de dez mil pés de cafeeiros de que restam poucas dezenas, progredindo na devastação contínua o mal que talvez mereça o estudo dos competentes.

Diante disso em que pese ao aspecto, à primeira vista mais atraente, da Vitória, e a sua área maior, e aos seus dois abrigos, das Pitangueiras e da Guaixuma, e aos seus nove mananciais perenes — considero-a imprópria para os fins acima indicados.

S. Paulo, 8 de junho de 1902

Euclides da Cunha
Chefe do 2º Distrito da Superintendência de Obras Públicas

[ 1 ] Um farol ali estacionado, em posição admirável, teria um alcance geométrico, quase igual ao iluminativo, de 28 milhas, pela fórmula empírica D = 2√ H. N. do A.
[ 2 ] A ilha dos Búzios fica a 17 milhas de Ubatuba e a 23 de S. Sebastião. N. do A.
Como citar
CUNHA, Euclides da. Colônia Penal — Relatório Apresentado pelo Dr. Euclides da Cunha [Anexo]. pp. 117 e segs. 3 plantas, 2 quadros. In: SÃO PAULO (Estado). Secretaria do Interior e Justiça. Polícia de São Paulo. Relatório do chefe de Polícia José Cardoso de Almeida ao Secretário do Interior e Justiça. São Paulo: Typographia do “Diário Oficial”, 1903. 135 p. Conteúdo: Policiamento da Capital (6), Policiamento do Interior (6), Casas de penhores (8), Armas proibidas (9), Reuniões públicas (9), Menores criminosos, corrompidos e abandonados (11), Vagabundagem e mendicidade (13), Gabinete de identificação (15), Cadeia e penitenciária (18), Providências diversas (18), Ordem e segurança pública (24), Relações com as autoridades consulares (36), Inquéritos (36), Prisões e detenções na Capital (42), Prisões e detenções no Interior (50), Prisões e detenções em todo Estado (76), Capturas (78), Movimento da Cadeia da Capital (79), Serviço médico legal: a) segundo as pessoas (80), b) segundo os casos (81), c) segundo as causas (82), d) segundo os meios empregados (83), e) segundo as autoridades (84), Movimento do gabinete de identificação (84), Polícia dos hotéis e hospedarias (86), Incêndios (93), Polícia do porto de Santos (96), Navios entrados segundo as classes (96), Nacios entrados segundo as nacionalidades (97), Passageiros entrados segundo procedência e classe (99), Passageiros saídos segundo procedência e classe (99), Passageiros entrados segundo a nacionalidade (100), Passageiros saídos segundo a nacionalidade (100), Secretaria (101), Multas (103), Conclusão (104), Anexos: Lei Número 844 (107), Decreto número 1079 (109), Colônia Penal — Relatório do Dr. Euclydes da Cunha (117)