O nosso antilocalismo frisa pela parcialidade. Não há aplausos que nos bastem aos forasteiros disciplinados que nos últimos tempos transfiguraram as nossas culturas e se vincularam aos nossos destinos, nobilitando o trabalho e facilitando a maior reforma social do nosso tempo.
Somos adversários do nativismo sentimental e irritante, que é um erro, uma fraqueza e uma velharia contraposta ao espírito liberal da política contemporânea. A este pseudopatriotismo, para o qual Spencer, na sua velhice melancólica e desiludida, criou a palavra “diabolismo”, deve antepor-se um lúcido nacionalismo, em que o mínimo desquerer ao estrangeiro, que nos estende a sua mão experimentada, se harmonize com os máximos resguardos pela conservação dos atributos essenciais da nossa raça e dos traços definidores da nossa gens complexa, tão vacilantes, ou rarescentes na instabilidade de uma formação etnológica não ultimada e longa. E ainda quando nos turbasse um esmaniado jacobinismo, todo ele ruiria ao defrontar o quadro da imigração do Brasil: homens de outros climas que aqui se nacionalizam consorciados com a terra pelos vínculos fecundos das culturas.
Mesmo sob o aspecto estritamente econômico, pensamos como Louis Couty — este belo espírito a um tempo imaginoso e prático que com tão largo descortino prefigurou o nosso desenvolvimento: não podemos ainda dispensar a energia européia mais ativa e apta, para que se desencadeiem as nossas energias naturais. O colono, entre nós, é o primeiro, senão o único fator econômico, e, pelo destaque vivíssimo entre a sua perícia infatigável e a nossa atividade tateante, ele reponta, transformando a biologia industrial num capitulo interessantíssimo de psicologia social.
Deste modo, a simpatia pelo estrangeiro, baseamo-la, até movidos pelo egoísmo, nos nossos interesses imediatos e mais urgentes.
Podemos apreciar com segurança o lado sombrio deste assunto.
De fato, esta emigração que desejamos, não já pelo concurso mecânico do braço que trabalha, senão também porque carecemos da colaboração artística e do adiantamento dos outros povos, aparece diante do vacilante da nossa estrutura política e da nossa formação histórica incompleta como um problema, que não podemos afastar, que não queremos e não devemos afastar, mas que devemos resolver com infinitas cautelas. Não podemos encará-lo com o ânimo folgado nem com o moderantismo com que o enfrentam os naturais de um país onde o forasteiro, parta de onde partir, depare, a par de um intenso individualismo de raça constituída, a atmosfera virtual de uma civilização onde ele para viver tenha que se adaptar. A nossa situação não é ainda esta. O forasteiro de um modo geral — à parte naturalmente o rebotalho das levas imigrantes — aqui depara um meio intelectual e moral facilmente complectível, senão inferior àquele onde nasceu; a pouco e pouco vai trazendo-nos o seu ambiente moral, destruindo pelo continuo implante dos seus costumes o próprio exílio que procurou e criando-nos ao cabo, graças ao nosso desapego às tradições, ao cosmopolitismo instintivo e à inseguridade dos nossos estímulos próprios, um quase exílio paradoxal dentro da nossa própria terra.
É nesta circunstância única que se esboçam inconvenientes capazes das mais exageradas susceptibilidades patrióticas esclarecidas pelas mais sólidas inferências positivas.
Falta-nos integridade étnica que nos aparelhe de resistência diante dos caracteres de outros povos.
O Brasil não é como os Estados Unidos ou a Austrália, onde o inglês, o alemão ou o francês alteram e cambiam as qualidades nativas ou as refundem e refinam, originando um tipo novo e mais elevado do que os elementos formadores. Está numa situação provisória de fraqueza, na franca instabilidade de uma combinação incompleta de efeitos ainda imprevistos, em que a variedade dos sangues, que se caldeiam, implica o dispersivo das tendências díspares, que se entrelaçam.
E isto numa quadra excepcional em que parecem perdidas todas as esperanças no influxo nivelador do pensamento moderno, cuja circulação poderosa, contravindo a todos os prognósticos, não refundiu, não misturou e não unificou os atributos primitivos dos povos, nem destruiu, num desafogado internacionalismo, a cláusula das fronteiras.
As últimas páginas de H. Spencer são um diluente do esplêndido rigorismo das suas mais sólidas teorias. O filósofo que se abalançou a traduzir o desdobramento evolutivo das sociedades numa fórmula tão concisa e fulgurante quanto a fórmula analítica em que Lagrange fundiu toda a mecânica racional — acabou num lastimável desalento. A seu parecer, a civilização desfecha na barbaria.
Depois de presidir ao triunfo das ciências e de caracterizar os seus reflexos criadores nas maiores maravilhas das indústrias — assombrou-o à última hora, salteando-o de espantos, o sombrio alvorecer crepuscular do novo século. E contemplando em toda a parte, de par com a desorientação científica, um extravagante renascimento da atividade militar e um imperialismo que denuncia a tendência das nacionalidades robustas a firmarem a hegemonia política — rematou uma vida que toda ela foi um hino ao progresso, confessando que assistia à decadência universal.
Exagerou.
Mas há um fato incontestável: o pendor atual e irresistível das raças fortes para o domínio, não pela espada, efêmeras vitórias ou conquistas territoriais — mas pela infiltração poderosa do seu gênio e da sua atividade.
Para este conflito é que devemos preparar-nos, formulando todas as medidas, de caráter provisório embora, que nos permitam enfrentar sem temores as energias dominadoras da vida civilizada, aproveitando-as; cautelosamente, sem abdicarmos a originalidade das; nossas tendências, garantidoras exclusivas da nossa autonomia entre as nações. Está visto o significado superior desse anelo quase instintivo de uma revisão constitucional que tanto vai generalizando-se e em breve será a plataforma única de um partido, o primeiro digno de tal nome a formar-se neste regime. Reconhece-se, afinal, que o nosso código orgânico não enfeixa as condições naturais do progresso; e que andamos há quinze anos no convívio das nações com a aparência pouco apresentável de quem, meão na altura, se revestiu desastradamente com as vestes de um colosso.
Daí, a maioria dos males.
Fora absurdo atribuí-los à República, numa época em que a preexcelência das formas de governo é assunto relegado aos donaires da palavra e à brilhante frivolidade dos torneios acadêmicos. Atribuímo-los ao artificialismo de um aparelho governamental feito de afogadilho e sem a medida preliminar dos elementos próprios da nossa vida. Um código orgânico, como qualquer outra construção intelectual, surge naturalmente da observação consciente dos materiais objetivos do meio que ele procura definir — e para o caso especial do Brasil exige ainda medidas que contrapesem, ou equilibrem, a nossa evidente fragilidade de raça ainda incompleta, com a integridade absorvente das raças já constituídas.
A tarefa dos futuros legisladores será mais social do que política e inçada de dificuldades, talvez insuperáveis.
Realmente, este velar pela originalidade ainda vacilante de um povo — numa fase histórica em que se universalizam tendências e ideais, e em que fora absurdo inclassificável o sequestro do Paraguai de há cinquenta anos, equivale quase a impropriar-se ao ritmo acelerado da civilização geral…
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Mas se não podemos engenhar medidas que nos salvaguardem, ou amparem nesta pressão formidável imposta pelo convívio necessário, civilizador e útil dos demais países, devemos pelo menos evitar as que de qualquer modo facilitem, ou estimulem, ou abram a mais estreita frincha à intervenção triunfante do estrangeiro na esfera superior dos nossos destinos.
É o que sucede, para citarmos um exemplo, com o projeto de reforma constitucional que neste momento se discute no Congresso paulista.
Lá está um artigo a talho das considerações que alinhamos.
É o que firma a elegibilidade do estrangeiro, dotado com um exíguo quinquênio de vida estadual, para o cargo de presidente do Estado. A reforma, neste ponto, não altera o estatuto antigo.
Renova-a. O naturalizado, revestido de direitos políticos de pronto adquiridos na franquia escancarada da grande naturalização, poderá dirigir amanhã os destinos do Estado mais próspero do Brasil.
Assim, ao plagiar a estrutura política dos ianques, mal cepilhando-lhe as rebarbas, vamos repelí-la e repudiá-la precisamente no lance onde ela ostenta um magnífico ciúme nativista, rodeando de tantas exigências, de tantos impeços e de condições tão severas, até para os mesmos filhos do país, o conseguimento de um cargo, que é a mais alta concretização da vontade popular, e que se destina a imprimir uma unidade inteiriça entre os demais órgãos do governo.
Todas as linhas anteriores nos dispensam o comentário mais breve desta disposição legislativa que irá atrai;, para o ponto mais alto das agitações eleitorais a arregimentação vigorosa dos que têm a solidariedade espontânea e firme determinada pelo próprio afastamento da verdadeira pátria. E se considerarmos bem o quadro desanimador da nossa atual existência política, praticamente definida pela mais completa indiferença e em que o abstencionismo se erigiu em protesto único e contraproducente a defrontar os estigmas que debilitam a organização dos poderes constituídos — o artigo renovado na Constituição do Estado mais cosmopolita do Brasil não é apenas um erro.
É até uma imprudência.