I
Aí está um livro de combate.
O seu autor, Bruno (José Pereira Sampaio), constituiu-se afinal uma exceção entre os escritores portugueses que se ocupam de nossa terra.
Teve, ao menos, uma lúcida intuição do seu papel de crítico e, procurando atirar para um lado todas as maravilhas estéreis, detalhes exíguos que por tanto tempo alimentaram a ironia finamente rendilhada de Eça de Queirós e o envenenado humorismo de Camilo Castelo Branco, tentou traçar um largo plano de análise séria de nossa mentalidade.
De há muito, conscientemente, afirmamos uma autonomia que progride numa continuidade perfeita da formação étnica à situação política, às minudências últimas de linguagem.
Ora, num plano superior, essa independência, os braços fortes da integridade da raça, espelham-se com maior realce nas correntes filosóficas e tendências artísticas que acaso nos impulsionam.
O escritor português intenta analisá-las: não há tentativa mais atraente e racional. Se, de fato, somos já uma nacionalidade, não há subordiná-la a uma prova mais robusta.
Porque, como um reagente informe determinando reações variáveis, a filosofia tem, nas próprias leis gerais que enfeixa, uma plasticidade admirável para amoldar-se a todos os aspectos de uma civilização particular. O rumo das pesquisas científicas, todas as manifestações da arte e, como um corolário, os ideais políticos, variando segundo as linhas das fronteiras, refletem-na, modificada, através do temperamento dos povos.
Seria longo exemplificar.
Nessa órbita elevada da luta pela existência entre as nações, desdobra-se o mesmo processo que preside à evolução geral da vida. É como uma cópia ampliada, numa escala maior, que faz resultar novos acidentes, novos esforços, exigências mais imperiosas. O determinismo, porém, é semelhante.
E quando uma raça se unifica – autônoma, forte, original – o que se observa, de golpe, é um complexo de ideias firmando um modo de agir, patenteando pelas criações intelectuais as qualidades que a aparelham para adaptar-se ao ambiente da civilização geral.
Há por isto, às vezes, no historiador, alguma coisa de paleontólogo – e nas quedas e ascensões das raças as mesmas vicissitudes que assaltam os organismos inferiores ante as variações do meio cosmológico.
Diante da Grécia atual, para revivermos o século de Péricles, quase que podemos lançar mão do mesmo método que permite ao materialista reconstruir, com os talos de uma capilária, o majestoso feto arborescente de idade carbonífera. Num e noutro caso, na profecia retrospectiva que revive um facies da terra ou da história, o que se evidencia é uma adaptação cada vez mais imperfeita ao meio, uma exaustão lenta da vida que é um recuo lento ante concorrentes mais fortes. E estes últimos, novas espécies ou novas raças emergentes, caracterizam-se identicamente como um fato de seleção natural, por um acordo permanente com as condições gerais da vida, em torno.
Ora, estas são muito complexas para as novas nacionalidades que se formam, compartindo uma civilização em que não colaboraram.
É o nosso caso – agravado o fato social ainda pela intercorrência do período agudo da fusão de fatores étnicos diversos – pela preliminar forçada de uma sub-raça de tipo ainda indistinto.
Desse modo, estudar as nossas tendências filosóficas e artísticas, isto é, verificar se realmente evolvemos, respirando livremente em ambiente superior, autônomos, não absorvendo parasitariamente o resultado de esforços estranhos, mas transformando-os em nossa economia íntima, e reagindo por nossa vez sobre o progresso geral imprimindo-lhe um traço de originalidade qualquer – é certa, a melhor maneira de definir uma feição nacional.
O Brasil Mental é, por isto, o título de uma tese amplíssima.
Infelizmente, é o título apenas. O seu autor não foi além desta intenção louvável. Ficou na primeira folha ou antes ficou na capa do livro que, aureolado pelo título, desponta à frente das suas quatrocentas e tantas páginas, como uma fachada grega rematando uma construção pesada.
Contorna apenas o tema escolhido e ostentando desordenadamente uma erudição luxuosa e surpreendedora, perde-se sempre em divagações contra as quais raro há rastrear-se qualquer coisa que nos diga respeito.
Parece temer o assunto: flanqueia-o, aborda-o de revés, medrosamente; evita-o e foge perdendo-se na trama cerrada de um estilo vigoroso mas impenetrável, trançado de incidentes intermináveis, riçado de arcaísmos e ao mesmo tempo moderno, bizarro e original – lembrando um quinhentista que se fizesse nefelibata – num desenrolar de períodos interessantes em que o léxico extinto do primeiro se acolcheta às extravagâncias inovadoras do último.
É esta a primeira impressão que cria. Não insistiremos, explanando-a.
Fora pouco generoso – embora traduzisse o lado mais pitoresco da crítica. Não vale, porém, a pena abreviar as vistas num respigar odioso, enumerando extensa lista de incorreções – francesismos que em muitas páginas ricanam estrepitosamente do catonismo gramatical de Bruno (tão pronto a chamar a bolos sobre o fato os escritores brasileiros), ou a falsa colocação dos pronomes, ou ainda o que é mais sério, a tendência singular para a deformação pecaminosa da língua numa “consciencização tipicamente contraditória e hesitante” da sua índole e leis invioláveis.
Além disto, ele revela à página 63 do livro o modo vertiginoso pelo qual surgem naquelas regiões iluminadas de além-mar, hoje, os livros modernos. Conhecíamos o fato. Albalat indicou-o recentemente, diagnosticado – a moléstia de escrever.
O pensamento humano perde em força de concepção o que ganha em movimento para a expressão. É uma faina estonteadora. O escritor, como um empreiteiro de ideias, agita-se adoidadamente reagindo à concorrência cerrada. E os livros irrompem como os jornais, feitos da noite para o dia, instantaneamente, na lufa-lufa tipográfica que não permite sequer a paragem das revisões.
É uma nevrose. Bruno pinta-a incisivamente.
Não relida sequer, inexoravelmente, o Sr. diretor da oficina demanda a tira mal acabada de escrever para logo a projetar às fauces sebentas de dedadas de tinta do minotauro dos caixotins.
Aí está uma frase expressiva: tem a eloquência da própria incorreção.
Como imprimir altitude ao estilo, ou impedir que ele se derranque, ou impedir que a ideia se grave confusa numa página apenas esboçada, como um silhouette, ante tal prepotência de diretores de oficinas? Demandemos por isto questões mais sérias, já que nos é lícito admitir que aquela tirania não se alça ao ponto de culminar sobre o pensamento do escritor.
Numa introdução preparatória que, para ser lógica, devia erigir-se como um resumo de nossos antecedentes, preparando-lhe a estrada no assunto, Bruno divaga brilhantemente sobre detalhes que deviam antes ser eliminados como elementos perturbadores. Ora, a própria natureza daquele impunha outro método.
Se para o estudo incomparavelmente mais simples dos movimentos da matéria, firma-se a hipótese da inércia ante a qual se apagam as energias imanentes aos corpos, à luz de um critério mais sólido, ela identicamente se impõe ao pensador que indaga sobre a movimentação complexa de uma sociedade.
Tem que a considerar sobre o império de suas energias reais, de forças definidas condenadas na resultante de uma civilização característica, e afastar todas as que se erigem efêmeras e dispersivas emergindo do fanatismo das escolas ou caprichos literários.
Assim, diante do belo título daquele livro, o que esperávamos nas primeiras linhas era a definição da nossa fisiologia especial em função do meio e dos componentes étnicos que convergem na constituição da raça, e logo depois, numa escala ascensional, o traço mais vivo da nossa feição histórica sobre que reagem aqueles, atenuados pelo influxo inevitável da civilização geral.
Depois disto, compreende-se que abordasse afinal a nossa psicologia – o que somos, o que temos feito na ciência e nas artes, resumindo umas e outras as escolas filosóficas que adotamos: – o Brasil mental, em suma.
Era o único traçado a adotar.
E ao definir, numa resenha expressiva, a ignorância em que têm até hoje vivido os escritores portugueses acerca do tipo exato do brasileiro, Bruno parece a princípio inclinado a trilhá-lo. Insurge-se contra o brasileiro achamboado, extravagante e falso que por lá tem andado, pela região dos grotescos, atravessando – lastimavelmente, triunfantemente – os boulevards parisienses, “de guarda-sol azul em rolo e chapéu à nuca”, e formula a necessidade de riscar-se esse debuxo falso, substituindo-o por uma fisionomia real. Não vai, porém, ainda desta vez, além de uma intenção generosa.
Descamba logo, incidindo no velho vício da discórdia literária entre os dois povos (que tem significação mais alta), acirrando-a esterilmente – investindo, desabrido, com Tobias Barreto e, mais adiante, numa admiração esparsa em frases que recordam ditirambos sem rima, rebatendo os críticos do último livro de Junqueiro.
É um desafogo em estilo candente, sulcado de frases rudemente vibradas como apóstrofes, mas no qual a combatividade do polemista anula a serenidade do crítico, e cai em exageros inopinados.
Assim combatendo a apreciação severa do pensador brasileiro sobre o trabalho notável de A. Herculano, no trecho em que, visando diminuir a capacidade historiográfica deste, lhe frisa a carência de retratos, a inaptidão para delinear os grandes tipos históricos em que primaram Huther e Carlyle, diz, de um modo dogmático, Bruno:
Aqui há dois erros – o primeiro e fundamental consiste em despedir a competência de um historiador porque ele não seja em certo gênero historiador.
E conclui, mais adiante, apontando o segundo erro:
Ora, onde tinha Herculano para no mármore sagrado lhes talhar estátuas, os Luteros e os Carnots?
Diante dele, afirma, só desfilavam figuras exíguas de principículos medianais e solarengos anônimos.
Aqui, há dois erros. O primeiro – e fundamental – está neste modo absoluto de discriminar gêneros de historiadores, hoje que a história, calcada em leis inflexíveis, não é mais uma arte peada ao subjetivismo dos que a escrevem. As diferenças entre verdadeiros historiadores são tão secundárias que não criam gêneros distintos, do mesmo modo que o fato fisiológico, definido pela equação pessoal, em astronomia, não basta para criar gêneros de astrônomos. A concepção dramática de Carlyle, na apreciação dos acontecimentos, a despeito das modalidades da forma, deve atingir as mesmas conclusões positivas que o gênio profundo de Guizot.
Não há gêneros de historiadores, como não há gêneros de astrônomos como não há gêneros de geômetras, ainda quando se confronte o diletantismo científico de Flammarion com a sólida organização mental de Faye ou as loucuras geniais de Wronski com o critério incomparável de Lagrange.
Além disto, considerando agora o segundo erro notado, não faltavam absolutamente ao grande historiador figuras excepcionais que lhe animassem o estilo admirável.
Mömmsen diante de Sila – um boêmio trágico, extravagante e feliz que escandalizou toda a antiguidade clássica – certo não tinha um mais impressionador modelo do que quem distinguisse irrompendo varonil, às arrancadas com o castelhano, essa prodigiosa e comovedora figura do Condestável, que resume todo o heroísmo da cavalaria portuguesa na Idade Média.
Mas há ainda um erro – o erro permanente de todo o livro.
Bruno generaliza logo esta divergência, que pode ser um caso particular de um fato mais geral, mas que não erradica do Brasil mental a admiração pelos grandes homens da sua terra – e encerra a questão numa objurgatória quase:
O que importa é que fique bem estabelecido que ao nome de Herculano não quadra o acatamento das novas gerações brasileiras.
Bate a mesma nota mais adiante em extenso comentário sobre a Pátria, de G. Junqueiro, para o qual encontra uma frase notavelmente sintética – os Lusíadas da decadência.
Aí expande um lirismo em prosa que se mede pela fantasia ousada do poeta.
É um livro de tal altitude aquele, decreta que não existe em literatura alguma paralelo que se lhe compare quanto menos que se lhe avantaje.
Ali, estão, ao lado uns dos outros, estudos de caracteres que são do melhor Molière e dramas psicológicos como os que soem vibrar nas páginas formidolosas de Shakespeare.
Como poema satírico é único no gênero: Juvenal está muito abaixo em suas invectivas rítmicas, e Victor Hugo não suporta um confronto em que pese a orquestração poderosa dos Châtiments “de trechos desconexos”, trabalho confinado a uma catástrofe de onde surge a fisionomia baça de Napoleão III. Ainda mais, a Pátria demarca um instante fundamental na evolução morfológica do intelecto português, termo brilhante de um longo período reconstrutivo que a transfigura, levando-a da indigência concepcional antiga mal disfarçada em epopeias chochas como os Lusíadas, “um cronicão rítmico”, as faculdades criadoras que o extremarão na categoria intelectual das raças arianas.
E não é só um livro, é um manancial de livros, porque nas rubricas em prosa que intermeiam os versos há matéria para amplificações de inúmeros poemetos.
De sorte que, diante de tudo isto, a Pátria é, em síntese, a via-láctea fulgurante desdobrada no firmamento intelectual do mundo.
E o lírico polemista desenrola períodos ferventes para demonstrar que a sua significação profunda escapou aos críticos brasileiros que, imponderavelmente, deram efusão à animadversão invencível.
Mas isto não é exato. O que é certo é que para uma obra de arte tão elevada como a que Bruno idealizou, não há mesmo lá uma renovação social determinante.
Melhor do que a nós, a convivência com Teófilo Braga deve ter-lhe ensinado que se as formas novas da civilização marcham em paralelismo estreito com as novas modalidades artísticas, ao ponto de serem aquelas muitas vezes reconstruídas através dos tumultos da história pela significação superior das últimas, nem por isto a idealização estética deixa de ser um efeito e nunca uma causa.
Ninguém melhor do que o positivista português patenteia essa subordinação da poesia ao conjunto do saber humano e às fases sociais derivadas, da primeira grande obra de arte à última, através de todas as idades, desde o poema de Lucrécio, calcado na concepção atomística do Epicuro à feição profundamente artística de Schiller, alentada pelo criticismo de Kant. Para que surjam os gênios nacionais é preciso que antes despontem ou se transfigurem as nacionalidades.
Ora, ao mesmo tempo que nos fala num processo reconstitutivo da sua terra, o escritor caracteriza o alcance social e histórico do livro, que o deslumbra, afirmando que ele marca o último estádio de um processo de desagregação da alma coletiva desprendendo-se dos sentimentos tradicionais e abandonando enfim as suas velhas crenças.
Se assim é, a sociedade portuguesa, a pique ainda dos abalos determinados pelo negativismo demolidor que a decompôs, inicia, apenas, agora, a fase reconstrutora; não tem ainda sinergia para a gestação de um gênio.
E a Pátria, “último termo de um trabalho revolucionário” desprendendo-se dos sentimentos tradicionais, viola flagrantemente o destino da poesia moderna que, ao realizar o grau máximo da idealização na consideração dos fatos sociais – antes de tudo a fórmula mais alta e mais expressiva da solidariedade humana.
II
Graças a uma lógica torturada, o escritor enfeixa afinal as considerações, que expende sobre as divergências literárias apontadas numa conclusão única: o Brasil nada quer de Portugal – por isto, cedendo ao vício hereditário transmitido por este, foi buscar à França alentos para a sua renovação espiritual.
E da França veio, então, o positivismo: o positivismo sem o depuramento das rebeldias de Littré, positivismo empolgante com o seu dogma inteiriço – a sua liturgia complexa, a sua ortodoxia inviolável.
Apesar disto, dedicando a este cerca da metade do livro, bem poucas vezes faz referência à ação daquela filosofia em nossa terra.
Combate-a sob todos os aspectos, longamente, e uma ou outra vez apenas, de modo breve e acidental, dentre as amplas considerações teóricas que expende, resulta fugaz e nem sempre exato, como observaremos, um exemplo inexpressivo. E mesmo assim procedendo, enfrentando uma questão geral de há muito ventilada em torno da qual as controvérsias têm assumido todas as modalidades, das observações respeitosas de Stuart Mill à brutalidade fulminante de Huxley, mesmo assim, claudica: abrem-se-lhe a todo o instante na argumentação aviventada por estilo vibrátil, frinchas desafiando o assalto da crítica mais despiedada.
Exemplifiquemos.
O polemista enfrenta logo a lei dos três estados – e nega-a, afirmando que nem sempre as concepções literárias, históricas e artísticas têm passado pelas fases sucessivas indicadas por A. Comte, dando-se pelo contrário, muitas vezes, a simultaneidade daquelas. Reedita, então, uma observação de Pelarin: o espírito humano ocupou-se sempre simultaneamente de Deus (fase teológica), de abstrações (fase metafísica) e de conhecimentos reais (fase positiva). Aponta antigos exemplos revelando o fato geral das diversas manifestações da consciência individual: Newton, Pascal, Cancly e tantos outros, inegavelmente positivistas em ciência, eram teólogos.
Ao mesmo tempo – lealmente – transcreve um trecho de Comte em que este é o primeiro a frisar a coexistência dos três estados no mesmo espírito, explicando-a pela significação da própria hierarquia sistemática das ciências, que, ascendendo segundo a especialidade crescente, faz não raro com que uma inteligência emancipada na matemática se possa conservar metafísica na biologia, etc. tornando-se a dificuldade insanável apenas num caso inverso, isto é, se a positividade de uma ciência superior coincidisse com o estudo teológico da inferior ou se um mesmo espírito positivo na química se revelasse metafísico na mecânica.
Nada mais claro – e o pensador indicando o segundo caso nega por completo a sua existência.
Bruno, porém, afirma-a; e afirma coisas assombrosas.
Diz, por exemplo, que na ciência social existem seções inteiras governadas por um método rigorosamente positivo ao passo que a ciência da vida ainda se embaraça com entidades filhas da mais extrema abstração.
Esta afirmação só se justifica pela pressa com que são feitos os livros na Europa…
É absolutamente impossível que o escritor português desconheça que a fisiologia, mais do que qualquer outra ciência, receba, com destaque, a ascensão contínua do espírito humano. Desde Aristóteles, espelhando todas as cambiantes da vida – equação do universo – de Boudach –, ao princípio interior de ação – de Kant, através dos exageros do vitalismo animista, ela tem se despido a pouco e pouco da tendência à pesquisa inútil das causas finais para afinal, hoje, em plena positividade, considerar somente as condições e relações dos fenômenos, adstrita à sua causalidade imediata. E porque um ou outro contemporâneo de Paracelsus, desgarrado no século XIX, ainda procura na vida a ação do sobrenatural difundida na matéria inerte e obediente, devemos afirmar que a biologia ainda joga com abstrações?
O espírito humano não espera por estes retardatários; deixa-os perdidos na miragem das próprias fantasias.
Admitamos, porém, visando uma demonstração ad absurdum, a estranha afirmativa.
Bruno desdobra a objeção formidável. Assim, enquanto a biologia se embaraça com entidades fictícias apelando não raro para o método teológico, pela intervenção providencial, seções inteiras da ciência social estão em plena positividade.
E pergunta, e responde: A arte das construções e a estratégia são departamentos positivos da ciência social? São, naturalmente.
Podíamos limitar-nos à transcrição – que é por si mesma notavelmente expressiva. Mas, prossigamos.
O crítico português afinal desconhece que todas as ciências, pelo seu caráter utilitário, espelham-se nas artes correspondentes, como departamentos da ciência social.
E em tal caso, por que só a arte das construções? A física, a química e a biologia industriais, como a mecânica, como a astronomia, à luz do mesmo critério e por idênticas razões, cabem no mesmo quadro.
O escritor, porém, deslumbra-se ante Vitrúvio: vê a harmonia retilínea das fachadas gregas contrastando as voltas suavíssimas das volutas e, certo, não acreditará em
quem lhe disser que se todo o progresso humano parasse, estacionasse, paralisado, na academia de Platão, nem por isto deixaríamos de possuir as regras gerais da arte que aprontou. Para que Vitrúvio aparecesse foi preciso pouca coisa: breves noções de geometria, que a quadra em que viveu lhe deu de sobra. Indicá-lo, nominalmente, como um cultor emancipado da ciência social avultando já, completo e corretíssimo, no passado, enquanto Barther no século XVIII embora, ainda tateava a nebulosa do vitalismo procurando o archés ou o princípio vital, é revelar singularíssima educação filosófica.
E isto não foi um descuido passageiro. Logo adiante manifesta-se a mesma violação de noções rudimentares.
Bruno insiste, golpeando em falso.
Refere-se aos trabalhos dos alquimistas e deixando propositalmente de dizer que as descobertas positivas destes apareceram ocasionalmente, como acidentes fortuitos, no fundo das retortas em que procuravam o precipitado de pedra filosofal, interpreta à vontade o proceder de Berthelot demonstrando o quanto devem os processos de análise química àqueles colaboradores inconscientes.
Não diz, porém, que o grande químico, no próprio livro em que desenvolve o assunto, é o primeiro a afirmar que o método positivo da ciência é, entretanto, muito moderno, datando dos fins do século passado; não diz isto e conclui:
Assim a química punha à nossa disposição métodos positivos de estudos e fatos reais explicados enquanto a física ainda andava em bolandas com o horror ao vácuo para a ascensão da água nas bombas.
Ora, o que está demonstrado, e Berthelot afirma, é que a química só apresentou métodos positivos depois de Lavoisier – e muito antes deste os absurdos apontados já haviam desaparecido da física.
Mas ainda quando resquícios de antigos erros persistissem nada provariam. A lei da inércia amplia-se, extremando-se até à psicologia. O erro geocêntrico abalado na antiguidade por Pitágoras, abalado por Copérnico muito depois, amparada a concepção deste firmemente, nas demonstrações inatacáveis de Galileu, o velho erro teve, entretanto, guarida no cérebro possante de Bossuet e só foi varrido definitivamente da astronomia depois que a concepção mecânica de Newton se constituiu a contraprova luminosa da admirável elaboração geométrica de Kepler.
O escritor português, porém, que parece, nesse impugnar exagerado, seguir, abordoando-se exclusivamente no frágil Pelarin já citado, não quer ver a significação superior da filosofia positiva nas indagações da ciência. Se quisesse veria então, talvez, o que de fato não lobrigou sequer – que a influência do pensador francês na mentalidade brasileira foi fecunda por isto mesmo que, limitada pelos tomos da “Filosofia”, não foi além, não jungiu aquela a uma ortodoxia escravizadora e exclusivista.
Não perderia, além disto, tantas páginas brilhantes num divagar estéril como quando tenta demonstrar que o positivismo pelo fato de renunciar à descoberta da essência das coisas e das causas primárias se incompatibiliza com as tendências do espírito civilizado e com as descobertas modernas.
Vai ao ponto de apresentar vitoriosamente o princípio de Youle sobre a equivalência do trabalho mecânico e o calor como um exemplo frisante – como se a grande descoberta, cujas consequências se resumem na correlação, hoje inegável, das forças físicas, não houvesse despontado como um resultado da experiência, sem que o seu autor cogitasse sobre a essência do calor.
Aponta, entretanto, o caso, e diz: Eis-nos adiante de Fourier. Eis-nos ganhando como nos importarmos de saber se o calor consistiria nas vibrações de um éter universal.
Entretanto devia achar extraordinário e inexplicável que depois disto a notável aplicação do cálculo infinitesimal aos fenômenos do calor, feita por Fourier sem que este se houvesse importado com aquelas vibrações, persistisse sempre exata, considerada sempre a mais alta das aplicações da matemática – e que nem uma fórmula se houvesse de modificar em seu livro admirável.
Mais longe, forçando o sentido de uma frase de Littré, que em defesa do método em questão refere-se à carência de meios para remontarem ao princípio e fim das coisas, Bruno, amparado sempre pelo resignado Pelarin, nega o conceito do filósofo. Refere-se então a muitos intermédios que passam imenso para lá dos limites da existência da humanidade.
E dá-nos logo a novidade velha – velha dos tempos de Hiparco – resumida na possibilidade de fixar-se, graças à precessão dos equinócios, à posição da terra no espaço numa época qualquer, que ultrapasse inteiramente a existência humana. Francamente, ninguém compreenderá a importância, para o caso, do exemplo citado. Não acreditamos que o talentoso escritor desconheça o fato rudimentar de poder cada ciência realizar a precisão no campo dos fenômenos que estuda.
O mesmo pode-se dizer acerca do exemplo mais adiante apontado, das passagens de Vênus e Mercúrio pelo disco solar, citado como uma nova prova em contrário ao afirmado por Littré, como um novo “intermédio”, mais uma estaca aprumada nesse alinhamento fantástico para o infinito, para a origem e fim das coisas.
De sorte que uma previsão, que se traduz como um caso particular da teoria matemática dos eclipses, amplia-se ante o seu olhar inexperto como uma coisa transcendental, aparecendo fora do círculo intransponível em que o filósofo inscreveu o espírito humano.
Cita ainda de modo contraproducente o fato de Le Verrier descobrir um planeta pelo cálculo e embora confesse que o astrônomo tinha o motivo experimental das perturbações do movimento de Urano, conclui ainda contra o postulado positivista, porque a descoberta revela que é lícito assentar existências pelo raciocínio.
Ora, ninguém verá nisto uma objeção séria. O grande descobrimento mesmo operou-se dentro do sistema solar, em que Comte tranca todas as investigações astronômicas, afastando-se da ideia vaga e indefinida de – Universo.
Não prossigamos.
Frisemos apenas uma observação. Nesse desenrolar de exemplos dúbios, Bruno parece ter caprichado em afastar sistematicamente os que se erigem incisivos, inatacáveis.
Indiquemos um único: as descobertas da análise espectral estas sim, eloquentíssimas e indiscutíveis, parecendo traduzir uma ampliação tal da inteligência humana que a distende para fora do nosso sistema planetário, permitindo-lhe indagar sobre a constituição dos mundos.
III
Para o escritor português nós absorvemos o positivismo todo – o seu culto, o seu sacerdócio, o seu grande fetiche, as suas grandes utopias, as suas procissões solenes, a sua aristocracia de sábios e a sua oligarquia de banqueiros. Aceitamos todas as conclusões da “Política” e todos os sacramentos do “Catecismo” que deletreamos com a unção religiosa de brâmanes ante os versículos do Rig-Veda.
Lá está escrito: No Brasil engoliu-se tudo, inteiramente e de pancada. Absorveu-se tudo, liturgia com o resto.
Ora, a verdade é que a grande maioria da atual geração brasileira, que remodelou o espírito sob o influxo tonificador do notável critério científico do pensador francês, não ultrapassou as páginas da “Filosofia Positiva”, da “Geometria Analítica” e da “Síntese Subjetiva”.
Felizmente.
Uma minoria diminutíssima aceitou todas as conclusões do pontífice. A maioria permaneceu autônoma. É escusado demonstrar. Basta a afirmativa incontestável de que em nossas indagações científicas preponderam, exclusivos em toda a linha, o monismo germânico e o evolucionismo inglês.
Mas o escritor não nos considerou sob este aspecto: no Brasil Mental não há senão breves alusões ao que temos sido ou feito nas ciências.
Alcandorado na região superior do tema sociológico pareceu-lhe, talvez, que em outros ramos de conhecimentos temos sido de uma esterilidade completa.
Entretanto, daqui têm partido para as ciências naturais em geral, da geologia à arqueologia, contribuições notáveis.
É impossível inseri-las num resumo breve.
Apontemos apenas essa lacuna séria.
Mais uma vez, desviado da rota preestabelecida. Bruno, arrebatado na caudal de divagações intermináveis, que derivam na corrente de um estilo exuberante e folgado, ficou, diante do assunto que não aborda nunca – irredutivelmente literato.
É o seu defeito essencial; é todo o defeito de um livro cuja leitura não fatiga, revelando erudição fora do comum, mas sem unidade é altamente prejudicado, em que pese as cem páginas brilhantes, por observações incompletas, imperfeitíssimas, quando não inteiramente falsas.
Revela-as aquela monótona e fatigante discussão sobre o positivismo, mesmo quando a constringe nas considerações particulares acerca da sua influência entre nós. Surgem então erros de detalhes, denunciadores de um conhecimento
imperfeito da questão.
Assim fala-nos, muito seriamente, no exagerado ortodoxismo lafitista de Teixeira Mendes
desconhecendo que para este, de há muito, Pierre Laffitte é simplesmente um cismático, é simplesmente o indisciplinado sofista do Colégio de França.
Noutro ponto, ainda, registrando as sensatas restrições que ultimamente têm atenuado o nosso nativismo incipiente, aponta, predominante nesse movimento generoso da opinião nacional, por obediência doutrinária, o positivismo.
Foi este, declara explicitamente, que levou o dr. Luís P. Barreto, nas suas Soluções positivas da política brasileira, a propugnar pela grande naturalização.
Ignora, assim, que esta lei está no nosso código orgânico (como muitas outras) contra a vontade manifesta e unânime dos sectários da nova religião. Para estes ela é uma aberração criminosa, em virtude da qual a nossa pátria deixa de ser um ente real para transmudar-se num agrupamento convencional de indivíduos. Ainda mais – sob um ponto de vista mais geral –, ela afigura-se-lhes um trambolho obstrucionista para a solução do problema moderno da incorporação do proletariado à sociedade – porque afrouxa e dispersa as forças dos partidos operários da Europa, rareando-lhes as fileiras precisamente na época em que, arregimentados e fortes, devem impor a solução da questão formidável à burguesia assustada. Desse modo, é claro que o positivismo não inspirou – como Bruno supõe – a solução indicada acima pelo nosso notável patrício. Combatem-na, antes, e afervoradamente, os seus adeptos, assim como combatem a maior parte das leis definidoras das nossas instituições, assim como combatem em grande parte a orientação impressa em nossos estudos experimentais e quase todo o nosso movimento literário e artístico – que não inspiravam, que não inspiram, que não podiam inspirar.
Tudo isto está muito longe do açodamento com que – segundo a afirmativa precipitada anteriormente expressa – aceitamos todos os postulados firmados pelo grande pensador.
*
Terminamos, volvendo a uma questão inicial.
Insistindo sobre as divergências literárias entre os dois países, faltou ao escritor serenidade para, com uma sobranceria mais dominadora do que todas as frases que nervosamente traça, explicar a animadversão quase espontânea e instintiva que vê sempre despontando por parte dos escritores brasileiros. Se a tivesse, retomaria talvez, e talvez não abandonasse mais, o verdadeiro rumo que deveria dar ao desenvolvimento do livro.
Ao invés de resumir aquela disparidade de vistas em antagonismos pessoais e caprichosos, deveria considerá-la sob uma feição geral, de onde decorressem por fim, logicamente deduzidas, como corolários, todas as cambiantes que apontou, como exemplos frisantes.
Veria então que esse antagonismo, que é um estimulante salutar, tem origens mais profundas.
É lógico e era inevitável.
Ainda quando não nos houvessem atingido aquelas maravilhosas descalçadelas do Cancioneiro Alegre, a oposição indicada surgiria do mesmo modo, irresistivelmente.
Bruno ilude-se dando-lhe fontes tão escassas. Não é uma reação, como acredita – é a ação de causas superiores. Reivindicamos prioridade da discórdia. Era fatal – e traduz um sintoma lisonjeiro da nossa organização intelectual.
Se ele não se verifica entre escritores norte-americanos e ingleses – perfeitamente uniformes até mesmo nos últimos detalhes da linguagem de tal modo que se pode, sem transição apreciável, passar das páginas de Washington Irving para as de Dickens —, tanto pior para os primeiros. A nossa vaidade nacional, ao contrário do que supõe, nada sofre absolutamente num paralelo com a grande República.
A formação da nacionalidade ali realizou-se de golpe. A sociedade inglesa, transplantada para a América do Norte, ali chegou intacta e, excluídas as variações secundárias do meio físico, ali permaneceu, incólume, sem se comprometer na mestiçagem, graças ao individualismo característico do saxônio, que o impeliu ao esmagamento do pele-vermelha e ao isolamento sistemático do negro.
Entre nós houve o contrário.
A nossa história é, por isto, incomparavelmente mais interessante e instrutiva.
Foi pena que a não considerasse um momento o inteligente polemista.
Observaria então que o brasileiro, como o bôer, tipos étnicos emergentes do cruzamento de raças mui diversas, resumem hoje exemplos frisantes para muitas conclusões dos antropologistas e sociólogos modernos.
Sobretudo para as dos últimos.
Porque o que os dois povos revelam, de modo iniludível, é a função, já agora sobranceira a controvérsias, da luta das raças no advento das nacionalidades e na marcha geral das civilizações.
Gumplowicz – que é como que uma transfiguração de Hobbes refundido à luz do darwinismo – enfaixando, com uma lucidez surpreendedora, as deduções mais seguras da filosofia da história, desde as tentativas de Hegel aos princípios do evolucionismo – definir modernamente, na tendência imanente a todo o elemento forte para subordinar a seus desígnios os mais fracos com que enfrenta, a fórmula que traduz o processo natural da civilização humana.
E a nossa história nacional tem sido a sua aplicação inegável.
Seguindo paralelamente o pensamento do escritor germânico, que, entretanto, ao delineá-lo, não cogitava do Brasil, podemos caracterizar o nosso movimento evolutivo como um resultado da ação de raças heterogêneas que se acham entre si numa relação de subordinação ou de predomínio, ou num equilíbrio mais ou menos estável, obtido à custa de compromissos políticos, determinando uma superposição de classes que se erige na ordem política como – a seleção natural das raças.
Esta luta formidável que é a força motriz da história, assume, de um modo contínuo, todos os aspectos, das razias selvagens das tribos até à forma pacífica e jurídica refletida na organização do Poder e do Estado.
E quando, atingida esta última fase, se constituiu afinal uma unidade étnica, a raça recém-formada, que é antes de tudo um produto histórico, obedece de modo ainda mais acentuado ao mesmo determinismo, percorrendo com o mesmo ritmo o ciclo da sua existência indefinida. Conserva a tendência combatente volvendo-a sempre, de modo notável, para o elemento mais forte da sua formação.
A uniformidade da linguagem, transmitida pelo último, é então um instrumento incomparável para realçar o contraste das tendências naturalmente diversas.
Daí esse antagonismo expressivo, sem exceção na história, que faz com que as colônias emancipadas deixem às vezes antes da dependência política a tutela cultural das metrópoles.
Fora longo enredarmo-nos em considerações acerca do estádio provável do complicado caldeamento de raças de que surgimos. De qualquer modo tendemos para um tipo etnológico e, consequentemente, para um tipo histórico definido e naturalmente diverso de cada um de seus fatores isolados.
Fatalmente – havemos de dissentir. Essa divergência não tem, porém, as causas mínimas de incidentes mínimos que Bruno agita longamente.
A discórdia que lobriga é um aspecto secundário e inapreciável de fato mais elevado resumido numa inevitável diversidade de estímulos, numa compreensão fatalmente diversa da vida, e numa disparidade irremediável de destinos com o povo que nos legar, entretanto, a forma superior ao nosso espírito. Seria ao menos inexplicável que ela promanasse do humorismo inócuo de meia dúzia de literatos. Garantimo-los: o brasileiro errado que surge do português certo e castiço de A. Garret, distrai-nos, como a toda a gente, é uma fantasia – não ofende; aceitamo-lo com o mesmo entusiasmo ruidoso, jovial e forte com que os yankees aplaudiram o Uncle Sant de Sardou… O que é lastimável é não haver reciprocidade no considerar de tal modo a questão e que não veja o escritor nessa rivalidade dos dois povos afins, mas distintos, um fato nobilitador para ambos e incapaz de originar irrupção de ódios que os incompatibilizem ou façam estremecer sequer velhas relações históricas que – para nós pelo menos – são um compromisso com o passado.