Documentário

Ofício nº 110

Manaus, 1º de novembro de 1905

Exmo. Sr.

O rápido relatório que tenho a honra de enviar a V. Ex.ª, para não perder o primeiro correio que se nos oferece, tem, naturalmente, todas as imperfeições de um trabalho precipitadamente realizado. Não leva outro fim além de dar a V. Ex.ª uma ideia dos nossos trabalhos. Terei o trabalho de completá-lo e ampliá-lo mais tarde em todos os seus pontos. Dada a sua rapidez, peço também a V. Ex.ª que me desculpe o não ter podido subordinar-me aos preceitos comuns de redação oficial.

A planta que juntamente aí segue pouco divergirá da definitiva. Infelizmente, por mais que nos esforçássemos, não conseguimos estendê-la até Lábrea, sem prejuízo da perfeição do trabalho. Vai na escala de 1:100.000 altamente favorável à designação de seus pontos principais.

As inclusas fotografias são apenas amostras das que tiramos em grande número e que oportunamente enviaremos a V. Ex.ª.

Também, na próxima correspondência, enviaremos a estatística cuidadosa que efetuei no Purus, entre Barcelona e Sobral, assim como outros esclarecimentos que por escassez de tempo deixaram de seguir.

Saudando mui respeitosamente a V. Ex.ª. em nome de todos os meus companheiros de trabalho, subscrevo-me com a mais elevada consideração

Euclides da Cunha

Sr. ministro,

De volta do Alto Purus, cujo reconhecimento efetuei, vou expor a V. Ex.ª os fatos capitais sucedidos durante a nossa viagem, e como no momento atual tenho que atender a muitos trabalhos, me limitarei a apontar os mais dignos de nota que deverão ser pormenorizados ou esclarecidos mais tarde. Durante a viagem tive a honra de enviar a V. Ex.ª muitas comunicações. Ms eram, em geral, incompletas — já pela precipitação com que eram escritas, já pela nenhuma garantia de sigilo nas cartas que passavam por várias mãos antes de chegarem a Manaus.

Renovarei, por isto, alguns dados nelas expostos e iniciarei esta exposição com a nossa partida da confluência do Chandless — certo de que até aquele ponto, graças aos ofícios que remeti a V. Ex.ª por um portador seguro, tem V. Ex.ª pleno conhecimento de nossa situação

Iniciamos a nossa partida no dia 30 de maio — ao meio-dia — e apesar das grandes dificuldades facilmente previstas e do dilatado de nosso itinerário — íamos animados. A minha Comissão — como em tempo comuniquei — reduzira-se pela força das circunstâncias a 14 homens apenas (o chefe, o auxiliar, o médico, 1 sargento e 6 praças, e quatro trabalhadores), ao passo que a peruana, íntegra, levava, à parte o pessoal superior, 21 homens. Esta disparidade, porém, figurou-se-me sem importância. As relações das duas eram muito cordiais; marchamos até ali de inteira harmonia em todos os atos, e graças a esta circunstância previu-se o êxito da jornada, por mais difícil que ela parecesse.

Num ponto apenas surgiu o desânimo franco: a travessia dos varadouros. Este remate do nosso esforço, desde Manaus que se preestabelecera — impossível. Mais bem informado do que eu pelos seus patrícios do Alto Ucaiale e do Alto Purus, o sr. Pedro Buenaño por vários meses me expôs os sérios empeços que nos fariam recuar, numa impressionadora resenha de perigos que iam das cachoeiras e tremedais intransponíveis dos caminhos às bravuras dos campas indomáveis. Tomaram tal vulto estas dificuldades futuras que nas vésperas de nossa partida se aventou a ideia de uma ata em que, expostos os tropeços numerosíssimos, os dois comissários de antemão ressalvassem ou atenuassem as grandes dificuldades de um inevitável recuo. Declaro francamente que fui a princípio partidário desta ideia. Repeli-a depois. Repeli-a precisamente no momento em que nos reuníamos para lavrar aquela ata — e expliquei a minha atitude declarando ao comissário peruano e aos demais companheiros presentes que, embora bem-intencionados, o nosso ato daria motivos a comentários talvez prejudicialíssimos e cujo caráter não podíamos prever. Não me arrependo ainda hoje do que fiz. Infelizmente, o incidente parece haver desgostado aquele comissário que, numerosas vezes, no decorrer de nossa viagem, a ele se referia deixando transparecer em veladas recriminações todo o desapontamento que tivera. E insistia sempre sobre a impossibilidade de atingir a transpor os varadouros — de sorte que ao partir da confluência do Chandless era essa a causa única de desânimo. Mas avançamos efetuando os trabalhos de levantamento hidrográficos com a luneta de Lugeal, para as distâncias, e o compasso de levantamento, para os rumos. As paradas forçadas impostas por este processo, porém, fizeram que a breve trecho, ao cabo de 3 dias, o abandonássemos. Realmente, seguíamos com a marcha de todo inaceitável para o dilatado da viagem — de 3 a 4 milhas por dia — sem que a falibilidade própria daquele instrumento compensasse tal delonga. De comum acordo — como sempre procedíamos — mudamos de processo: ao invés das distâncias fornecidas pela luneta, adotamos as que nos dariam as velocidades das canoas, repetidas vezes aferidas pelas medições diretas nas praias, que íamos perlongando. Como V. Ex.ª verá depois, este processo deu resultados admiráveis, muito superiores ao caráter ligeiro exigido pelas instruções.

Assim prosseguíamos numa constante harmonia para a qual eu contribuía mais do que o meu colega — porque fazia constantemente o sacrifício de escutar-lhe insistentes queixumes e lamentações amargas acerca dos sucessos ocorridos nesta zona, de setembro de 1903 a abril de 1904. Tolerava-os não só pelo respeito aos que se lamentam como por não perturbar ou destruir tantos esforços já despendidos numa discussão cujas consequências poderiam ir até a um rompimento franco. O evitá-lo foi para mim uma preocupação — e esta exposição, onde a mais ligeira referência não poderá ser contestada, dirá mui claramente que levei aquele propósito ao máximo limite, até ao ponto em que tive de atender à própria dignidade pessoal.

De qualquer modo, chegamos a Novo Lugar onde estacionava provisoriamente a Comissão Administrativa dirigida pelo sr. capitão Borges Leitão, tolhido pela vazante do rio — sem que o menor incidente alterasse as nossas relações e os nossos trabalhos. Estes consistiam durante o dia no levantamento ininterruptamente efetuado, e durante a noite na observação de alturas para latitudes e longitudes. Perturbados os nossos cronômetros pelo tumulto do naufrágio, limitamo-nos aos primeiros, aguardando a chegada a Curanja, onde, baseado nas coordenadas do Chandless, eu pudesse formar um juízo sobre o seu estado absoluto e movimento diário. Era o alvitre único imposto pelas circunstâncias — desde que o rudimentar sistema de transporte em canoa, sem capacidade para os nossos próprios gêneros, me impedia livrar o pesado teodolito astronômico que facultaria, em condições favoráveis, uma longitude absoluta. Ao invés dele, levava o sextante, aparelho náutico, de algum modo estranho à engenharia, e que só apliquei de um lado porque as instruções se satisfazem com coordenadas aproximadas, de outro porque sob o ponto de vista das determinações astronômicas reconhecemos — eu e o chefe peruano —, desde o começo, a exação muito acentuável dos dados fornecidos por W. Chandless, o que constitui sempre elemento preciosíssimo no permanente cálculo da falsa posição que é toda a astronomia prática. Além disso mais valiosas que as de Curanja (comezinhas por estima) tínhamos as coordenadas da Forquilha do Purus, onde me seria dado realizar uma retificação acentuável.

Como quer que seja, chegáramos a Novo Lugar sem nenhum incidente perturbador e prosseguiríamos com o alento amigo se um fato aparentemente desvalioso não me revelasse que o meu colega tinha, a cavaleiro da preocupação científica, outras, estranhas à sua missão.

Ali, ao lhe ser apresentado pelo com. Borges Leitão um proprietário convizinho, o sr. Buenaño recusou-se a aceitar-lhe a mão, com estranheza geral dos circunstantes. Explicou depois seu ato exculpando-se: soubera que aquele homem tomara parte nos lutuosos acontecimentos que aqui houve entre brasileiros e peruanos. Semelhante incorreção de um homem finamente educado revelou-me para logo as paixões que o dominavam — e preveni-me de resguardos para salvar as nossas relações futuras. Demorei-me… dias em Novo Lugar para transportar até lá 30 volumes de víveres que se despacharam em Manaus e se achavam num barracão armado pela casa consignatária depois do encalhe da Fênix que os trouxera.

A Comissão peruana prosseguiu dois dias antes prometendo-me o sr. Buenaño fazer viagem vagarosa, de modo que em pouco tempo o alcançasse. Assim, ao reatar a subida, deixando Novo Lugar, onde ficou o nosso médico, dr. Tomás Catunda, a pedido do com. Leitão, no dia […] segui isolado até ao seringal do Funil onde cheguei pela manhã de […]. Os peruanos estavam muito na frente. Saltei, por isto, apenas para um exame rápido ao local — mas tive de demorar-me por um fato de todo inesperado.

Sabe V. Ex.ª que aquele sítio se celebrizou nos lamentáveis sucessos que agitaram esta zona: ali foram fuzilados vários peruanos. Ao que se afirma não os enterraram, os corpos estiveram expostos até a completa decomposição, permanecendo no local as ossadas das vítimas. O sr. Buenaño saltou com a sua gente, recolheu piedosamente os restos de seus compatriotas e deu-lhes um título. A ação foi nobilíssima — e só mereceria os mais francos aplausos se S.Sª não a maculasse com um traço infelicíssimo de ódio que não pôde conseguir refrear — e ficou exposto num extravagante epitáfio rabiscado numa folha de zinco:


F. La Fuente
F. Ruiz
D. Ocampa
P. Reategui
M. Moutalbán
Peruanos fuzilados e quemados por bandoleros brasileros.

Ao considerar estes dizeres — vi-lhe, de pronto, a desvalia — mas ao mesmo passo avaliei os deploráveis efeitos que eles causariam no meio de uma população em cujo ânimo estão ainda bem vivas as recordações dos fatos ali ocorridos. Pensei em retirar a improvisada lápide, tornando logo ciente disto o comissário peruano a quem enviara um próprio. Mas em tal caso o sítio do Funil seria o termo de nossa missão. Haveria um rompimento que eu de modo algum poderia temer sob o ponto de vista do seu resultado material porque à primeira voz teria ao meu lado, além dos que me acompanhavam, numerosos patrícios convizinhos que me dariam incalculável superioridade de forças. Mas compreendi que isto era antes uma desvantagem: estávamos ainda em lugares somente povoados de brasileiros, tínhamos a força — e por mais lealdade que houvéssemos naquela emergência não faltaria quem lobrigasse no fato uma traição, um atentado capaz de comprometer a minha terra. Além disto temi perturbar negociações que sabia estarem entabuladas e cujo desenvolvimento ignorava. Compreendi também que não devia anular tantos esforços e dispêndios já feitos com o dar demasiado valor ao que era apenas um erro, um deslize de bom senso, infinitamente abaixo da honra de nossa pátria que de modo algum poderá estar ofendida. Balanceadas estas razões resolvi deixar as coisas como estavam embora tivesse de providenciar na volta. Entreguei-me à minha preocupação — avançar, avançar o mais possível por maneira a cumprir, arrostando todas as dificuldades, a missão que me fora confiada. Mas segui sob a impressão daquele fato. Encontrei a comissão peruana dois dias depois — e quando o sr. Buenaño, procurando-me logo, aludiu ao que se passara contrariei de pronto declarando-lhe que o assunto me era por demais doloroso e perturbador dos trabalhos que até ali nos levavam — pedindo-lhe que volvêssemos a outras questões.

Aquiesceu — mas percebi que a minha atitude lhe agravara o malquerer que principiava a votar-me, embora velado por uma afabilidade que sempre me foi altamente surpreendedora.

Assim prosseguimos até o Cataí e Curanja. A viagem tornara-se penosíssima. Levando um único auxiliar, este embora dedicadíssimo, não me podia libertar dos meus disparatados trabalhos que iam das observações astronômicas aos mínimos pormenores da economia do acampamento.

Já cuidando de uma alimentação que a escassez de nossos gêneros exigia fosse fiscalizada, já interrompendo os trabalhos a que me entregava para manter a ordem, contendo um doloroso contraste da correção da tropa estrangeira abarrancada ao nosso lado. Ao chegar no dia […] em Cataí, onde estive de cama com forte acesso de febre, avaliei com segurança a gravidade de nossa situação. O longo afastamento em que nos achávamos, a escassez visível de nossos víveres, os trabalhos passados e os que se prefiguravam e a impressão acabrunhadora daquele avanço para o deserto com um objetivo quase indefinido haviam implantado visível desânimo em quase metade da gente que me acompanhava. Notando tudo isto não demorei a minha parada ali. Prossegui doente no dia […] saindo do leito para a proa da canoa onde ia realizando levantamento de subida — e embora um outro acesso mais violento me prostrasse em caminho não foi demorada a subida. Apenas, na manhã de […], dias antes de chegar a Curanja, um incidente desastroso — a sublevação de cinco soldados que tive de abandonar, remetendo-os presos para Cataí. Deste modo, ao chegar a Curanja no dia […], pisando a terra exclusivamente povoada de estrangeiros e tendo adiante uma dilatadíssima região a percorrer, restavam-nos apenas sete homens — e vinham estropiados, com os pés sangrando corroídos das areias, porque durante a subida numerosíssimas vezes tivemos de arrastar as canoas, vencendo sucessivos bancos oriundos do extremo esgotamento do rio. Além disso, compreendi logo que mesmo para número tão reduzido, éramos 9, ao todo — os nossos gêneros eram escassos. Não dariam para dois meses. Por outro lado, as nossas embarcações cada vez mais se impropriavam às águas cada vez mais escassas — eram duas pesadas canoas de itaúba em que vínhamos desde a boca do Chandless. Os paus que atravancam o rio desde Novo Destino pareciam mais numerosos arrumando-se em cerrados aleatórios mal facultando estreitíssimos canais à travessia. Durante esta os nossos cronômetros, já tão abalados por um naufrágio, haviam sofrido numerosos saltos em virtude de constantes choques nos paus submersos pouco abaixo da superfície, e de Curanja para cima além daqueles teríamos os choques incomparavelmente mais perigosos nas pedras, que num crescendo avultavam à medida do avanço, dali para montante. O volume do rio Curanja, quase igual ao do Purus, facilitava a previsão de uma duplicação de trabalhos. O rio principal, já antes tão esgotado, deveria ser impraticável depois de perder tal tributário.

V. Ex.ª avaliará por estes dados esparsos a seriedade da nossa situação. Entretanto, não cogitei sequer em voltar. Mas para seguir fazia-se mister aproveitar o mais possível o tempo. Qualquer delonga acarretava dois inconvenientes cada dia maiores; a diminuição dos gêneros e o aumento da vazante. Assim, resolvi precipitar o prosseguimento da marcha — embora o regulamento tão indispensável aos nossos cronômetros exigia estadia mais demorada e calma. Felizmente me restava ainda adiante, um ponto intermédio, a confluência Cujar-Curiuja onde poderia efetuá-lo. Deste modo, durante os […] dias de demora (de […] a […]) em Curanja, efetuei observações sem a segurança dos que dispõem de tempo para a espera de céus próprios e condições favoráveis, encontrando-se entre o nosso standard e o peruano uma diferença de 18 segundos que na sua maior parte se deve atribuir às vicissitudes passadas pelo nosso.

Em Curanja — onde fomos muito bem acolhidos — avultaram mais desanimadoras as informações acerca da região que íamos atravessar. Concluía-se que era impenetrável, somente acessível às ubás ligeiras dos caucheiros tripuladas pelos amahuacas domesticados: multiplicaram-se os paus, as pedras e os bancos que trancavam o rio, repontavam intransponíveis os obstáculos novos das cachoeiras, no leito, e grandes tremedais, às margens dos rios inteiramente impraticáveis, e, aumentando estes entraves, ao cabo, o antagonismo dos amahuacas traiçoeiros e dos campas destemerosos. Citava-se o homicídio recente de um empregado da casa Arana, no varadouro do Cujar, e apenso a este caso verídico, sem-número de outros vinham aumentar os desalentos, dando-nos a quase certeza de que não iríamos até ao fim.

Assim, ao prosseguirmos no dia […], de Curanja para as cabeceiras, confesso a V. Ex.ª que levava o intento de encontrar a impossibilidade tangível, evidentíssima, que me justificasse, completamente, um recuo que supunha inevitável. O Comissário peruano, coerente com a sua atitude em Manaus, levava o mesmo propósito. Não podíamos atravessar los varaderos… Mas contra o que esperávamos a navegação se não melhorou também não piorou. O Purus parecia não ter perdido um afluente do porte do Curanja. Pouco variava na largura, na mesma profundidade, embora tendo, inexplicavelmente, uma velocidade maior. Deste modo, a nossa viagem até a Forquilha, onde chegamos no dia […] se fez em […] e está entre as mais rápidas que se tem efetuado. Não contribuiu pouco para isso a mudança bastante sensível do clima, que rapidamente varia, tornando-se incompreensivelmente superior ao da região atravessada. A própria praga de mosquitos — carapanãs, piuns e  manta blancas, que a jusante torturavam tanto o viajante, ali desaparecera — e numa constância admirável, sem repentinas transições de temperatura e sem a pesada umidade que até então suportávamos — o regime geral tem uma ação tonificante cujos efeitos para logo sentimos no mesmo reanimar-se a nossa disposição para a sulcada.

Infelizmente, neste trecho outro incidente lamentável prejudicou a cordialidade que devíamos sustentar, eu e o chefe peruano.

Como verá V. Exª pelo desenho anexo, a montante de Curanja sucedem-se os postos peruanos, alguns, como o Chamboiaco e o Cocama com a feição de pequenas vilas. Estes lugares eram para mim objeto de grande curiosidade, e desde o primeiro deles, Santa Rosa (na confluência do Curumaá de Chandless), eu não perdia a oportunidade de saltar conversando as gentes inteiramente novas para mim que ia deparando. Ainda neste ponto me afastava do Sr. Buenaño que nunca saltou num posto brasileiro, embora no último deles, o de Sobral, o respectivo proprietário, a meu pedido, viesse até à barranca oferecer-lhe a sua casa.

Sem rancores depressivos, nessas visitas eu era animado de uma grande ansiedade de conhecer uma sociedade rudimentar e interessante. Assim saltei em Santa Cruz, povoado de caucheiros que se indica
na palavra anexa – e tive o primeiro desapontamento ao notar uma animadversão inteiramente destoante da maneira por que fora recebido nos demais postos. Como sabe V. Exª o peruano tem uma gentileza quase mecânica: sorrisos, oferecimentos, saudações, lisonjarias arrojadas fá-los
ao primeiro que chega, como quem recita uma velha lição de cor. Sem exagerar a frase, têm o automatismo da cortesia. De sorte que nossa indução natural nos leva a admitir que somente o império de um sentimento poderoso fá-lo perder este característico hábito de agradar. Ora, naquela ocasião, o sentimento (comecei a notá-lo em Santa Cruz, e vi-o depois confirmado por todos os fatos ulteriores) que não disfarçou a adestrada galanteria daquela gente foi – desgraçadamente – o ódio ao brasileiro.

Notei-o em tudo. Na frieza com que nos receberam, na parcimônia das respostas que nos davam e até nos preços simplesmente fantásticos que nos marcavam as coisas insignificantes. Por outro lado, o Comissário peruano – e faço-lhe a justiça de admitir que agiu inadvertidamente – não soube atenuar esta impressão. Tendo chegado e saltado primeiro do que eu, não teve a minha atitude em Sobral. Mal me apresentou ao dono da casa a que se acolhera e retirou-se antes de mim sob o pretexto de ter de mandar fotografar o sítio.

E resolvi – por evitar qualquer contrariedade – não me abeirar mais dos povoados peruanos sem um convite preliminar. Além disto, eu os ia atravessando numa incorreção forçada: o Sr. Buenaño na longa travessia do baixo e médio Purus nunca saudou a nossa bandeira hasteada à frente nos barracões. Revidei não saudando nunca as bandeiras peruanas profusamente hasteadas em todos os pontos à passagem das duas comissões.

Prossegui de Santa Cruz e, obediente à resolução anteriormente exposta, passei a marchar de modo a distanciar-me da Comissão peruana, prevendo o constrangimento da chegada num povoado em
que ela houvesse de parar e eu de prosseguir. Assim passei em Independência e Cocama, estando neste último o comissário peruano que me alcançara na véspera e se avantajara em viagem, rápida. Não tocando no povoado, tomei de novo a frente, só sendo alcançado pela comissão peruana no dia […], na véspera de chegarmos ao sítio Campa de Cinco Reles. Acampadas na mesma praia as duas comissões, nada revelava a mínima desarmonia. Ao anoitecer, recebi a vista do Sr. Zavala y Zavala que em nome do Sr. Buenaño me avisava que entrávamos em regiões povoadas de infieles, sugerindo o alvitre – prontamente aceito – de se organizarem sentinelas nos dois campos. No amanhecer seguinte, como não pudéssemos seguir com os peruanos tão matinalmente, por se achar enfermo o engenheiro A. da Cunha, e para que isto não desse lugar à falsa interpretação, mandei comunicar o fato ao chefe peruano, ainda em terra – e este requinte de atenção certo só lhe poderia indicar do meu lado as melhores intenções. Mas creio que produziu efeito contrário. S. Sª, que se molestara com o adiantamento que eu lhe tomara dias antes, parece ter visto naquele ato algo de subordinação ou fraqueza de meu lado – e quis pôr à prova uma ou outra.

Nem de outro modo se explica este caso, que exponha a V. Exª, para que analise bem as fontes de nossa discórdia deplorável, que profundamente lamento e para a qual me dói a consciência que absolutamente não concorri.

Quando avistei Cinco Reales às […] horas do dia […], já lá se achava há muito o comissário peruano. S.Sª levava um campa domesticado – e graças a este intérprete, pusera-se em amistoso trato com o “Curaca” Vinésio ou Vicenzio, que ali domina, irradiando a sua influência e império sobre todos os demais chefes da região. O povoado – muito pitoresco com o seu desmedido bananal desenrolado em torno e avassalando um morro que lhe empina à direita – tinha, com as embarcações peruanas numerosas no porto e a população adensada na praia em roda dos visitantes inesperados, uma feição animadíssima, e seria altamente estranhável que eu, firme no propósito anterior, não o visitasse e fosse prosseguindo, parecendo menosprezá-lo e dando ensejo a interpretações prejudiciais.

Evitei-as. Mandei parar as canoas – e por mera formalidade desembarquei dirigindo-me logo ao chefe peruano que até teve a gentileza de me apresentar o “Curaca” Vicenzio. Entretanto, quando, depois
de alguns minutos, eu voltava para a minha canoa, a fim de reatar a marcha, fui surpreendido por uma interpelação veemente do Sr. Buenaño, inquirindo-me em voz alterada da minha atitude nos últimos dias, e exigindo-me que eu lhe explicasse e desejando saber por que eu não saltara em Cocama, e passara de modo que toda a gente, lá, lhe perguntara se estávamos brigados, etc.

Dominando a surpresa, aproximei-me do interlocutor e negando-lhe o direito de inquirir-me de tal modo porque éramos perfeitamente iguais, dei à minha palavra uma tonalidade mais alta que a sua
afirmando-lhe que a desproporção de nossas forças e a circunstância de estar entre estrangeiros só me poderiam dar maior vigor na repulsa enérgica e pronta a qualquer palavra ou ato destoantes dos que exigiam a seriedade do meu cargo e a nobreza natural da minha qualidade de brasileiro. Não podia proceder de outro modo. Estava diante da minha gente reduzida e qualquer sintoma de fraqueza seria o absoluto desânimo, a extinção de minha força moral, e por fim a impossibilidade completa dos grandes esforços e até sacrifícios que se faziam indispensáveis à subida. O diálogo continuou largo tempo no mesmo tom – terminando por explicações recíprocas que pareceram atenuar o ressentimento anterior. Prosseguimos juntas as duas comissões, deixando os campas absortos, e no anoitecer deste dia, como nos distanciássemos, demorados, o Sr. Buenaño teve a delicadeza de mandar colocar um farol no extremo da praia onde acampara, para nos mostrar o rumo. Volveu a afabilidade
antiga, e quando chegamos no dia […] à confluência do Curiúja, foi certo, por sugestão sua que o Sr. Carlos Sharf, proprietário do sítio Alerta, ali erecto, mandou ao litoral um dos seus empregados convidar-me para saltar ali – ao que acedi assim como aos repetidos e muito insistentes pedidos de hospedar-me na sua casa. Aceitando esse agasalho obedeci principalmente o propósito de evitar a todo o transe quaisquer elementos de discórdia. Não devia relutar numa recusa que talvez se afigurasse numa animadversão que mesmo no caso de existir (e não existia) eu não devia revelar.

Permanecemos neste ponto do dia […] ao dia […] intervalo que aproveitei para a regularização segura dos cronômetros. Era a primeira que realmente se faria porque de fato, a de Curanja, pelas condições
anormalíssimas em que se realizara, não tinha valor algum. Chamei a atenção do Sr. Comissário peruano para isso: ele testemunhava as condições desfavoráveis em que eu trabalhava e que iam dos céus em geral nublados a uma indefinida série de trabalhos de outra ordem, agravados pela circunstâncias de ter adoecido seriamente naquele lugar o meu único auxiliar Dr. A. da Cunha. Entretanto S.Sª guardou a ata respectiva, apesar de sua nenhuma importância – e este fato ligou-se a outros no demonstrar uma atitude bem pouco compatível com a solidariedade de esforços que devíamos manter.

Ora, este antagonismo até então velado – à parte a platônica intimação de Cocama – desvendou-se, afinal, inteiramente, quando procuramos acordar acerca do que devíamos realizar depois daquela escala. Estávamos na Forquilha, onde principiavam as grandes, as inumeráveis dificuldades anteriormente indicadas. Para onde quer que avançássemos, ou para o norte, pelo Curiuja, ou para o sul, pelo Cujar, a travessia era impossível. É o que se afirmara em Manaus; é o que o comissário peruano monotonamente repetira pelos caminhos; é o que se confirmara em Cataí; é o que novas informações haviam fortalecido em Curanja; é, afinal, o que se punha de manifesto diante dos informes quase no sítio de todos os habitantes da Forquilha. Não podíamos avançar. No Cujar, que leva ao varadouro por assim dizer oficial, incessantemente preferido pelos que comunicam com Iquitos, aguardavam-nos, à parte os bancos de areia e paus, 75 cachoeiras uma das quais de 2 metros de alto. Se as vencêssemos chegaríamos ao Cavaljani onde as dificuldades aumentariam, ao lado dos mesmos empecilhos das quedas d’água; depois, a passagem penosa do Pucani, para afinal chegar-se ao varadouro. No Curiuja idênticos empecilhos… Depois – os infieles. Duas horas antes de chegarmos àquele ponto, víramos lançada à barranca esquerda do rio, num claro entre as frecheiras, o cadáver de uma amanhuaca. Fora, ao que soubemos depois, trucidada pelos bárbaros que andavam por perto, segundo nos afirmavam, numa ameaça permanente e surda.

Era natural que deliberássemos a respeito de nosso procedimento modelado por circunstâncias tão especiais – e a resolução que se afigurava lógica e irresistível era a da volta.

Considerando o estado da minha gente e principalmente a escassez dos nossos gêneros (que não puderam ser renovados na Forquilha porque lá não encontrei naquela ocasião um só paneiro de farinha) eu não relutaria em aceitá-la. Volveria tranquilo: fizera já um grande esforço para chegar até lá depois de […] dias de marcha penosíssima, em canoas.

Mas fui surpreendido pela atitude nova do Sr. Buenaño. De fato, precisamente na ocasião em que se deviam realizar os seus velhos vaticínios, S. Sª mudou. Transformação inexplicável: enquanto as dificuldades e perigos apontados eram vagos, inconsistentes, pouco aceitáveis, em Manaus, nos caminhos, em Cataí, mesmo em Curanja – S.Sª decretava: nós não poderemos passar os varaderos, e quando aquelas dificuldades e perigos se afirmavam eloquentemente, impressionadoramente, pela voz dos que com eles lidavam quase diariamente, pela própria observação, porque de uma janela contemplávamos os dois rios num crescente esgotamento, e pela evidência de um assassínio altamente impressionador, S. Sª revestiu-se de um otimismo espantoso – e afirmou de modo categórico e firme: podia atravessar os varadouros… Mas não foi generoso. A afirmativa não se limitava a ir egoisticamente no singular, completava com uma negativa por igual imperiosa: eu não os atravessaria. A situação era clara. A Comissão Mista cindia-se num desequilíbrio de energias. A comissão peruana, forte, disposta, abnegada, estava pronta a seguir mas não o podia fazer porque o comissário brasileiro, sacrificado por um naufrágio, com o pessoal reduzido, rudemente trabalhado e sem gêneros suficientes, não podia absolutamente marchar. Isto afirmou-se bem alto.

Compreendi que o Sr. Buenaño conhecia bem a nossa situação real. Era gravíssima. Não tendo podido refazer os nossos víveres em Curanja, onde nada havia, segundo nos afirmaram; perdida a esperança de os refazer ali, onde nos afirmavam nada existir – afirmo a V. Exª que eu duvidava se tinha gêneros mesmo para a volta. Além disso, salteado por uma polinevrite, que ainda perdura, desanimava-me o pensamento de que a moléstia me impossibilitasse às ações decisivas que o momento exigia.

O nosso colega, porém, pusera a questão de um modo preponderantemente inaceitável: a volta devia-se realizar firmando-se uma ata em que, expostas as condições das duas comissões, ficasse expresso que não se continuara a investida exclusivamente por nossa causa. Vingava-se a ata abortícia de Manaus… E argumentava: tinha ubás apropriadas à subida, tinha gêneros para muito tempo, tinha um pessoal triplo do meu; podia passar, estava pronto a passar, ao passo que nós, desaparelhados, não o podíamos. Deslembrara-se que na ata de Manaus se preestabeleceria o recuo e acreditou que a […] milhas daquela cidade, quase sem recursos e encravado no deserto, eu seria forçado a formar – isolado – o que recusara fazer em sua companhia. Desiludi-o. Recusei a proposta. Declarei-lhe que iria ao encontro da impossibilidade tangível que não duvidava inexistisse mas que ainda não vira de frente; e apresentei-me para a partida que se efetuou no dia 24 de julho, pelo Cujar acima em busca dos varadouros do Ucaiali.

Não exagero dizendo que seguimos à meia-ração. Demandávamos extensa região inteiramente desabitada e os víveres que levávamos – no máximo para 25 dias – se redividiram em carne seca, farinha, que se acabou ao fim de 12 dias, um pouco de açúcar, que só durou três dias, ½ garrafão de arroz e uns restos de bolacha comprados em Curanja. Propositadamente faço esta lista. É expressiva. Por ela se avalia senão a boa vontade no cumprirmos o dever ao menos a temeridade de um avançamento que foi sobretudo uma repulsa energética a uma afirmativa desafiadora e impertinente.

Partimos a 24 de julho e vimos logo o fundamento das informações obtidas. Na parte inferior, antes do 1º rápido, numa extensão de […] o Cujar, distendendo-se em estirões alargando-se às vezes de maneira desproporcionada às suas águas dificultosas e traiçoeiras pelos longos e continuados bancos de areia, indo de uma a outra margem, sem o mais estreito canal que evitasse o pesado serviço do arrastamento das canoas, tão difícil que por vezes eu mesmo tive de saltar para auxiliar os trabalhadores naquela penosíssima tarefa. Um obstáculo novo, aparentemente desvalioso, surgira na vegetação característica de suas margens orladas de buquitivas (Calliandra trinervia), cujos ramos, estendidos horizontalmente sobre as águas, cobrem em longos trechos os pontos de mais fácil acesso. Desse modo, antes mesmo de atingirmos a zona das cachoeiras, tivemos redobrada a luta que quase ininterruptamente trazíamos desde a boca do Chandless – e vinha agravada pela impropriedade de
nossas embarcações muito diferentes das ubás ligeiras, únicas que se aplicam àquele rio. Infelizmente, todos os esforços que eu fizera na Forquilha para conseguir uma sequer por qualquer preço – onde as havia em grande número – tinham sido inúteis e tivemos de enfrentar tais obstáculos com o agravamento apontado.

Atingimos o primeiro rápido no dia […] e vimos para logo, à parte a grande série de inconvenientes próprios à sua passagem – uma causa forçada de demora na baldeação por terra, ao longo da margem, dos nossos instrumentos já tão duramente batidos pela acidentada navegação anterior. Transmontá-lo em […] e daí por diante, numa intercadência inflexível, numa sucessão intervalada de degraus, se nos antepuseram aquelas barreiras que não raro foram vencidas a pulso, lentamente arrastando as canoas sobre as pedras, quando não exigiam a aplicação da sirga e cabos de segurança reagindo à violência das águas.

A natureza geológica do terreno mudara repentinamente desde a Forquilha, e embora nenhuns traços de formações primitivas, tudo nos indica a crer que pisávamos camadas bem mais antigas que as das bacias inferiores, e caracterizadas por uma ação metamórfica intensíssima. As pedras que afloram em toda a parte, formando quase contínuo ao leito do rio, revelam-no. Rochas evidentemente sedimentárias, sob os dois aspectos únicos em que se mostram em finamente granulados ou em grosseiros conglomerados, recordam entretanto na consistência e na dureza excepcional os quartzitos e granitos. A combinação ou separação de ambos forma os vários aspectos das quedas que ora tombam ex abruptu, num salto único, ora em degraus sucessivos e ora reduzidas a fortes corredeiras, em planos clivosos eriçados de pontas ou atravancados de blocos desmantelados. Assim variávamos os processos para vingá-las. Não os pormenorizarei. Não quero abusar da paciência de V. Exª, relatando monotonamente a subida de 73 (setenta e três) cachoeiras, 46 grandes e 27 pequenas, achando-se entre as pequenas o grande salto de 2 m de alto que se indica na planta.

Era o ponto em que devíamos estacar. Lá chegamos no dia 28 de julho encontrando a comissão peruana, já livre daquele obstáculo, acampada a montante.

Reconheci de pronto as dificuldades. O rio represado por um afloramento do falso conglomerado a que me referi não deve transmontá-lo nas enchentes numa queda importante. Naquela ocasião, porém, em plena vazante, derivava todo por uma depressão à direita, caindo num salto único, cuja violência se aumentava na angustura que o cerrava. Deste modo, à esquerda até à margem, estendia-se revolta, lastreada de blocos, sulcada de fendas e crivada de boqueirões, a maior parte do leito, em seco – e compreendi de pronto que por ali se deviam levar, arrastadas, as nossas canoas, depois de descarregadas. A tarefa, porém, parecia superior às forças de um pessoal tão reduzido. E o comissário peruano deixou transparecer esta convicção ao declarar-me que seguiria indo acampar muito perto, apenas duas praias na frente.

Como de costume não me ofereceu o mínimo auxílio, nem eu, como de costume, lho solicitei. Disse-lhe – por disfarçar o meu próprio desânimo – que “ou montaria ou desmontaria a cachoeira”, e ao fim de […] de trabalhos chegava ao acampamento peruano. Dominado este passo, era evidente que nenhuma dificuldade natural nos faria mais recuar. Comecei então a notar a ação paradoxalmente favorável que exercem estas quedas para a subida do rio, na vazante. São verdadeiras reclusas, regularmente escalonadas e sem as quais todo ele diminuiria impraticável, em baixios rasos. Por fim, os nossos varejadores exaustos de arrastarem as canoas pelos estirões esgotados, ouviam com satisfação o ruído da queda à montante, que lhes imporia um redobrar de esforços mas compensado por algum tempo de navegação franca e folgada.

Assim avançamos até à confluência do Cavaljani, onde chegamos no dia […] depois de […] dias, a partir da Forquilha. Estávamos nas cabeceiras do Purus. O rio ainda ali, como revela a planta, expõe a sua dicotomia interessante tão bem expressa na forquilha do Acre, na do Curanja e na do Curiuja. Divide-se em dois galhos quase iguais, um para o sul, o Cavaljani, outro para o norte, que lhe conserva o nome. Foi por este que penetrou W. Chandless estancando poucas milhas adiante. Não devíamos penetrar pelo outro. Vínhamos do Cujar, esgotados, e deduzíamos todas as condições desfavoráveis do afluente em que ele se bipartia. E certo não iríamos por diante com os nossos batelões, que até lá chegaram com assombro de todos os que por ali mourejam – se uma circunstância inesperada não nos favorecesse.

Pouco depois da Comissão peruana que se nos avantajara de duas horas, chegaria àquele ponto o correio de Iquitos em quatro ubás pequenas, adrede modeladas à sulcada e a serem arrastadas pelos varadouros. O Sr. Pedro Buenaño resolveu aproveitá-las, julgando impróprias, tal a escassez de águas do Cavaljani, as suas próprias ubás. E conseguiu-o. O correio aguarda-lo-ia naquele ponto. Cedeu-lhe as suas embarcações. O comissário peruano, em pessoa, procurou-me, na minha barraca, para dar-me a nova feliz que tanto melhorava as suas condições já tão incalculavelmente superiores às minhas, e depois de as expor, pediu-me, por um requinte de galanteria, oriundo da satisfação do momento, instruções. Respondi-lhe que no-las tinham dado os nossos governos e que subordinado a elas só lhe poderia responder: para a frente. Neste momento. S.Sª sem perder a linha de sua educação esmerada, repetiu-me o doloroso estribilho que adotara desde a Forquilha: passaria, estava preparado para passar – e eu, não.

Contravim-lhe com a minha “impossibilidade tangível” e pedi-lhe, na presença do Sr. Engenheiro Arnaldo da Cunha, a quem mandei chamar para deliberarmos, duas das ubás que se tinham julgadas imprópriaS.Sª S. em ofício ulterior disse que mas ofereceu. A verdade, porém, é que ele relutou ligeiramente em atender ao meu reclamo, temendo pelos barcos que não lhe pertenciam e que muito podiam sofrer na travessia, etc. Mas cedeu-mos, não podia deixar de cedê-los, tendo-os deixado como absolutamente impróprios.

Permita-me V. Exª que eu insista nestes pormenores que são bastante expressivos.

De posse das duas ubás e baldeados para elas os materiais estritamente necessários – depois de vencida a relutância justificável de meu pessoal desanimado ante a perspectiva de novos e maiores trabalhos com recursos tão escassos, no 31 de julho às 8 horas da manhã procuramos penetrar no Cavaljani – passando-se então o período de maior constrangimento de toda a nossa viagem. As duas canoas, ao defrontarmos a confluência, encalharam ainda em águas do Cujar e durante 48 minutos resistiram, imóveis, enterradas na areia, aos esforços desesperados que fazíamos. Isto sucedia a cerca de quatro metros da comissão peruana, cujas barracas não se tinham desarmado. O seu pessoal e os
chefes contemplavam-nos mudos, a dois passos, e dali não se estendeu um braço, um braço único que nos auxiliasse.

Abria-se, a pás, um sulco na areia e fomos de rastros penetrando no Cavaljani. Uma hora depois passaram por nós as ubás peruanas, também arrastadas, porém muito mais facilmente. Ainda estávamos na confluência. Três horas depois havíamos andado apenas 20 metros. Eram 11 horas e a comissão peruana desaparecera na frente.

Pensei em seguirmos a pé, carregando cada um dos gêneros que pudesse, mas toda a extensão a percorrer o alvitre era inexequível. Resolveu-se, então, reduzir ainda mais o que levávamos, aplicando-se todo o pessoal numa única ubá pouco carregada, ficando a outra com o resto do material entregue ao sargento, ali. Assim resolvemos o problema. Às 3 horas da tarde alcançamos a comissão peruana e acampamos na mesma praia.

Ao cabo de […] dias, a […] chegávamos afinal à entrada da última quebrada que leva ao varadouro e não preciso descrever o transe que passamos.

Ali chegamos às 12 horas e 50 minutos – e às 12 e 55 desembarcamos, penetramos a pé no sulco estreito do Pucani. Este intervalo é expressivo. Não podíamos parar: os nossos gêneros, gêneros para nove homens em região absolutamente deserta, reduziam-se a 4 latas de leite concentrado, duas de chocolate e 3 quilos, no máximo, de carne-seca. E estávamos em pleno deserto.

Ao passar pela barraca do chefe peruano comuniquei-lhe a resolução de avançar quanto antes em procura do varadouro “porque de modo algum podia demorar-me”, repugnando-me expor-lhe as dolorosas aperturas em que nos achávamos e que suportamos melhor do que suportaríamos os gêneros que nunca nos ofereceu.

O Pucani, tortuoso, estreito de 3 metros e em geral raso, foi atravessado a pé – transpostos os profundos poços em que intermitentemente se afunda em atalhos ladeando-lhes as barrancas, pelo mato. Sem um guia não nos transviamos por uma outra quebrada igual que lhe aflora à margem esquerda, graças às latas vazias de conservas e pólvora que íamos encontrando – de sorte que às 3h15min, ao chegarmos ao último poço, deparamos retilíneo, ousadamente lançado por uma vertente fortíssima, o sulco do varadouro.

Extremam-no quatro tambos de paxiúba onde se acolhem os viajantes e se guardam as mercadorias. Em torno, por todos os lados, latas vazias de conservas de toda espécie, garrafas vazias, e trapos de roupa, delatavam a escala forçada dos que por ali passam e um tráfego relativamente grande. O varadouro, largo de um metro, abre-se adiante, para o sul. Empina-se logo em ladeira, e muito mais íngreme de nosso lado, desce depois mais suavemente, em três [aqui se interrompe o manuscrito]

Como citar
CUNHA, Euclides da. Apenso. Documentário [Minuta de Relatório ao Barão do Rio Branco]. Reprod. TOCANTINS, Leandro. Euclides da Cunha e o paraíso perdido: tentativa de interpretação de uma presença singular na Amazônia e a consequente evolução de um pensamento sobre a paisagem étnico-cultural, histórica e social brasileira, alargando-se nos horizontes da história transcontinental. 3. ed. Pref. Arthur Cezar Ferreira Reis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1978. pp. 263-281. Manuscrito incompleto a lápis, 20 fls. Acervo do Arquivo Histórico do Itamaraty. Datas e distâncias suprimidas no manuscrito estão indicadas entre colchetes.