Henry Bacon
O amigo de Euclides da Cunha, Vicente de Carvalho, o acompanhou uma vez numa excursão pelo mar, no litoral de São Paulo, indo à ilha de Búzios. O líder da excursão era Euclides. O mar ficou muito bravo, mas o comandante do pequeno barco, um rebocador oceânico, teve dificuldade em persuadir o líder a desistir da travessia. Vicente, anos mais tarde, querendo acentuar a bravura e devoção ao dever de Euclides, disse que este tinha pavor pelo mar, e, quando insistia em enfrentar a tempestade, estava olhando as ondas fixamente, os olhos esbugalhados. De Vicente, o conceito passou para Olímpio de Souza Andrade, que no seu livro História e Interpretação de Os Sertões, declara que Euclides quando no mar, tinha uma aversão tão grande contra ele, que fechava os olhos até poder avistar uma ponta de terra qualquer. Assim generalizou-se a opinião de que Euclides sofria de uma talassofobia incurável.
No dia em que o escritor foi morto, publicou-se um encontro que teve com ele o jornalista Viriato Correia. O convite, feito por Euclides, para este encontro estava colocado nestes termos:
“– Vai um domingo lá em casa, que diabo! Conversamos, almoçamos e depois sairemos descalços, a passear na praia.
“– Porque descalços?
“– Para poder andar na margem da praia, com os pés na água!”
Talassofobia? Fechando os olhos ao mar? Viriato Correia ainda diz:
Foi num domingo que lá estive. Era sol e era azul. A casa estava com as janelas abertas para o vento do mar, rumorejante da alegria das ondas, que na areia se esfarelavam toda lavada do sol, daquele domingo álacre.
(Grifos são meus)
Há somente uma nota dissonante na alegria daquele dia, como Correia a descreve. Nenhuma menção da esposa ou da família. Mas isso é outra história.
No entanto, quanto às relações de Euclides com o mar: Viriato Correia está mentindo? Ou está imaginando coisas? Ele era jornalista estimado por muitos anos depois de fazer esta reportagem, e não foi acusado de imaginar as notícias. Mas, aceitando o seu relatório do incidente como verídico, somos forçados à conclusão: se Euclides tinha sofrido de talassofobia no passado, já tinha conseguido curar-se.
Porém, vamos ao passado de Euclides. Em 1883, ele compôs um caderno de poesias. Tendo 14 anos de idade. Colocou à coleção um título: Ondas. Sendo fluminense é de supor-se que ele se referia ás ondas do mar. Na coleção, incluiu um soneto a Gonçalves Dias, morto num naufrágio vinte anos antes. Realmente, a poesia fala tanto do mar como do poeta, tendo a exclamação: O mar! O mar!…
Termina a peça:
Mas quando, forte,
Em seu dorso resvala – ardente, norte,
E ele espumante estruge, brada, grita,
E em cada vaga uma canção estoura…
Eu – creio ser tu´alma que, sonora
Em seu seio sem fim – brava – palpita!
Quando o mar está muito agitado, Euclides percebe uma música nas vagas, e imagina que a melodia é dos versos de Gonçalves. Na ultima linha, em seu seio é um termo de afeição. Aos quatorze anos, sofria de talassofobia? Fechava os olhos (e ouvidos) ao mar?
A verdade nua e crua é que Euclides sofria, não de talassofobia, mas de simples enjôo do mar. Ele achava que era incurável este mal no caso dele, Mas o fato é que nunca ficou no mar tempo suficiente para o seu corpo se ajustar ao balouçar de um navio. Dizem que o grande almirante Nelson sempre sofria enjoo no começo de uma viagem, porém depois de alguns dias não sentia mais nada. O mais que Euclides ficou sobre o mar de uma vez, era quatro dias, (ou talvez oito, indo ao Amazonas) não o suficiente para o ajuste do seu sistema físico.
Vicente de Carvalho viu os olhos vidrados do seu amigo, aquela vez no rebocador, o tremer do corpo, e julgou que era de medo. Mas estes eram os sinais de que Euclides estava lutando para manter a sua dignidade de líder, e não ir a vomitar. Não era ele um para explicar, mesmo para um amigo, que não era talassofobia. Mas, uma vez colocada em circulação por Olímpio de Souza Andrade, a ilusão não podia ser refreada mais.
Quando da viagem marítima de 1905, a caminho do Rio Purus, Euclides escreveu ao seu pai: “Fizemos sempre boa viagem, embora o meu estômago incorrigível [meus grifos] me trouxesse um meio-enjoo intolerável desde a partida do Rio”!
Se os nervos tivessem sido esfrangalhados por estar no meio do mar, nunca poderia escrever: — Fizemos sempre boa viagem. Vamos notar que ele não fala dos nervos, nem do coração, mas do estômago. E conhecemos aquele pouquinho de náusea que é capaz de estragar a felicidade toda do estar em viagem. Mas é cabível notar outro indicador. Na primeira viagem pelo mar, para Bahia em agosto de 1897, ele escreve ao seu jornal: Depois de quatro longos dias de verdadeira tortura… Não descreverei os incidentes de viagem, vistos todos através de inconcebível mal-estar…
Embora a distância na outra viagem (1905) fosse duas vezes aquela da primeira, inconcebível mal-estar modificou para meio-enjoo. Indo e vindo, Euclides já estava vencendo na luta da cura; do enjoo, não da talassofobia, da qual nunca padeceu.
A entrevista de Viriato Correia acaba, de uma vez, com a teoria da talassofobia de Euclides. Porém, com um estudo profundo dos escritos dele já devia ser impossível sustentar esta teoria. É sempre mais confiável conhecer um escritor através da sua obra, do que pelos comentários de outros. Em Os Sertões, vários trechos de linguagem forte, apaixonada, portanto, bela, ocorrem onde Euclides traz o mar em cena; desde a descrição das primeiras quinze linhas da primeira divisão A Terra, até o extenso símile “como uma vaga revolta…” no começo da divisão Últimos Dias.
Por referência à obra de Euclides eu já tinha provado, no meu livro A Epopeia Brasileira, publicado em 1983 (em co-editoria da Antares e o Instituto Nacional do Livro, Fundação Nacional Pro-Memória), que Euclides era um apaixonado pelo mar. Mas ninguém leu, ninguém ligou. No meio de todos os mestres e doutores, eu era um simples bacharel (embora fosse um bacharelado da Universidade de Londres). De modo que agora, em 2000 e tanto, vem comentaristas falando ainda da talassofobia de Euclides.
Quando Euclides embrenhou-se no mato do sertão, não virou as costas para o mar. Levou o mar consigo na memória, nas veias, nas fibras do corpo, e continuamente recorre ao mar para comparações que criam grande parte da beleza literária de Os Sertões. Primeiro, é o mar calmo que é trazido ao sertão. Ele vê uma enorme expansão dos plainos… estranho palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um seio de mar, largo, irisado…
Depois, várias vezes é ao mar agitado que ele compara os ataques frenéticos dos sertanejos contra as linhas do exército, por exemplo: intermitentemente, ritmicamente, feito o fluxo e refluxo de uma onda, batendo monótona os flancos da montanha.
Na abertura da seção Últimos Dias do livro, ocorre um dos trechos mais impressionantes, em que o som da linguagem reflete os sibilos do volume estonteante do fogo dos sertanejos; o trecho que vai de Projetis de toda a espécie até uma profusão incomparável de metralha. Em preparação para este trecho, Euclides tem aquele longo símile, começando:
Era como uma vaga revolta, desencadeando-se num tumulto de voragem…
e os adjetivos são de concordância feminina até o fim do período, que é quase um parágrafo todo. Quer dizer, o mar continua a ser o meio de expressar a intensidade do conflito, na descrição toda. Euclides amava o mar. Seu problema não era talassofobia, era o enjoo.
Carta de Euclides da Cunha a Vicente de Carvalho, de 11 de outubro de 1902, Colônia Penal (Relatório sobre as ilhas dos Búzios e da Vitória), A última entrevista (concedida a Viriato Correia) e o relato de Vicente de Carvalho