À margem de um livro

 

História da Viação Pública de S. Paulo

 

O Estado de S. Paulo, 6 de novembro de 1903

I

Em uma de usas páginas lapidárias sobre as coisas da nossa terra, Capistrano de Abreu caracterizou magistralmente o destino histórico de São Paulo, assinalando do mesmo passo a missão das vilas principais que o animavam no século XVIII.

Cito de cor:

Cada uma dessas vilas extremas asselava um destino: as do Paraíba (Mogi das Cruzes, Taubaté, Guaratinguetá) apontavam para Minas Gerais; como Parnaíba e Itu apontavam para Mato Grosso; como Jundiaí apontava para Goiás; e Sorocaba para os campos de pinheiros onde já surgia Curitiba…

De feito, todo o nosso século XVIII foi o desempenho de um tal programa. Pelo oriente, suplantada pelo arremesso das estradas a muralha da Mantiqueira, a vaga colonizadora espraiou-se do rio Doce ao Rio Grande, lançando-se depois pelo álveo do São Francisco às raias da Bahia e, delas, pelo Parnaíba, às terras extremas do Nordeste; de Jundiaí abalou a bandeira de Bartolomeu Bueno para reviver em Goiás, transposto o Parnaíba, as primitivas picadas do Anhanguera, que interferiam as desmedidas veredas do Tocantins e do Araguaia, destinadas a levar mais tarde os sertanistas até ao Pará; de Itu e Porto Feliz arrancaram as monções progredindo até ao Paraná, singrando ao arrepio da corrente do Pardo até ao divisor das águas do Paraguai, e, por este acima e pelo São Lourenço, até Cuiabá, de onde, varado o chapadão dos Parecis, derivavam pelos afluentes do Guaporé, avançando à feição das correntezas até ao âmago do Amazonas; e de Sorocaba , pelo caminho de Lajes (um belo sonho de D. Luís Antônio destinado ao mais prosaico dos tráfegos, em que o tropeiro substituiria o bandeirante decaído), seguiram sucessivas levas demandando o território das Missões e as campinas do Rio Grande do Sul.

Era o Brasil inteiro preso nas infinitas malhas de centenas de trilhas estreitíssimas. E, mau grado o principal estímulo de toda essa agitação, residindo todo na avidez do ouro, desde que a metrópole a golpes de alvarás obstara quase por completo o descimento do gentio, pressente-se uma diretriz tão segura no baralhamento daquelas veredas multivias, um traço tão direito naquelas linhas tão tortas, que os andejos sertanistas, bandeirantes ou conquistadores, se nos afiguram simples joguetes postos pela fatalidade histórica em porfia com o desconhecido, uns quase homúnculos agindo automaticamente sob o império de um determinismo inflexível.

Realmente o que tínhamos de mais grave, o que ainda temos talvez de mais urgente e sério — era a conquista da própria base física de uma pátria.

O Brasil é compacto: falta-lhe este articulado de estrutura que entrou bastante na expansão admirável da Grécia, que explica em grande parte a expansão britânica e que constitui um dos fatores preeminentes da hegemonia asiática do Japão. Geograficamente impenetrável, tinha, naquela quadra, a agravante da extensão territorial contraposta ao diminuto da raça conquistadora. Esta, que se afoitara, intrêmula, com o mar Imoto, povoado de basiliscos de frios olhos letais, entrara-se de desânimos diante dos caaporas do sertão. Presa ao litoral, olhos de preferência volvidos para o Atlântico, onde tufavam, de longe em longe, as velas dos galeões, não aproveitava as terras, contentando-se, consoante o falar pinturesco de frei Vicente do Salvador, “de andar arranhando ao longo do mar, como os caranguejos.”

E, certo, demoraria consideravelmente o nosso tirocínio histórico se, sobretudo no século XVIII, não cedesse o passo aos cruzados destemerosos que, com serem os mais complexos dos mestiços — a ama latina transfundida no temperamento instável do tupi e explodindo dentro do arcabouço atlético do africano — eram os únicos aptos para a conquista que de feito realizaram, ainda que incompletamente. Desde 1740, a faina povoadora se alastrava da Mantiqueira ao Viamão e dos Parecis  à Jacobina; sem-número de caminhos secundários bifurcavam-se em todos os pontos daquelas quatro linhas de penetração e, irradiantes em todos os sentidos, desatavam-se pelos quadrantes; e aqueles rudes pioneiros, certo imperfeitissimamente e sem o quererem, porque as rotas à escoteira não lhes permitiriam sequer os grosseiros agulhões do tempo, haviam esboçado a triangulada do Brasil sobre a base de 100 léguas do Tietê. Mas esgotaram-se-lhes nesse esforço os alentos, quebrou-lhes por outro lado o desquerer da metrópole, que sacrificara o paulista ao mineiro desde o dia em que este lhe alugara a estima por 100 arrobas anuais, de ouro. De modo que, ao chegar o século XIX, já estavam consideravelmente reduzidas as monções; desfrequentadas as trilhas que as matas invadiam e cegavam; estruídos os arraiais que salpintavam as terras desde Barbacena a Vila Bela; desmoronadas pela solapa das torrentes as calçadas ciclópicas dos pendores das serras, e, por toda a banda, nas vastas solidões, apenas batidas pelo passo tardo das boiadas, as santas-cruzes espetadas pelos cerros e pelas baixadas basilavam, melancolicamente, no deserto, os velhos itinerários das bandeiras.

Parecia de todo extinta uma missão tão heroicamente começada.

*

Ora, o grande valor da História da viação pública de São Paulo está no demonstrar a revivescência daquelas antigas energias e daquele destino.

Não vamos analisar este livro, que é o livro de um mestre escrevendo desembaraçadamente sobre um assunto de engenharia ao qual tem dedicado o melhor de sua atividade.

Ele não tem frinchas por onde se destaquem excertos ou se miudeiem pormenores; é inteiriço e inséctil, numa sólida concatenação repregada de cifras rigorosas, de onde as conclusões ressaltam à maneira de corolários e os períodos se conchavam na sequência lógica dos termos de uma série.

Encarando o desenvolvimento ferroviário de São Paulo a partir de 1835 e seguindo-o até hoje, através das quatro fases sucessivas que o definem — das primeiras tentativas malogradas (1835-1852), ao fecundo período (1852-1880) do advento das nossas principais estradas, sob o regime protetor das garantias de juros e privilégio de zona, e à quadra de transição (1880-1892) para o estado vigente da plena liberdade — neste apanhado incisivo, não nos faculta apenas um juízo claro acerca da evolução da nossa indústria de transporte e do espírito crescentemente ascensional  da legislação respectiva, senão que também vai traçando, pelos seus pontos determinantes mais expressivos, o diagrama do nosso desenvolvimento econômico.

Vemos então que às estradas paulistas, constituídas sem a base sempre fecunda da iniciativa individual e da livre concorrência, faltou o caráter profundamente criador das primitivas linhas norte-americanas.

Nasceram sob a mão canhestra do Estado, constritas para logo em infinitas exigências, tacanheadas pelos regulamentos massudos, e alongaram-se pelo território sob a atração variável dos centros agrícolas, que se formavam para atenderem aos reclamos urgentes da exportação. Nenhuma delas recorda, mesmo em fugitivo esboço, aquela “Union Pacific Railroad”, que, a pique da crise financeira da Guerra de Secessão, estirou os seus 1.600km de trilhos pelo Far West, madeirando os túneis dos snow-scheds entre os plainos enregelados, transmontando as Rochosas, para estimular culturas em terrenos amaninhados pela flora desesperadora da sage-brush, e povoar, e alevantar cidades, e criar necessidades, a fim de ter, após tudo isso, um tráfego remunerador. Também não havia entre os nossos estadistas — como não há entre os que atualmente acreditam que o são — um timbroso railroad-man capaz de assumir, arrojadamente, em sua plataforma eleitoral, o compromisso grave de assaltar o deserto…

Mas, bem que mal estreadas, e nisto se há de ver uma das mais significativas conclusões do livro, as nossas linhas férreas que penetração evolveram. A concorrência extinguiu a pouco e pouco a garantia de juros — como o revela o conflito entre a Paulista e a Mogiana ao planear-se o ramal de Ribeirão Preto — e a mesma zona privilegiada — estirões de latifúndios ladeando os trilhos — reduziu-se quase ao indispensável para a cercaduras das linhas.

Num ponto apenas as nossas estradas relembram as norte-americanas e as que mais tarde a Rússia desenrolou sobre a Ásia, no reduzir ao estritamente preciso os gastos do primeiro estabelecimento, fato de que resultaram as mais precárias condições técnicas, com as imperfeições do material rodante, de tração ou transporte, e, consequentemente, reduzidíssima capacidade de tráfego de par com exagerado custeio. Obedeceram neste lance a uma regra geral: os seus trilhos de 18kg por metro corrente, capazes de locomotivas de insignificante peso aderente; as suas curvas apertadas e rampas de 2%, ou mais, servilmente ajustadas aos movimentos do terreno, não implicavam erros senão excessivos resguardos inspiradores de superestruturas provisórias, impostas pelas exigências financeiras do momento. Nem as teve, certo, melhores, a Central Pacific, da Nevada, com a mesma levidade de trilhos, a mesma bitola estreita, serpenteando, sem balastro, em curvas de 90 metros e empinando-se pelas encostas em declives inclassificáveis; nem esse outro extraordinário Transcapiano, que assombrou a Europa pelas temeridades de seu traçado, mas onde levíssimas locomotivas de 30 toneladas, roncando tardas sobre trilhos de 19 quilos, com a velocidade de 18km, não raro recuavam, tornando celeremente para as estações de partida, se acertava de as bater pela frente, ponteira, a ventania ríspida das estepes…

Mesmo sob este aspecto bem sério, de construção, o livro do dr. A. Pinto tem páginas de grande ensinamento. Mostra como a breve trecho se foram corrigindo estes deslizes pelas modificações graduais da superestrutura, dilatadas as curvas e abrandadas as rampas, ao mesmo passo que melhoravam a tração, a velocidade e o custeio, de modo que as poderosas consolidations de 66 toneladas, estavelmente postas sobre trilhos de 45 quilos, dupliquem agora a capacidade do tráfego nas principais linhas deste estado, por maneira a se poder assegurar como percorridos pelos melhores aparelhos de locomoção os nossos 3.471km de linhas, à parte as secundárias e os ramais acessórios. Pena é que, incidentes ainda neste ponto nos desvios de método imanentes à viação em toda parte, não houvéssemos fixado, desde o começo, os tipos de bitola que mais se harmonizassem com o regime geral dos transportes. Temo-los variadíssimos, entre os limites de 1,60m a 0,60m; e, embora seja opinável o que alvitra o dr. A. Pinto, propugnando pelo adotar-se um padrão uniforme, o de 1,20m mesmo para as linhas secundárias, onde se teriam de variar apenas as condições de declive e curvatura, o fato é que a definição das larguras normais, excluído aquele caráter de uniformidade, era preliminar indispensável de que não se curou.

Para este aparelho circulatório das riquezas, temos o estafado símile da circulação do sangue, e, como o objetivo essencial de ambos é o mesmo, isto é, produzir na intimidade de um organismo as rápidas correntes que acarretam os materiais nutritivos, pensamos que num e noutro caso a identidade funcional determina a calibragem variável dos vasos, para que se garanta a tonicidade das artérias e o equilíbrio dinâmico da vida.

Do mesmo modo que contemplamos sem surpresa a bitola grandemente folgada da Inglesa, porque ali está, perdoe-se-nos a comparação, a veia porta da produção paulista, não compreenderíamos o mesmo padrão, e ainda mesmo os menores de 1,44m, 1,20m e 1m, adotados para o ramal de Santa Rita ou Descalvado, como ao mais bisonho clínico não escaparia uma exagerada dilatação paralítica de arteríolas.

Notando esta falta, aditou-lhe o notável profissional uma outra por igual ponderável: — a do traçado das linhas que não obedeceu a um plano geral de viação. É, de fato, injustificável. Ainda quando aos homens daquele tempo faltasse acume de vistas para aquilatarem do valor de um tal assunto, não lhes faltou um mestre. Precisamente no fervor daquela construção de linhas, na quadra excepcionalmente progressista em que o visconde do Rio Branco galvanizou o Brasil, o mais romântico dos nossos engenheiros e o mais prático dos nossos sonhadores, André Rebouças (um nome que infelizmente não aparece neste livro, onde se registram os milagres da garantia de juros) inscrevia, mercê das mais belas concepções que ainda produziu a engenharia brasileira, o BRasil inteiro num triângulo de viação geral, argumentando magistralmente com os elementos e dados que existiam.

Felizmente, mau grado todos os inconvenientes de um trabalho feito ao acaso, sem planos prescritos, sem um método e com nímio desprezo das exigências do futuro, “bem poucas modificações conviria traçar hoje sobre o mapa da viação do Estado se porventura fosse possível apagar a obra feita para substituí-la por outra.”

A Inglesa afeiçoou, com os seus planos inclinados, o velho “caminho do Padre José”, por onde há mais de 300 anos passaram Fernão Cardim e Simão de Vasconcelos, deixando arquivado, em páginas memoráveis, o penoso do acesso.

Prolonga-a normalmente à costa, a Paulista, que, assim, forma hoje a espinha dorsal do Estado — e formará amanhã a do Brasil e da América do Sul — cujo centro geométrico, na região cuiabana, se liga pela mesma reta ao istmo de Panamá e a Santos. A Mogiana, no avançamento que a destaca à frente das demais, acompanha bem, à parte a ligeira curva de Cravinhos, as velhas trilhas do Anhanguera, nos 504 quilômetros de Campinas a Jagura; e a Sorocabana, ao sul, que se há de prolongar à confluência do Tibagi, onde o principal o trecho navegável do Paranapanema ao Paraná, está ainda dentro do Plano de viação mista de Palm e Royd, visando a penetração ao sul de Mato Grosso, a buscar o distrito de Miranda.

*

Diante disto, podemos volver às iniciais desta apreciação ligeira.

Foram respeitadas as grandes diretrizes históricas das bandeiras. Reviveu, mais bem apercebida de recursos, a extraordinária empresa que se afigurava extinta. O problema do domínio efetivo do território, resolvido para os lados de Minas e do Sul, agora se patenteia mais nítido e afeiçoado a definitivo desenlace no rumo de noroeste. Deslocaram-se apenas — melhorando e avançando — os antigos arraiais da investida, transferidos de Sorocaba para Avaré, de Itu para Jaboticabal ou Bebedouro, e de Jundiaí para Uberaba…

Deste modo, hoje como há 200 anos, o progresso de São Paulo pode ainda ser o progresso do Brasil.

Vejamos.

O Estado de S. Paulo, 7 de novembro de 1903

II

Há tempos, nestas mesmas colunas, referindo-nos ao exagerado apego que tributamos às coisas do velho mundo acompanhando-as servilmente na ordem moral e na ordem prática, apontamos os inconvenientes de uma tal subserviência diante do nosso meio, dos vários aspectos da nossa cultura, dos indecisos traços da nossa atividade, do apagado das nossas iniciativas, do incaracterístico da nossa feição étnica ainda duvidosa, e vimos um dos fatores dessa situação inferior, que nos apequena em humílimos pupilos, nesse bloqueio em que jazemos entre os sertões e o litoral — sem que em toda a longura da tarja povoada, do Amazonas ao Rio Grande, se lobriguem fisionomias originais bem nossas, e estímulos próprios, e vida autônoma, e uma translação generalizada para o futuro.Atentando depois para a miragem de uma cultura brutalmente extensiva, que por aí se alarga devastando a terra e criando um espantalho de civilização tacanha em taperas ou cidades decaídas circundadas de fazendas velhas, mostramos como ela denuncia o vício de um crescimento onde não concorrem as energias profundas do país porque sobre irradiar na sua periferia vai perdendo o próprio caráter nacional a pouco e pouco afogado nas correntes de imigrantes que diante da nossa indiferença muçulmana pelo futuro têm o aspecto de uma lenta invasão de bárbaros pacíficos…

Concluímos que a estas anomalias relevava opor um recurso talvez único, mas que por si só supre por muitos: incorporar à nossa existência nacional a gens obscura e forte dos sertões. Mas como para isto os processos mais civilizados talvez não sejam os processos mais civilizadores, porque a sociedade sertaneja com os seus hábitos antigos vesados aos remansos de uma vida primitiva, não poderá galgar de um salto o nosso meio; e como, por outro lado, o nosso desfalecimento econômico se impropria por completo aos dispêndios de uma linha férrea povoadora — vimos no desenvolvimento da viação ordinária sistematicamente estabelecida um meio prático de consequências admiráveis.

Deste modo — repetindo integralmente o que então dissemos — uma estrada de rodagem para Mato Grosso, sobretudo agora que o automobilismo libertou a velocidade do trilho, não seria apenas o melhor leito para a futura linha férrea e o melhor meio de nos libertarmos do Prata nesta fase incandescente da política sul-americana, senão também, sob ponto de vista mais alto, um belo laço de solidariedade prendendo-nos àqueles patrícios segregados e revigorando uma integridade étnica já consideravelmente comprometida.

Indicamos as condições técnicas favoráveis que rodeariam a construção dessa estrada continental — a grande avenida da nossa civilização — permitindo-nos (mesmo com o sistema vulgar das diligências e a velocidade modesta de doze quilômetros) a distância de Jaboticabal a Cuiabá em dez dias apenas, e vimos que além desta redução do tempo de viagem — um teço precisamente do que hoje se despende com a volta de quintas léguas pelo Prata — ficariam de uma vez desfeitos todos os perigos, todos os empeços e todas as surpresas da travessia por um rio que pelas complicações que tem despertado, e ainda pode despertar, é o Bósforo alongado da América do Sul.

É a súmula do que pensávamos considerando este velho problema nobilitado em 1876 pelo nome de Pimenta Bueno e para o qual, antes e depois do grande engenheiro, houve as mais díspares soluções. Mas expondo-o quedamos num ponto de vista plenamente geral, parcíssimos de dados práticos ou imperitos para o pormenorizar sob as suas múltiplas faces.

Ora, o dr. A. Pinto trata-o com uma segurança tal, balanceando-lhe os motivos, que podemos considerá-lo, terminado o trabalho teórico, na linha de uma solução prática definitiva.

Depois de explicar as disparidades de vistas reinantes no assunto como oriundas do propósito de se tentar uma entrada única num Estado, que, pelo expandir-se em 16 graus de latitude, exige pelo menos duas, considera especialmente a mais importante delas, a da região central, e mostra como o avançamento das linhas férreas paulistas simplifica a questão de dar-se ao Mato Grosso, na zona cuiabana, o seu único porto natural, Santos, consoante o parecer luminoso de Leverges.

Nesse pressuposto firma, preliminarmente, o ponto obrigado de Santana do Paranaíba que pela sua posição excepcional, na reta de Cuiabá a Santos, e na interferência dos vales do Rio Grande e do Paranaíba, será inevitavelmente, em próximo futuro, a animadíssima feira de todos os Estados interiores. Aí terão de tocar uma das três estradas de penetração: a que partir de Ribeirãozinho, por S. José do Rio Preto, a transpor o Paraná no porto do Taboado; a de Bebedouro atravessando o Rio Grande na cachoeira do Moribondo; e a de Pimenta Bueno, interjacente e de algum modo inspiradora daquelas, destendida de Jaboticabal pelo vale do Rio Pardo, a interferir na cachoeira dos Índios, próxima a S. Francisco de Salles. Demonstra a pré-excelência da segunda não só porque irá servir a toda a extrema ocidental de Minas como pelas vantagens de atravessar o rio Grande na Cachoeira precitada onde, além de uma ponte com um lance dez vezes menor que a do Taboado, se depara permanente gerador de energia elétrica capaz das mais intensas aplicações, entre as quais a da tração da própria estrada de ferro que ali se construir.

Quanto a esta, porém, capitula-a de prematura e desproporcionada para o Tesouro, mercê do custo aproximado de cinquenta mil contos, em que importará, gravado depois, pelo menos nos primeiros anos de tráfego, por um déficit anual de dois mil.

E — depois de abandonar a questão da escolha de um traçado para admitir qualquer caminho no sentido de se tornarem efetivas aquelas comunicações — conclui deste teor: “Em tais circunstâncias é a estrada ordinária que está naturalmente destinada, ainda por muitos anos, a servir de leito para a obra do povoamento dessa imensa porção do território brasileiro, condição primacial para seu ulterior desenvolvimento agrícola, comercial e industrial. O melhoramento assim realizado já representará um grande passo em face da atual situação das coisas, especialmente em benefício do sul de Goiás e de todo o vasto território de Mato Grosso.”

E noutro ponto, depois de admitir a exequibilidade de um prolongamento das linhas férreas paulistas até à estação terminus de Santana do Paranaíba:

“Dado esse grande passo, o que não será difícil conseguir mediante auxílio da União e dos Estados interessados, e feitos os melhoramentos de que carecer a viação ordinária que já existe ligando Sant’Anna ao território cuiabano, não será preciso mais para deslocar o eixo das comunicações mesmo o que se acha estabelecido via Rio da Prata de modo a ficar diretamente dirigido via S. Paulo. A corrente comercial que demandar o novo escoadouro será a própria a promover pouco a pouco o alargamento do seu leito, o povoamento de suas margens e afinal o desenvolvimento agrícola e industrial da grande região por ela percorrida. Será então a ocasião de fazer a estrada de ferro substituir a estrada de rodagem.”

Como, por outro lado, só depende do prolongamento, já projetado, da Sorocabana até às barrancas do Paranapanema, a comunicação rápida com as paragens meridionais do grande Estado central — todas estas considerações bem eloquentes, de que consideramos apenas de relance os pontos capitais, se enfeixam na dedução final: “O Estado de S. Paulo está naturalmente fadado a constituir-se em futuro que talvez não ande remoto, a chave das principais linhas estratégicas da República, o centro de convergência do sistema geral de viação que deve ligar todo o vasto interior do Brasil, esse imenso planalto central que verte para o Amazonas e o Paraná.”

*

Há, certo, nesse livro sem número de outros assuntos interessantes como o delataria o só enunciado de seus capítulos. Bem pouco escapou à visão exercitada do profissional tão acomodado ao assunto que escolheu. Das estradas comuns às de ferro e à viação marítima, sob as suas diversas modalidades, engenharam-se valiosíssimas páginas.

Mas os conceitos que há pouco consideramos são o ponto culminante da História da Viação em S. Paulo de cuja última página nos permitimos extratar esta visão animadora em que se prefiguram os destinos da nossa gente:

“Por suas estradas de ferro, novas bandeiras de paz e trabalho, mensageiras do progresso das artes e indústrias, da cultura moral e das ciências, cabe-lhe ainda realizar este supremo ideal — transformar todo esse imenso cenário de suas glórias passadas no mais vasto e rico império industrial que ao homem de mãos dadas com a natureza jamais será dado fundar sobre a terra.”

De mim confesso que versando aquelas páginas e chegando a esta conclusão, não lhes lobriguei um significado mais empolgante do que o que aí está nesse admirável descortinar do futuro.

Euclides da Cunha

Como citar
CUNHA, Euclides da. À margem de um livro. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Prefácios e críticas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/prefacios/. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, S. Paulo, 6 e 7 nov. 1903. Crítica ao livro PINTO, Adolfo Augusto. História da viação pública de S. Paulo (Brasil). São Paulo: Vanorden & Cia, 1903. 320 p. 55 pl. 2 mapas.