Os reparos nos fortes de Bertioga

Na pequena enseada da Bertioga, por onde se entra no lagamar de Santos, há duas justificações permanentes que se incluem entre os mais antigos monumentos da nossa história.

Uma, a da direita para quem chega do mar alto, está num imperfeito estado de conservação; outra, a da esquerda, da outra banda, extremando a face setentrional da ilha de Santo Amaro, jaz inteiramente perdida no afogado de um cerradão espesso. E ambas denunciam um passado remotíssimo.

A primeira — a antiga fortaleza de São Tiago, que se diz, hoje, mais apropriadamente, “forte de Bertioga” — está na ponta extrema da praia, onde o canal termina, e é de pronto percebida. Simples baluarte retangular e baixo de canhoneiras estreitas para artilharias que joguem à barbeta, não tem outra importância prática além da situação que lhe permite enfiar toda a entrada da barra que defronta. Não tem fossos, nem casamatas, nem redutos interiores. Reduz-se a uma plataforma de pouco mais de 100m² de superfície, a 2,50m sobre o solo, calçada toscamente, e cingida de parapeitos muito baixos, de pedra e cal, onde se sobrelevam duas frágeis guaritas de tijolos. Ao fundo, protegida dum lado pelo prolongamento da muralha do forte, acha-se a antiga caserna, acaçapada e em ruínas — cômodos mal repartidos, sem soalhos e quase sem abrigo sob um telhado levadio que desabou em parte. Os repartimentos diminutos contrastam com a exagerada espessura das paredes de adobos que os separam. Uma pequena pia batismal, de granito, fixa num ângulo de parede mostra o local da antiga capela que ali houve e da qual não restam hoje nenhuns outros indícios. Daí se sobe para a plataforma referida por uma escada de pedra, ainda em bom estado.

Aproveitada hoje como um dos postos da linha costeira do telégrafo nacional, deve-se talvez a esta circunstância única o não ter ainda caído no mais absoluto abandono tão vetusta construção.

De fato as suas origens são remotíssimas. Diante dos escassos dados que se nos antolham de momento, e que certo poderiam ser reforçados com muitos outros se nos sobrasse tempo para maiores pesquisas, vê-se que ela demarca o começo da posse efetiva do nosso território, datando a sua fundação do desembarque de Martin Afonso de Sousa, que, no dizer dos cronistas, ali ergueu uma estátua de madeira, ou simples espaldão de defesa. Conforme demonstra Azevedo Marques, para não citarmos outros, aquele lugar foi — desde a primeira metade do século do descobrimento — um agitado teatro de frequentes assaltos dos tamoios e de porfiadas resistências dos colonos. Assim, destinada essencialmente a reagir contra o elemento indígena, para logo representado pelos ururaris de Piquerobi, a antiga fortaleza foi diminuindo de importância à medida que diminuíram as incursões do bárbaro; e como o canal, que ela sobranceia e domina, já naqueles tempos talvez não oferecesse livre prática aos galeões ou navios de maior calado, os cuidados dos conquistadores naturalmente se voltaram para outros pontos, para a entrada atual de Santos, onde se alevantaram, desde a Barra do Itapema, mais necessários dispositivos de defesa. Daí também, em grande parte, o silêncio dos historiadores. Apenas em 1710-1711, ao surgir a tentativa heroica de Duguay-Trouin contra o Rio de Janeiro, repararam-se os muros e o armamento da Bertioga, permanecendo ela em condições regulares para a luta, pelo menos até 1770, como se evidencia de um ofício de 30 de junho daquele ano do capitão-general d. Luís Antonio de Sousa, ao governo da metrópole, declarando que o forte estava guarnecido com seis peças de calibre .8, duas de .6 e uma de .4, à parte dos pedreiros de bronze.

É possível que este armamento chegasse aos nossos dias — porque há pouco mais de dois anos, uma comissão de engenheiros militares percorreu este trecho da nossa costa, arrolando aquelas velhas bocas de fogo, que o governo federal parece ter cedido a um contratante pelo baixo preço dos ferro-velhos imprestáveis…

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A outra fortaleza, erguida num costão fronteiro, na ilha de Santo Amaro, é a antiga de São Filipe, construída, consoante os mais seguros dados, em 1550.

É, sob todos os aspectos, mais interessante. Erige-se inegavelmente no mesmo ponto da casa-forte de Hans Staden. E o estoico artilheiro alemão, sempre tão confuso e imperfeito no relatar a sua vida acidentada, foi de uma clareza notável neste lance. Depois de narrar as sérias aperturas em que viviam os colonos na terra, firme, onde o forte anterior, da Bertioga, lhes não bastava à segurança, diz num longo trecho de que extratamos os tópicos principais, constituindo a página mais eloquente e clara daquela fortaleza:

Por causa disto, deliberaram os moradores edificar outra casa ao pé da água, e bem defronte da Brikioka [Bertioga], e aí colocar canhões e gente para impedir os selvagens. assim tinham começado um forte na ilha… Fui ver o lugar. Quando os moradores souberam que eu era alemão e que entendia de artilharia, pediram-me para ficar no forte e ajudá-los a vigiar o inimigo… Contratei com eles para servir 4 meses na casa, depois do que um oficial devia vir por parte do Rio, trazendo navios, e edificar ali um forte de pedra para maior segurança; o que foi feito… fizeram a casa de pedras, puseram dentro alguns canhões e ordenaram-me que zelasse bem da casa e das armas. [ 1 ]

Ora, o reduto secular de Hans Staden está hoje em condições deploráveis — invadido de mato, desguarnecido e mal percebido num pequeno lanço desvendado. Entretanto tudo indica que ele foi, no correr dos tempos, consideravelmente ampliado e melhorado ao ponto de assumir as proporções de verdadeira fortaleza.

Assim hoje quem vinga o áspero costão em que ela se erige, sobre a rocha viva mascarada na espessura de um cerrado, é surpreendido pelas suas linhas, imponentes a despeito de um traçado amplíssimo.

Esboço da faixa litorânea de Bertioga

De fato, a planta da sua magistral — como se vê deste ligeiro esboço onde apenas visamos à forma sem as dimensões que não medimos rigorosamente — reduz-se a um amplo arco de círculo lateralmente expandido em duas alas dispostas por maneira que os seus raios de ação interferem, simultaneamente, a entrada do canal, a enseada fronteira e o mar alto.

A par desta locação admirável, destacam-se outros elementos de defesa; na frente o costão inabordável onde as vagas dificultam o desembarque acachoando entre enormes blocos irregulares, de granito; e aos lados o terreno altamente perturbado impossibilitando com os taludes vivos todos os movimentos contornantes.

Além disto, a construção, de si mesma, é notabilíssima. Maior e mais alta que a Bertioga, alia a tais vantagens as que decorrem de uma mão de obra impecável e material escolhidos. Ajustada em seus fundamentos naturais sobre grandes lajes de pedra desbastada, solidárias por uma amarração perfeita e argamassa fortíssima, alevanta-se, com esta sólida alvenaria, até dois terços, aproximadamente, da sua altura (cerca de 4 metros, onde um grosso cordão de pedra alisada à escoda a rodeia toda), em longo friso saliente. Daí para cima continua com a mesma cantaria até à base do parapeito onde se abrem, salteadamente, as gárgulas de esgotamento, feitas de lajes inteiriças e lavradas. Depois o parapeito, cuja crista, esborcinada em vários pontos, define ainda, apesar disto, os estreitos planos de fogo em bom estado. Os cantos das alas, de cantaria aparelhada, suportam, vantajosamente, qualquer confronto com idênticos trabalhos atuais; e as guaritas que os encimam, repousando sobre artísticas consoladas de granito, permanecem intactas, graças aos materiais e à sua feitura corretíssima.

Ainda em virtude do bem-acabado dos trabalhos e do lúcido critério que os presidiu, compreende-se bem o estado relativamente satisfatório da fortaleza, malgrado um dilatado abandono denunciado pelas próprias figueiras-bravas que lhe nasceram por toda a área da plataforma, e sobre os parapeitos, espalhando as suas longas e tortuosas raízes para toda a banda num traçado inextricável, que, em vários pontos, oculta inteiramente as alvenarias, e irrompe de todos os pontos, embaralhadamente das juntas das muralhas às seteiras das guaritas. Apesar disto não se nota um estalo naqueles muros, ou ligeiro deslocamento das lajes. A construção permanece intacta, como se a envolvente trama vegetal lhe fosse garantidora precinta. Mas pode-se prever que, afinal, com o decorrer dos tempos, cedam as mais sólidas junturas, operando-se a pouco e pouco a demolição inevitável ante aqueles lentos e permanentes esforços, a que naturalmente se associam os demais agentes exteriores.

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Daí a necessidade dos reparos.

Trata-se de conservar duas grandes relíquias, que compensam a falta absoluta de qualquer importância, estreitamente utilitária, com o incalculável valor histórico que lhes advém das nossas mais remotas tradições.

Compreende-se, porém, que tais reparos tendam apenas a sustar a marcha das ruínas. Quaisquer melhoramentos ou retoques, que se executem, serão contraproducentes, desde que o principal encanto dos dois notáveis monumentos esteja, como de fato está, na sua mesma vetustez, no aspecto característico que lhe imprimiu o curso das idades.

Guarujá, 22 de agosto de 1904