Um Atlas do Brasil

A Geografia brasileira é ainda estritamente descritiva. Faltam-lhe os fundamentos geológicos. Excetuando-se a metade de São Paulo, de estrutura em grande parte conhecida, graças aos trabalhos de O. Derby e Gonzaga de Campos, o Centro de Minas, a Bahia Central, recentemente perlustrada por Branner – nos demais Estados, as várias formações até hoje definidas fragmentam-se em zonas tão largamente desunidas que, apesar da competência dos exploradores e valia real de seus estudos, dificilmente estes se ligam ou se articulam, de modo a facultarem o traçado contínuo das grandes linhas da nossa arquitetura continental. Ao mesmo tempo, faltam-nos as relações entre a constituição dos terrenos e as formas topográficas que dão à Geografia moderna, noutros países, o caráter dedutivo de uma ciência inteiramente organizada.Mas como, por outro lado, as induções do geólogo bem pouco valem fora do quadro ou da moldura geográfica que elas pressupõem, compreende-se que a fase meramente descritiva, a que nos referimos, é uma preliminar obrigatória. Temos que traçar as linhas essenciais de relevo da terra, antes de lhe perquirirmos as origens profundas. Ao geólogo, a quem pediremos a gênese das nossas aparências terrestres superficiais, cumpre-nos fornecer de antemão os pontos de referência indispensáveis. Antes da Geomorfologia, de Morris Davis ou da Geomorfogenia, de Lawson, impõe-se-nos a constituição definitiva da Geografia propriamente dita, que somente em nossos dias vai completando-se por maneira a fixar, de par com a configuração exata dos territórios, os seus acidentes principais.Basta recordar a este propósito que são ainda recentíssimos os descobrimentos das últimas cabeceiras do Juruá, do Purus e do Acre, desvendadas pelas últimas comissões mistas brasílio-peruanas, e pelos trabalhos do Major Fawcett, da Real Sociedade Geográfica de Londres; ou que ainda nesta hora, descendo as derradeiras vertentes ocidentais do Chapadão dos Parecis, o engenheiro militar Cândido Rondon vai atravessando, em demanda de Santo Antônio do Madei- ra, região tão inteiramente desconhecida, que renova em nosso tempo, com o mesmo destemor e sem a mesma ferocidade, o ciclo glorioso das “bandeiras”.É que a nossa geografia está ainda em marcha. Dilata-se no desconhecido. Está em plena idade heroica das explorações ou longínquas batidas no deserto.Sendo assim, vê-se desde logo que aos devotados à tarefa de fixar-lhe, cartograficamente, as linhas principais, não incumbe apenas a empresa incalculável de reunir e comparar e combinar um sem-número de elementos, oriundos de investigações largamente esparsas em superfícies amplíssimas, em mais de três séculos de estudos, sob os infinitos aspectos em que estes se nos mostram, desde as simples indicações dos roteiros dos missionários aos cálculos precisos das coordenadas astronômicas.A tarefa é mais vasta e mais séria. Perdido na infinidade dos pormenores, enleando-se nas curvas de nível embaralhadas dos relevos, ou em tortuosos talvegues mal definidos, titubeante no meio de informes, e dados, e plantas, que raro conchavam, que não raro se contrariam, e muitas vezes se anulam diante de novos dados mais recentes – os nossos geógrafos de gabinete submetem-se, quase sempre, a um trabalho tão árduo quanto o dos que vão diretamente bater de frente as regiões ignoradas. Hoje, diante da geografia sul-americana, eles restauram a mesma atitude de Guilherme Delisle ou de Bourguignon D’Anville, ante a geografia europeia do século XVIII: isto é, carecem de exercitar uma crítica superior e profunda, capaz de norteá-los com segurança no labirinto das cartas particulares, permitindo-lhes eliminar os traçados intrusos que as pervertem, corrigir as divergências que as separam, e, ao cabo, articulá-las umas às outras, mais em virtude de um esforço
dedutivo que da expressão visível de seus desenhos contrastantes.

Agindo desta forma, Delisle, sem se arredar da sua prancheta de cartógrafo, retificou o eixo do Mediterrâneo, e deu, pela primeira vez, à Europa, a figura real que ela conserva até hoje; ao mesmo passo que D’Anville, prolongando a mesma norma, cotejando e discutindo os resultados das expedições até então realizadas, instituiu a cartografia geral como se fora uma ciência positiva capaz de deduções infrangíveis, ou de previsões tão rigorosas que, alguma vez, o cartógrafo experimentado, nas suas viagens ideais, pode ir retificar os itinerários efetivamente trilhados pelos exploradores.

Mas, para isto, compreendem-se os atributos raros de paciência, de lucidez, de claro discernimento na análise dos documentos e de lance indutivo no remate sintético dos estudos, que se lhes requerem.

É o que nos revela – folgamos em registrá-lo – o Atlas do Brasil, recém-elaborado pelos Srs. Barão Homem de Melo e Dr. Francisco Homem de Melo. Não relutamos em incluí-lo entre os raros modelos que possuímos de uma cartografia racional e lúcida.

Folheando-o, logo às primeiras páginas do texto explicativo que o precede, observa-se que, se porventura os autores não enfeixam a totalidade dos requisitos precitados, tiveram inegavelmente distinta compreensão da empresa complexa a que se lançaram, iniciando-a à luz de um critério esclarecido e firme. Assim que, considerando as linhas dominantes do relevo terrestre, elidiram, desde logo, o costumeiro abuso, ou vulgaríssima ilusão, de imaginar-se, necessariamente, uma serra ou cadeia de morros, feito divortium aquarum inevitável de todos os rios; e esta simples circunstância, se a defrontamos com a profusão incomparável das nossas redes hidrográficas, bastaria a revestir de excepcional valia o novo Atlas. Pelo menos, desde as suas primeiras linhas, ele se forrou ao nefasto preconceito daquela “orografia sistemática” com a qual Felippe Buache e os seus numerosos imitadores perturbaram por mais de um século toda a geografia europeia; já repartindo as terras em bacias fluviais obrigatoriamente separadas por serranias; já falseando de todo o caráter real das regiões, como fragmentá-las e vincá-las, arbitrariamente, de barreiras naturais inteiramente imaginárias.

Conforme observa Marcel Dubois, este sistema só desapareceu na Europa em meados do século passado, ao surgir a renascença geográfica, no período das cartas de estado-maior, isto é, quando o estudo matemático das projeções e outros aperfeiçoamentos técnicos, de par com a crítica escrupulosa de todos os acidentes, partiram ou atenuaram as cadeias rígidas com que se urdiam e entreteciam, caprichosamente, todas as malhas das redes hidrográficas.

Entre nós, porém, persistiu. Temos ainda cartas modernas, onde o Brasil se ostenta feito uma Suíça desmesurada. Não há borda viva de planalto escavado, ou terreno intermediando dois cursos de água a correrem em diversos rumos, que não ondule em cerro ou ressaia em alcantis. Revendo-as, as vistas baralhadas numa infinidade de acidentes caóticos não distinguem característica preeminente da nossa estrutura maciça, exposta nos vastos planaltos ondeantes, que se arrimam, de uma banda, nos grandes morros de arrimo da cordilheira marítima, e de outra, descem suavemente para o interior do continente.

Ao complanado dos chapadões contrapõe-se um fervilhar de píncaros; e, no meio deles, lançando-se, contorcida, desde Minas Gerais até aos confins de Mato Grosso, as formas opulentas de uma cordilheira imaginária – a maior das nossas serras, a Serra das Vertentes – monstruosa idealização geográfica, que não sabemos se deve atribuir-se a Eschwege, ou aos precipitados cartógrafos que tanto exageraram aquela denominação, transmudando em cadeia contínua de montanhas um simples sistema de vertentes.

Entretanto, à parte as reservas do próprio Eschwege, completadas pelas observações de F. Hartt e Aug. Saint-Hilaire – o Professor Orville Derby, em duas excursões notáveis aos vales do Rio Grande e do São Francisco, desfez há muito a miragem dessas falsas serranias, de simples denudação, onde as magistrais raro se ajustam à orientação geral das rochas sotopostas.

Destarte se manifesta uma das raras contribuições geológicas feitas à nossa constituição geográfica, que o Barão Homem de Melo aproveitou, esclarecendo-a, além disto, com os mais frisantes exemplos enfeixados em longa série de observações: umas antiquíssimas, e reproduzidas por d’Orbigny e Castelnau, acerca da divisória do Amazonas e do Prata; outras mais recentes, como as de Emmanuel Liaís, relativamente à insignificante ondulação que separa os tributários extremos do São Francisco e do Rio Grande; ou as averbadas por W. Chandless, no abatimento amazônico dos planaltos brasileiros.

Certo, em tudo isto nada existe de original. O nosso eminente compatriota reproduz pareceres conhecidos, e renova apenas um conceito geográfico generalizado – que ainda recentemente se constatou no Purus e no Juruá, mas separados dos derradeiros galhos orientais do Ucaiáli por diminutíssimas colinas.

Tais pareceres ou conceitos, porém, até hoje esparsos em monografias, como incidentes de outros assuntos, pela primeira vez se erigem entre nós em Preliminar, expressa de um trabalho cartográfico.

Poder-se-ia também aditar que a divisão da nossa orografia, adotada pelos autores – a) serra do Mar; b) serra da Mantiqueira; c) ramificações do sistema interior – se ultima de um modo vago, e é, evidentemente, provisória. O lance, porém, vem de molde a denunciar-lhes a crítica cautelosa – atendendo-se em que, para a classificação exata das nossas verdadeiras montanhas, carecemos ainda da definição geognóstica da maioria delas, assim como da história geológica dos movimentos orogênicos que as ergueram. Durante largo tempo, as nossas ideias a este respeito serão forçadamente provisórias.

Os autores confessam a deficiência inevitável desta sistematização com a descri[ção]

Como citar
CUNHA, Euclides da. Um Atlas do Brasil. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Prefácios e críticas. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/prefacios/um-atlas-do-brasil/. Acesso em: [data]. Crítica à obra Atlas do Brasil, de Barão Homem de Mello e Francisco Homem de Mello, com a colaboração do Mal. Visconde de Beaurepair Rohan, Alm. Barão de Melgaço, Dr. Paula Freitas, Benjamim Constant, Olavo Freire e Alferes F. Jaguaribe Gomes de Mattos (Rio de Janeiro, F. Briguiet, 1909). Último trabalho de Euclides da Cunha, publicado incompleto poucos dias após a sua morte, no Jornal do Commercio, em 29 de agosto de 1909.