Correspondência ativa de 1900

S. José do Rio Pardo, 2 de junho de 1900

Reinaldo Porchat, envio-te um abraço e peço-te que nos recomendes a toda a Exma. família.

Não te escrevi há mais tempo porque não o tem permitido a minha vida fatigante de trabalhador — meio engenheiro meio operário — totalmente entregue à missão de transmudar uma ferragem velha e torcida em ponte resistente e elegante. Felizmente tenho hoje a segurança de sucesso franco e já posso cuidar de deveres talvez mais sagrados — como este que cumpro agora, saudando um bom amigo ausente.

Mas não foi para tratar de mim que aqui vou traçando estas linhas como uma pessoa que há quatro meses não faz outra coisa senão embotar-se lastimavelmente em cálculos enfadonhos e maçantes — foi para te pedir notícias tuas, o que, para mim, é incomparavelmente mais interessante. Peço-tas; desejo-as, espero-as.

Não creias que esta minha existência rudemente atravessada, há dois anos, nas tendas do trabalho, me haja transmudado ao ponto de esquecer os velhos companheiros do teu porte. Por isto, escolhe nas tuas horas de descanso alguns minutos e dedica-os ao

Euclides da Cunha

[1900]

[A Júlio Mesquita]

Aceitando o seu convite, espontaneamente feito, para ocupar um lugar no próximo Congresso Constituinte do Estado, faço-o principalmente porque ele partiu de um velho companheiro de lutas que, conhecendo-me desde menino, sabe perfeitamente que eu seria incapaz de aceitar se me reconhecesse sem atitude para o cargo. E faço esta declaração agora, rompendo o silêncio que tenho mantido sobre o assunto, porque, estando vulgarizada a minha candidatura, sem que, para tal, eu contribuísse com a revelação mais breve, preciso preveni-lo para que não me veja amanhã na posição deplorável de pretendente infeliz mantendo a linha segura que sempre mantive até hoje. Seria dolorosa injustiça.

Não repare em tão exagerado escrúpulo. Apesar de uma mocidade revolucionária, sou um tímido. Assusta-me qualquer conceito dúbio ou vacilante. E está nisto explicada mesmo a anomalia de ter permanecido engenheiro obscuro até hoje, num regime cuja propaganda me levou até a revolta e ao sacrifício franco, como sabe. Assim, meu ilustre amigo, já que me desviou, num belo impulso de espírito generoso e forte, do modesto programa da minha vida, reduzido à convivência tranquila de alguns livros, para me apontar destino mais alto, sustente-me.

Ademais, sabe que não iludirei a sua expectativa. Serei no Congresso o que sou aqui — um trabalhador. Porém, se na engrenagem complicada das candidaturas se anular a minha, eu terei, certo, mais um desapontamento que recalcarei como muitos outros, mas continuarei a ser sempre o mesmo amigo certo.

Euclides

S. José do Rio Pardo, 15 de maio de 1900

Pethion de Villar

O portador desta não é um amigo apenas ― é um advogado. E não vai somente encarregado de abraçar por mim, obscuro rabiscador do Sul, ao grande poeta do Norte ― leva também a delicada incumbência de atenuar condenável incorreção apresentando-te valiosas razões justificativas de um silêncio que sou o primeiro a lamentar.

Entre outras coisas dir-te-á que levo a mais inútil das vidas em perene conflito com a minha engenharia obscura cujas exigências me afastam de outras ocupações mais atraentes às quais somente dedico um ou ou quarto de hora de folga nos meus dias fatigantes de operário.

Por isto o meu livro sobre a interessantíssima luta nos sertões da tua terra ainda não apareceu. Está, porém, agora ― finalmente, pronto e ainda que seja o primeiro a considerá-lo lardeado de defeitos sérios entre os quais avulta certa falta de unidade oriunda das condições em que foi escrito ― tem, preponderante, uma qualidade que o nobilita: a sinceridade com que foi traçado.

Será seu único valor.

Por isto, talvez não faça jus à consagração de uma versão para o francês a que espontânea e cavalheirescamente te propuseste quando aí estive. Transplantado à mais vibrátil das línguas, por um parisiense dos trópicos, temo que o meu estilo, algo bárbaro, não se afeiçoe a tão delicado relevo.

Em todo o caso não me deslembrei do honroso oferecimento e caso desejares enviarei um excerto qualquer como prova indispensável.

E adeus.

O meu digno amigo dr. José Leite substituir-me-á com vantagem dando outras notícias. Pedindo que me recomendes a toda a Exma. família sou cordialmente

Euclides da Cunha

S. José do Rio Pardo, 2 de dezembro de 1900

Reinaldo Porchat, desejo-te saúde e felicidades assim como a todos os teus.

Escrevo-te propositalmente hoje — porque sei que quando esta aí chegar terás lido a ansiosamente esperada chapa da Comissão Central — e a par da satisfação que terás, vendo nela o teu nome, sentirás tristeza real notando a ausência do meu. Tristeza sincera — digo-o, porque entre os meus grande senões tenho preeminente qualidade: avalio bem os meus raros amigos. Conheces a história da minha extravagante candidatura: ao chegar aí, exclusivamente preocupado com os deveres profissionais, fui com ela surpreendido. O Mesquita, esse Júlio Mesquita, que às vezes penso ser um irmão mais velho, ofereceu-ma com adorável espontaneidade. Aceitei-a. Mas este desazo, esse escorregão fora da linha reta em que sempre estive, esse esquecer pecaminoso da minha velha rigidez republicana, esse transigir com a vaidade — paguei-os! Ainda bem. Sinto singular consolo no próprio travar do desapontamento que me estonteou. E relendo a carta que me noticia o desabamento de uma meia dúzia de aspirações sinto amargas delícias de um penitente sofredor e tenaz.

Quando estivermos juntos conversaremos melhor.

Felizmente sei que fostes melhor compreendido. Isto é ao menos uma compensação. O teu nome no quadro dos futuros legisladores reconcilia-me com a situação, e atenua-me o pessimismo. Faz-me, afinal, acreditar que ainda não está tudo perdido. No atravancamento de não sei quantos adoradores da Fortuna Parva ainda há lugares para os lutadores sem máculas, abnegados e viris.

Adeus. Não vá acreditar que há desalentos nestas palavras. Não sei porque, mas sinto-me hoje maior — não sendo coisa alguma — e é com amor nunca sentido que me volto para minha engenharia rude e obscura, à qual me abraçarei definitivamente, entregando-me doravante, de todo, às suas fórmulas áridas, positivas, inflexíveis.

Adeus, meu caro amigo.

Euclides da Cunha