O mestre
Não choremo-lo não… se essas dores supremas
Geram sombria noite em nosso ser magoado
Em nossa alma se arqueia
Cada folha imortal de seus imensos poemas
Como um céu constelado
Desses eternos sóis: o canto, a estrofe e a ideia.
Viam-no sempre a divagar torvado
Pelas tabernas vis, – sempre seguido
De um velho cão famélico e ferido,
Bêbado – impuro, torpe e enlameado…
No negro quarto o homem enf’recido
E o cão vacilam ante empedernido,
Vil pedaço de pão – duro e gelado…
Ambos têm fome…torvo – lutulento
Ao pão gelado o miserável corre
E atira-o ao companheiro famulento
Do quarto os cantos a tatear percorre
Erguendo uma garrafa – esgota-a lento
E cambaleia e cai e arqueja e – morre!…
Rimas
Ontem — quando, soberba, escarnecias
Dessa minha paixão — louca — suprema
E no teu lábio essa rósea algema
A minha vida — gélida — prendias…
Eu meditava em loucas utopias
Tentava resolver grave problema…
— Como engastar tu’alma num poema? —
E eu não chorava quando tu te rias…
Hoje — que vivo desse amor ansioso
E és minha — és minha, extraordinária sorte,
Hoje eu sou triste sendo tão ditoso!…
E tremo e choro — pressentindo — forte
Vibrar — dentro em meu peito, fervoroso
Esse excesso de vida — que é a morte…
1885
A flor do cárcere
Nascera ali — no limo viridente
Dos muros da prisão, — como uma esmola
Da natureza a um coração que estiola —
Aquela flor imaculada e olente…
E ele que fora um bruto, e vil descrente
Quanta vez, numa prece ungido, cola
O lábio seco na úmida corola
Daquela flor alvíssima e silente!…
E — ele — que sofre e para a dor existe
Quantas vezes no peito o pranto estanca!…
Quantas vezes na veia a febre acalma,
Fitando aquela flor tão — pura e triste!…
— Aquela estrela perfumada e branca
Que cintila na noite de sua alma…
Césares e czares
[Fragmento]
Os césares cruéis,
Quando deixam da história a cena giganteia,
Conservam geralmente a linha dos atores,
Que embora tenham tido espantosos papéis,
Nos quais dura se alteia
A desgraça espalhando angústias e terrores,
Querem que os acompanhe o aplauso da plateia…
*
Mário penetra em Roma.
Pela sétima vez erguido ao consulado.
Na alma robusta o herói traz sinistros desejos
De vingança, fatais anelos que não doma…
Sombrio, alucinado,
Não lhe quebram o assomo, os eternos lampejos
Dos prélios que travou nas lutas do passado:
E a espada que fulgiu nas sombras da Germânia
Arranca-a em plena insânia,
Vibrando-a doidamente — e doidamente a enterra
Em pleno coração da sua grande terra…
*
Mas vê-de-o no desterro…
— Que imensa solidão! que pavoroso estrago! —
Velho, proscrito e só!… ninguém à dor lhe assiste.
Só lhe é dado rever de alcantilado cerro
O vulto enorme e vago
Da pátria, além do mar… Dizei-me o que é mais triste:
As ruínas daquela alma ou as ruínas de Cartago?
*
César trucida a Gália
E a Síria e o Egito e a Ibéria… À indômita ambição
Não lhe basta, porém, o Império vitorioso…
Desvaira: vai buscar nos campos de Farsália
Os sonhos de Pompeu; e em Tapsos — glorioso —
A energia moral austera de Catão.
Triunfou! É feliz! Que importam dissabores
Dos rudes lutadores,
Feitos comparsas vis desses terríveis dramas,
Se Roma está em festa… e a Gália inteira em chamas!
*
No forum certo dia:
“Tu quoque, Brute!” Estranho, este grito se ergueu.
Tumultua o recinto ante o ato formidável:
— César ferido, o peito em sangue e a fronte fria
Vacila. Mas o seu
Aprumo não destrói. Cai, num tombo impecável,
Tragicamente, aos pés da estátua de Pompeu!
*
Ivã subjuga e prende
Ao carro triunfador os povos de dois mundos.
Reina, impera — é o Czar! Sua terrível glória
Do pólo enregelado ao Cáucaso se estende.
Os Calmucos imundos
Cercam-lhe o trono e a vida. E ler-se sua história
É ouvir-se a todo instante os rumores profundos
Que irrompem do tropel dos esquadrões bravios
Dos tártaros sombrios…
— Imenso tropear que afoga os gritos cavos
E as doidas maldições de cem milhões de escravos!
Os holandeses
Calabar (— Só. — Queda-se pensativo. Surge de um recanto do forte.
Fr. Manuel Salvador).
Fr. Manoel
(à parte): …Não percamos esta hora.
(alto, a Calabar): Pois acreditas tu que és um leão?
(Calabar volta-se, surpreso): Tu és
Um cachorro açulado às goelas do holandês!
Calabar
Padre! de onde surgiste? a que vens? e que queres?
E que palavra vil é esta com que feres
A quem sempre submisso ouviu a tua voz?
Fr. Manoel
Escuta-me, meu filho… Eu precisava, a sós,
Longamente tratar contigo acerca de árdua
Empresa; e a situação em que te vês, aguardo-a
De muito impaciente…
Calabar
Tu achas então que é
Própria a divagações esta hora — quando a fé
Que propagas e o Deus, o próprio Deus que adoras
Tem em roda seis mil espadas vencedoras
Do herético holandês… Tu queres gracejar
Ante o perigo, padre!?
Fr. Manoel
(tranquilo): Escuta, Calabar:
Sabes o que traduz este hábito sombrio?
É o túmulo de uma alma! Aqui dentro há mais frio,
Mais sombra e mais horror do que nas solidões
Dos cemitérios… Ouve: Há fundas aflições
De uma agonia atroz, no ser entregue ao duro
Martírio de arrastar este farrapo escuro.
Sabes tu por acaso avaliar o pavor
De alguém que arrasta em vida o próprio túm’lo, e a dor
De quem cego da vida às galas soberanas
É um morto a vagar entre as paixões humanas,
Trágico e só perinde ac cadaver, só
Feito uma sombra vã e desprezível!? Oh!
Se podes calcular a espantosa tristeza
De alguém em frente ao qual, imota, a natureza
Não tem voz, nem luz… Se podes idear
Sequer a ânsia de alguém destinado a escutar,
— Monótona a bater, a bater agoureira,
A mesma hora a bater durante a vida inteira!
Se podes avaliar tão mísero viver
E sofrimentos tais, deves compreender
Que eu não sei rir sequer, que eu não gracejo nunca!
………………
[Entrei – grave – na Igreja – a turba ajoelhada] [II]
Entrei – grave – na Igreja – a turba ajoelhada –
E pávida a tremer quedava-se calcada
Sob a palavra atroz – de um padre que colérico –
– Alucinado olhar – a face cadavérica
Sobre ela arremessava em blasfêmias sem fim
Anátemas cruéis… e frases em latim!…
E dizia
Que o mundo aluía-se aos poucos
Seguindo esses aos quais se chama sábios – loucos –
Que julgam dar luz mas que a dão como os incêndios
Que não se abria a Bíblia e liam-se os compêndios…
Afogando-se assim numa cegueira ímpia
As leis do coração nas leis da Geometria…
Que era o livro um covil de monstros pavorosos
E a chamada ignorância – a ciência dos ditosos…
– E apontando da ciência a pálida coorte; –
Vede-os, fitai-os bem – nesse vagar sem norte
Pelo ciclo da vida – eles passam sombrios
Almas cheias de febre em loucos desvarios…
Pode nascer a flor na penedia dura
Mas de seus corações na fibra árida e impura
Uma ilusão não brota –
e continuava a tremer
De raiva e comoção:
Irmãos!… vede Voltaire
Voltaire, esse ideal de todos os ateus…
Voltaire! esse truão que pateava Deus!…
E vede Galileu – essa pobre alma ignara
Que num delírio atroz – sombrio – mal tentara
Arrebatar o globo a seu divino laço
E fazê-lo oscilar enorme pelo espaço
Suspenso numa ideia…
Dizendo isto parou – turbada a fronte feia…
Hirto como quem sofre o peso de um desmaio
Erguida a mão p’ra o céu – como quem pede um raio…
E disse – após – zurzir – em frases vis, fatais
Estes grandes h[…]es – das lutas ideais…
“E o pensador – e o astrônomo – o astrônomo maldito
Que lança o olhar na estrela e a ideia no infinito…
Verme atacando a Deus – alma transviada e atroz
Mariposa que cai nas lâmpadas dos sóis…
E continuava:
“Irmãos! vereis o Satã um dia
Ou dentro de um bordel ou numa academia!…
E ouvindo-o eu fitava – em frente – no altar-mor
Um pálido Jesus curvado à imensa dor
Que eternamente o punge – a essa dor atroz
Sem lágrimas, sem fim, sem lágrimas sem voz
Ó sim sem voz porquanto oh! mistério profundo
Quem padece é Jesus – mas quem soluça é o mundo!…
Fitava o sonhador divino de outras eras
O gênio criador das lúcidas quimeras
Cuja sombra contém-se – ela tão colossal
Melhor num coração que numa catedral
Quando por meu olhar um lívido clarão
Correu veloz e eu tive uma alucinação:
– Eu vi – Cristo se erguera – a lágrima sustida
A dous mil anos – alva – imensa e doloriza
Tremeu, fulgiu – rolou!
E ele se erguia imenso
Cristo [II]
Era uma idade atroz… forte e grandiosa,
Levantando altivíssima a alterosa
E fulgurante coma
Nas ruínas das nações se erguia Roma…
Trágica e má — das raças alquebradas,
Das velhas raças de remota história,
Afogando a existência, a força e a glória
— Num dilúvio flamívomo de espadas!
Não havia aplacá-la, nem dos perros
A queixa vil, nem dos heróis os ferros;
Embalde o pranto acerbo
Sufocando, Mitríades, soberbo,
Se erguera na Ásia aos rígidos embates
De férvidas paixões para, possante,
Lançar um trono no bulcão troante
Do torvelino horrível dos combates!
Tombara Filopôimen — altivo o aspecto,
Concentrando no velho e frio peito
Todo o vigor guerreiro
Todo o heroísmo de um país inteiro…
— E o que se passou então foi sublimado —
A Grécia que era morta, morta e escrava —
Transmudou-se num túm’lo — heróica e brava
Para guardar seu último soldado…
No Egito o horror dos dramas lutuosos…
Rotos, sombrios, pávidos, raivosos,
Os últimos heróis
Sofriam pela pátria… oh! dor atroz —
Oh! dor fatal que o coração adstringes! —
E passavam, cingindo as velhas clâmides,
— Entre a sombra funérea das pirâmides
E o olhar petrificado das esfinges! —
A Ibéria exangue — nem sequer o insano
Louco gemer do eterno amante — o Oceano —
Ouvia, lhe atirando às plantas frias
Grandes canções — vestidas de ardentias…
Amante imenso, de um amor profundo,
Que mais tarde, grandioso, para erguê-la,
— Não podendo engastá-la numa estrela —
Lançou-lhe aos pés — um mundo!
Nos corações as recalcadas penas
Doíam sem um só gemido… apenas,
Numa loucura brava,
O Parta palmo a palmo recuava;
No terreno sagrado de seus pais;
Caía — como o raio — fulminando,
E morria — as espadas agitando,
— Como sabem morrer os imortais!
Mas de onde vinha esse fatal domínio?
Lançai à história o olhar. Vede:
Um triclínio.
Das taças arrebenta
Formidolosa a embriaguez sangrenta…
Um truão se ergue; em seu olhar cintila
A febre, às vozes doces de um saltério,
Ébrio e trôpego dança… Ei-lo Tibério…
— Tibério cambaleia — e o mundo oscila! —
*
Foi nessa idade atroz e má, repleta
De crimes, que Jesus — incruento atleta —
Ergueu, como uma aurora,
Por entre a multidão, a fronte loura…
E nova vida palpitou na terra;
Vacilaram os ferros sanguinários
Nas manoplas dos rudes legionários;
— Em frente à paz estremeceu — a guerra…
Dissolveram-se em prantos os ressábios
Das concentradas dores, e nos lábios
Sublime, pairou esse
Bafejo ardente da nossa alma — a prece…
E livre dessas noutes que se somem
Ante os fulgores da razão de um justo,
O mundo inteiro se soerguendo a custo,
Respirava… p’la boca de um só homem!
Da antiga idade, os deuses combalidos,
Oscilaram, quebrados, derruídos,
Ante o clarão brilhante
Daquela consciência rutilante…
E, cobardes, num círculo de lanças,
Cheios de um grande espanto, vacilaram
Os déspotas, torvados… e recuaram,
Ante um homem cercado de crianças…
*
E quando ele caiu… o mundo antigo,
O seu ingrato e trágico inimigo,
— Alucinado e insano —
Deslumbrou-se ante um quadro sobre-humano:
Aureolava-o ignota claridade…
E aquele morto — frio, macerado,
Tendo no lábio um riso ensanguentado,
Na espádua roxa — erguia a Humanidade…
A rir
Eu já não creio mais… sombrio e calmo enfrento
— O lábio ermo da prece; o peito ermo da crença —
A estrela — rubra e imensa
De meu destino atroz, aspérrimo e sangrento!…
E embora sobre mim flamívoma suspensa
Em minh’alma os clarões fatais ela concentre
Eu suporto-lhe bem o flamejante baque
— Altivamente calmo — entrincheirando-me entre
Uma canção de Byron
E um cálix de cognac…
— Não há dor que resista ao som de uma risada! —
Depois, se me exarcebo!
E tremo e choro erguendo a prece à alma magoada
Mais me dói essa dor, mais esse mal é acerbo!
Assim — eu resolvi, indiferente e frio
Cheio de orgulho e spleen — como um banqueiro inglês!
Sepultar na ironia o pranto meu sombrio…
Por isso quando atroz na triste palidez
De minha fronte paira amarga ideia — eu rio!…
E quando pouco a pouco
Essa ideia me abate e vence-me alterosa,
De amargores repleta — eu rio como um louco…
E se ela ainda dói mais e forte e tenebrosa
Sói ao último ideal de minh’alma aniilar,
E vencer-me de todo
Então — eu me ergo mais — e — desvairando o olhar
— Divinamente doudo —
Eu rio, rio muito e rio — até chorar!…
[Há nos teus olhos escuros]
Há nos teus olhos escuros
Tantas centelhas, que ao vê-las
Penso na treva e nos brilhos
Das noites cheias de estrelas…
Penso em cousas singulares,
Indagando entre delírios:
Por que é que os céus ainda brilham?
Por que não se apaga Sírius?
Os lêmures
Ó minha musa — imaculada e santa!
Deixa um momento os sonhos teus benditos
Despe os teus véus de noiva do ideal
Deixa-os, despe-os e canta
Sobre as ruínas trágicas do mal
As almas arruinadas dos malditos!…
Estâncias
(V. Hugo)
Meu pobre coração tão cedo aniquilado
Na ardência das paixões – ó pálida criança –
Revive à doce luz do teu olhar magoado
E cheio de ilusões, de crenças e esperança
Faz o castelo ideal das louras utopias
– Com os brilhos desse olhar e o ouro de tua trança! –
Quando sobre as sombrias
Ondas – vasto luar esplêndido se espalma
De todo o seu negror, arranca as ardentias
De teu olhos assim à luz divina e calma
Dimanam – cintilando – as ilusões e os versos
Das sombras de minh’alma…
E sonho e canto e rio e me deslumbro… imersos
– No místico luar que sobre mim derramas –
Fulguram como sóis meus ideais dispersos!…
Fulguram como sóis – entre sonoras flamas –
Partindo no meu peito a tétrica penumbra
E o silêncio fatal de dolorosos dramas…
E tudo hoje antes tem luz, tem voz – deslumbra –
Pois – tal como um ideal – uma canção ressumbra –
E em cada uma canção – o teu olhar cintila…
S. Paulo – Janeiro de 1888
Mundos extintos…
que, apesar da vertiginosa
velocidade da luz, elas se
apagam, e continuam a brilhar
durante séculos.
(Um astrônomo qualquer)
Morrem os mundos… Silenciosa e escura,
Eterna noite cinge-os. Mudas, frias,
Nas luminosas solidões da altura
Erguem-se, assim, necrópoles sombrias…
Mas p’ra nós, di-lo a ciência, além perdura
A vida, e expande as rútilas magias…
Pelos séculos em fora a luz fulgura
Traçando-lhes as órbitas vazias.
Meus ideais! Extinta claridade —
Mortos, rompeis, fantásticos e insanos
Da minh’alma a revolta imensidade…
E sois ainda todos os enganos
E toda a luz, e toda a mocidade
Desta velhice trágica aos vinte anos…
Lirismo à disparada
Eu sou por certo um ente abominável
A quem nenhuma penitência salva
Não tiro o meu chapéu à Divindade…
“E dizem que perdi a Estrela d’Alva”…
E tão viciado que ainda hoje, à noite,
Um pelotão de serafins risonhos
Em pleno boulevard da Via Láctea
Prendeu-me porque eu ‘stava ébrio… de sonhos!
Escândalo no céu! Os santos todos,
Perdendo as composturas consagradas
Atiravam-me estrelas, como pedras,
E riam-se a bandeiras despregadas.
Um desacato escandaloso… e como
O supremo Fiscal, nessa emergência,
Não conteve os seráficos garotos,
Denunciei à polícia a Providência.
Fiz bem. A rixa é velha. Há muito tempo
Que eu, o Voltaire e o Comte nem o intento
Podemos ter de passear à noite
Na grande praça azul do Firmamento.
Se o fazemos, apagam-se as lanternas
Dos sóis, num pronto e momentâneo eclipse,
E vemo-nos nas trevas, entre os coices
Da besta divinal do Apocalipse!
Não vou mais lá, por isso… Mas que importa…
Por que falar nesses sucessos tristes?
Trancam-me os céus: eu tenho o teu olhar…
Nem me faz falta Deus – pois tu existes!
D. Quixote
Assim à aldeia volta o da triste figura
Ao tardo caminhar do Rocinante lento;
No arcabouço dobrado um grande desalento,
No entristecido olhar uns laivos de loucura.
Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura,
Do ideal e da fé, tudo isto num momento,
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre risos boçais do bacharel e o cura.
Mas certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente,
Contigo a sorte ao pôr neste teu cérebro oco,
O brilho da ilusão do espírito doente;
Porque há cousa pior: é o ir-se a pouco e pouco
Perdendo qual perdeste um ideal ardente
E ardentes ilusões e não se ficar louco.
Poema rude
Que tarde feia… sob um céu nubloso
O sol descamba – e rútilo, silente
Se embuça a pouco e pouco, vagaroso,
Na púrpura vastíssima do poente.
Sentindo a convulsão que além se externa
No espaço, – aonde a tempestade freme
– Como um leão num antro de caverna…
Que tarde feia….imenso cataclismo
Imprime em tudo um rígido desmaio:
– Desce dos céus estranho hipnotismo
Nas vibrações elétricas do raio!
A terra, os ventos passam pelos ares….
Um Dies ira aterrador entoando
Nas arpas majestosas dos palmares.
E a noite desce pavorosa… o assomo
Dos haustos da procela – rudes, maus.
Agrupa as nuvens em desordem, como
– A miniatura trágica do caos!
Fera, ante essa tormenta atroz que a assombra
Jaz a estas horas na mais funda brenha
Pávida e muda – a estremecer na sombra.
Mas no entretanto – que contraste! – em frente
A todo estrago que do céu deriva
Cinde os espaços, repentinamente
Alta e feliz uma canção, festiva…
Tão descuidado assim pelas estradas,
Que uma canção ao fragor deixa entregue
De tal modo ao fragor das trovoadas?
O índio volta da caça – e inda distante
Fita sorrindo o seu casebre branco,
Tão pobre mas tão alto! Erguido adiante
Da branca serra sobre o abrupto flanco!
Calcando da choupana a estreita trilha
De seu triste viver a agrura imensa
Na doce luz do olhar da pobre filha…
E a tempestade erguendo a fronte aos céus
Envolta numa auréola de relampos,
Fulva – incendeia a catedral de Deus!
A terra, os ventos passam pelos ares,
Um Dies iræ aterrador entoando
Nas harpas majestosas dos palmares!
Ele então para – a contemplar, tremente,
A convulsão estranha do infinito…
Depois fita a choupana…
Ásp’ro, fremente,
Em sua boca brônzea estala um grito!
Um raio ali tombara… mui mais lesto
Do que o tufão que nas quebradas freme
Chega ao local do pobre lar honesto
Mas ao chegar – apavorado – treme!
Naquele peito quanta dor se ceva!
E sua filha? Uma lufada passa
E tudo que ele adora em frente leva…
Uma lágrima então – sangrenta e fria –
Extingue a luz do seu olhar sem calma:
– Última estrela – a estrela que fugia
Da noite despovoada da sua alma…
E se empertiga heroico – da vingança
Empanam-lhe a razão os frios véus,
O arco sopesa, para o largo avança:
“Tu vais morrer, Tupã!”
E fecha os céus…
As Catas
1903
Que outros adorem vastas capitais
Aonde, deslumbrantes,
Da Indústria e da Ciência as triunfais
Vozes, se erguem em mágico concerto;
Eu, não; eu prefiro antes
As Catas desoladas do deserto,
— Cheias de sombra, de silêncio e paz…
Eu sei que a alma moderna — alta, e feliz,
E grande, e iluminada,
Não pode sofrear estes febris
Assomos curiosos que a endoudecem
De ir ver, emocionada,
Os milagres da Indústria em Gand ou Essen
E a apoteose do século — em Paris!
Não invejo, porém, os que se vão
Buscando, mar em fora,
De outras terras a esplêndida visão…
Fazem-me mal as multidões ruidosas
E eu procuro, nesta hora,
Cidades que se ocultam majestosas
Na tristeza solene do sertão.
Cidades ante as quais são como anãs
As Londres extensíssimas
E as Babilônias, Bagdás pagãs —;
Tão colossais, tão cheias de grandeza
Nas construções amplíssimas
Que as contemplando eu penso na rudeza
De uma raça já morta de titãs!
E abandonadas… no entretanto quem
As observa, no extremo
Dos horizontes afastados, tem
O religioso espanto e o extraordinário
Êxtase supremo
De um muçulmano austero ou de um templário
Diante de Meca ou de Jerusalém…
Divisa então soberbos coliseus
Templos de forma rara —
Amplas mesquitas, vastos mausoléus
E góticas igrejas tão imensas
E tão frágeis, que para
Compreendê-las, cremo-las suspensas
Por ignota atração vinda dos céus…
Mas não as procureis vós que as fitais…
Fogem da humanidade
Essas necróp’les de silêncio e paz…
Se vos aproximardes, bruscamente,
Extingue-se a cidade
E fica-vos adiante unicamente
Uma porção de argila e nada mais…
No entanto, atulmutuaram multidões
Dentro delas, outrora,
E ao ritmo de esplêndidas canções
Levantou-lhes os muros triunfantes
— Heróica e sonhadora —
A coorte febril dos Bandeirantes,
Nas marchas triunfais pelos sertões
Mas passaram — e o solo que tremeu
A seus passos, deserto,
— Revolto e imoto — é como um mausoléu
Imenso que pelo sertão se estende…
Calcando-o sentis, perto,
Um deslizar sinistro de duende:
— O fantasma de um povo que morreu…
Viajantes que rápidos passais
Pelas serras de Minas,
Vindos de fulgurantes capitais,
Evitai as necrópoles sagradas,
Passai longe das ruínas
Passai longe das Catas desoladas
Cheias de sombra, de tristeza e paz…
Campanha, 1895
Página vazia
Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo inda na mente
Muitas cenas do drama comovente
Da Guerra despiedada e aterradora,
Estrofe, ou canto ou ditirambo ardente,
Que possa figurar dignamente
Em vosso Álbum gentil, minha Senhora.
Cedestes-me esta página, a nobreza
Da vossa alma iludiu-vos, não previstes
Perguntaria: “Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes”?!
Bahia – 14 de outubro de 97
O paraíso dos medíocres (Uma página que Dante destruiu)
Perto do inferno existe uma paragem
Onde cai monótona e ressoa
Uma torrente enregelada e dura
Sulcando a pedra na erosão eterna.
Fomos por ela em fora, lento e lento
Vacilantes subindo. Mas no alto
Precisamente quando a minha vista
Divisava dos céus tão anelados
Um fragmento longínquo, vi-me só.
Inopinadamente se evadira
O bucólico guia que me dera
O clarão de sua alma incomparável
Entre as sombras dos giros infernais.
Então alucinado, o peito opresso,
A fronte em fogo, onde batiam ríspidas
As lufadas friíssimas do abismo,
Atirei entre os ecos apagados
Das vozes do demônio uma súplica:
“Virgílio”. E estas três sílabas belíssimas
Rolaram longamente no silêncio
Como se no silêncio desabasse
Uma falange de cristais partidos
Mas não as repeti: de uma vereda
À esquerda, junto ao círculo, Judas,
Vi que surgiu uma figura estranha,
Homem ou gênio, e todo desgracioso
Lembrava um sambenito: a fronte nua
Escampada e brunida completava
A face cheia e lisa sem refegos,
Sem um só desses vincos, dessas rugas
Que são os golpes do buril do espírito
Sobre os blocos de músculos e nervos
Sorria e eu vi seus dentes magníficos
Numa expressão alvar. Aproximou-se
Disse-lhe então: “Quem sois? Por que acudistes?
Quando eu chamei por outro tão diverso?”
Teve um momo adorável, agitou
Num gesto longo de elegância altiva
A véstia e o porte ereto e o olhar fulgente
E o rosto novamente derramando-se
Num riso imbecil e triunfante
Volveu pondo-me ao ombro a mão cuidada:
“Sou Marcellus Pomponio, o purista
O guia que te trouxe, esse Virgílio
Esta ama-seca que apelidas tanto
Não me suportaria; eu sou capaz
De mostrar solecismos nas Geórgicas…
Fez bem: fugiu. E tu certo conheces
O gênio prodigioso que venceu
Certa causa notável, apontando
Um erro de gramática nos autos:
Sou eu. Sou imortal… Tu és feliz,
Lucraste com a troca. Folga, ri
Agradece ao teu Deus e dá-me o braço.
Eu vou mostrar o que outrem não faria
Já viste o inferno, vou levar-te agora
Ao purgatório e ao céu. Mas antes deles
Há uma terra ideal onde domina
A santa mediania da virtude
E se chama o ’Paraíso dos Medíocres’”.
“É ali” disse. E depois me foi levando
Por um trilho escarpado. A breve trecho,
Vingando um cerro abrupto, tive em frente
O mais belo país que eu inda vira
Que terra encantadora…
O meu olhar
Desatou-se folgando na amplitude
Dos horizontes vastos onde eternos
Fulgores de uma primavera eterna
Se revezam co’as noites estreladas.
[……………]
Armadas de frutos
De um lado o Atlântico e de outro lado as serras
Longas, indefinidas, perlongando-o;
E aquém das serras nos planaltos largos,
Um mundo ainda ignoto! Os rios longos
Recortam-no39 profusos, ora calmos
Volvendo a correnteza imperceptível
Ora cheios, rolando nos aclives
O soberbo estridor das cachoeiras…
As grandes matas verde-negras vastas
Armadas de frutos e de flores
Desafiam do azul as pompas todas
(Que terra encantadora… Mas enquanto
O meu olhar se desatava – livre
No desafogo dos espaços amplos
O ridículo imortal tolhia o passo
E imóvel sobre o cerro em que jazíamos
Abarcava num gesto o espaço todo:
“Conforme vês a terra é larga e grossa)
E atestam na pujança com que surgem
A riqueza de um solo incomparável
Em que o cultivador sem mais resguardos
Com algumas foiçadas e um bocejo
Garante o pão à prole e pode dar-se
Ao culto sacrossanto da Preguiça.
E nada o preocupa: a fauna é frágil,
Traiçoeira e cobarde; não há tigres
Régios tigres listrados: nem leões,
Nada das formas colossais e rudes
Feitas para guardarem, consorciadas
A feridade e a força… Tudo médio
Tudo uma redução do que há alhures
O elefante é tapir tardo e medroso
O tigre de Bengala é a suçuarana
Cobarde e fugitiva; o orango bruto
É o sagui femíneo e pulha; e a capivara
O hipopótamo esquivo das lagoas…
E tudo médio… a natureza toda
Numa mediania inalterável…
As mesmas forças naturais que além
Rompem em cataclismos formidáveis
Criando a geologia o traço estranho
De um drama esquiliano, aqui, é calma.
Não há vulcões e os mesmos terremotos
Que subvertem cidades noutras zonas
Amortecem-se, inúteis, embatendo
Na massa de granito desta terra…
As montanhas – bem vês – não têm altura
As maiores são cerros noutras partes
Achatam-se alongando-se, alongando-se
Sem o arrojo de um píncaro que enteste
Com o menor dos píncaros dos Alpes…
Nas florestas enormes não procures
O cedro colossal, ou o carvalho
Ou o plátano altivo que alevanta
Às nuvens uma vida de mil anos
Não lhes permite o surto o afago, atroz
Terrível das lianas, das aráceas
Que os apertam, maneiam e derrubam
De sorte que as florestas como os rios
Como as montanhas, como a terra toda
São grandes só por um estiramento!…”
Disse e eu vi pela primeira vez
O clarão ideal de uma ironia
Dando-lhe ao rosto hilar um tom mais sério.
E prosseguiu:
“Aqui, o grande é o chato!
Tudo num plano horizontal é enorme
Tudo num plano vertical é mínimo
A pedra, o vegetal, e o […]to e o homem…”
E repentinamente aquele rosto
Onde um ríctus sardônico pusera
A linha ideal desse sarcasmo ríspido
Que é a mágoa triunfante dos eleitos
Porque é a alegria trágica dos fortes,
Aquele rosto desmanchou-se todo
No desmandibulado destempero
De uma risada à toa:
“Homem ingênuo!”
[……………..]
Mal a ouvi
Prendeu-me o olhar um quadro nunca visto:
Numa clareira, em frente, repontavam
Uns homens singulares… Que vestidos!
Nem clâmides, nem togas, nem briais
Consorciando a candura dos arminhos
Com o varonil das púrpuras brilhantes.
Pretos. De preto todos no afogado
Das vestes ajustadas pelos membros…
[……………..]
Vinham calmos; nem gestos sacudidos
Nem vozes imperiosas… Passos lentos
[……………..]
[Nestes três dias esplêndidos]
Em que o Prazer tudo arrasa
Desde o cristão ao ateu,
Quem se sente neurastênico
Faz como eu,
Fica em casa.
Espectador, Rio de Janeiro, 23 de setembro de 1883
Carta a Penseroso[ 1 ]
Meu velho
Eu te confesso, em bem crua agonia,
Não posso continuar a tua poesia… [ 2 ]
Cintila muito a cruz que tu — sempre bondoso,
A meu cérebro deste — tão frio, tão trevoso —
Eu não a posso erguer pra em belo itinerário
— Suarento de estrofes — até esse Calvário
— Glória — levá-la audaz… p’ra minha fronte fria
Beijar, a Magdalena sublime — a Poesia,
Não tenho e ouve: só a pobres rastros sigo;
Há muita luz nos teus — eu não as calco, amigo.
Depois… o “caboré” que pelas “cercas” dorme
Da águia, jamais, seguir consegue, o voo
enorme…
O lago, por mais que o morda o vento insano,
Não saberá rugir, falar como o Oceano!…
O “Rozendo”, por mais que fite a azul tela
Jamais se alteará à uma ode de Varela!
O “Rosa”, por mais que tenha da turba os salves
Jamais se alteará a um verso de Castro Alves…
O “Hudson” não calca um rastro de Tobias…
E nem o “Solidão” (!) um de Gonçalves Dias…
E — mais — nosso “Banana” — o pobre bonachão
Não, não pode acabar um verso de Garção!…
E p’ra acabar de minha consciência o delírio;
Do Sol a obra — não acaba o pobre círio!
D’este que maldizendo de seu talento a sina
Respeitoso, grave e trêmulo se assina
Ícaro
Evolucionista, n. 10, 31 de agosto de 1883
Cláudio Manuel da Costa[ 3 ]
(A B. Pinto)
É bem sinistro o cárcer’… suas paredes frias
Geladas por cruéis soluços de agonias
Frias gotas porejam de negregada cor!…
— São como que o suor — horrível da desgraça
Que por elas fatal e cruenta perpassa
Plantando nos granitos a semente da dor!
É bem sinistro o cárcer’ — o padecer exprime
Dentro o silêncio atroz a voz fala do crime
E n’um abraço a treva se liga à solidão!…
Cintila em cada lado uma estrofe de um pranto
Só — ergue-se um fatal remorso em cada canto
E por todo ele ruge a voz da maldição…
É bem sinistro o cárcer’ — e como uma ironia
A toda aquela treva esmagadora e fria
Uma lâmpada brilha em quase morta luz —
— Qual lágrima de sangue na face atroz da treva
E a trêm’la claridade — que trêmula se eleva
… Do mísero galé treme nos ombros nus!…
É velho o desgraçado — curvado e mesto pensa
E de seu triste ser a dor cruel, intensa
Ressuma-lhe na fronte — a fria palidez! —
E pensa o infeliz — e trêmulo e curvado
Talvez nos risos seus — que vivem no passado
Nas mortas ilusões — nos amores talvez…
E pensa o velho vate, no seio da sol’dade,
Talvez no seu porvir sublime — Eternidade
E seu novo ideal talvez creie [sic] — na Cruz —
E sua alma deixando um presente só treva
As pujantes paredes rompendo audaz se eleva
E mergulhar-se vai n’um passado só luz!…
E o velho vate pensa — e de morena amante
A lembrança talvez, a imagem soluçante
Agora lhe debruce por sobre o coração!…
Pensa, é triste a saudade — o divinal anseio —
Do passado soluça os risos em seu seio!
Em seu seio senil só gelo e solidão…
……………………..
E. Cunha
(Continua) [ 4 ]
A Infância e o Gênio[ 5 ]
inda percorre o proscênio,
inda desperta emoções!
R. da Costa – Cintilações –.
I
Rompia a primavera: O triste inverno
– Velho inimigo do rumor festivo
Da quadra ardente que semeia brilhos –,
que despe os – campos – espalhando – névoas,
Fugira envolto em neblinosos mantos
Deixando um traço de ruína e morte
N’aqueles ermos – orvalhados ninhos –!
Entanto… como um astro que se apaga
No sudário trevoso da procela
Pr’a rebrilhar mais fúlgido e sublime
Na esplendidez do azul – imaculado,
Assim aos poucos revivia tudo
Como se fora uma porção de vida.
Ou hálito de arcanjo e mocidade
Que resvalasse ali, brando e suave!
II
Rompia a primavera: O céu sereno
Côncavo, imenso, puro, resplandente,
Como o fundo de um lago cristalino
Constelado de pérolas brilhantes,
Ou como um branco cisne vaporento
À flor de uma lagoa azul – dourada,
– Enchia-se de uns tons alaranjados
Raios, lampejos de arrebol fulgente –!
Penseroso.
(Continua).
Espectador, Rio de Janeiro, 5 de agosto de 1883
III
A natureza – cismadora amante –
– Anjo, que perde n’algidez do inverno
As brancas asas perfumosas, meigas,
E chora o pranto luminoso e casto
quando o crepúsculo – lutulento crepe –
Nubla-lhe o brilho, lhe sombreia a fronte,
– Cantava alegre uma canções de luz
Como se fora uma menina inquieta
Douda, estouvada que brincasse, rindo,
Uns risos frescos – argentinos pipios
D’ave sonora – que seduzem, prendem, –
Na curva agreste de uns caminhos ermos!
IV
E a primavera despontava ardente
– Perdida estrofe de fulgor divino! –
O sol – poeta sempre altivo e grande –
Ora surgia majestoso e belo
Vibrando n’harpa d’alvorada eólia
Mágicos hinos que faziam bem;
Ou escrevia com seus fulvos raios
A triste página de um poema – o ocaso
Sepulcro aberto pela mão da noite!
V
Os vastos campos – perfumosos templos –
Em que se oculta a poesia flórea,
E os bons idílios juvenis da criança;
Onde s’expande a solidão – que é bálsamo,
A paz que eleva, um coração que fala,
Um’alma virge’, uma porção do céu;
Onde se encontra lenitivo enorme
À dor que fere, às ilusões que matam,
Ao pranto acerbo, à dolorida lágrima…
Inundavam-se todos de perfumes
– Vozes discretas de inocentes flores! –
VI
E as mariposas, criancinhas loucas,
E os invejáveis colibris travessos
– Flocos de neve que brincando – passam
N’alva corola de mimoso lírio –
Voavam céleres por aqueles ermos
Como um punhado de gentis meninas!
Cintilavam estrelas pela terra,
E as flores vicejavam… lá no céu!
VII
Era tudo harmonia! Quando a noite
– Poetisa funérea dos espaços –
Arrancava da lira do crepúsculo
As doces harmonias do repouso…
As brisas – como risos de criança –
Corriam mais e mais… languidamente
Segredando uns mistérios sussurrantes
Às flores – companheiras de seus brincos!
Penseroso
(Continua).
Espectador, Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1883, p. 4
VIII
E a primavera rebentava em hinos
Por toda a parte! No sertão, no campo,
No lago calmo, no saudoso frêmito
Das cachoeiras; no voar dos pássaros,
Na luz da tarde, no arrebol dourado
Cheio dos prismas de encantada aurora,
– Quantos poemas se encontravam, quantos!?
IX
Quantos poemas se encontravam, quantos,
No azul ridente do estrelado campo
Onde fulgura – sempre eterna e bela –
A foice d’ouro – colocada ali!… [ 6 ]
………………………….
Nas maravilhas dos florentes ermos
– “Largos espaços em que dorme o sol” –; [ 7 ]
No frágil lírio – que espargindo aromas –
Desbrocha sob o cristalino pranto
Que as vaporosas madrugadas choram
Nos leitos rutilantes do arrebol…
– quantos poemas se encontravam, quantos!…
X
Em cada aurora que do céu tombava
– Clarão perdido de um olhar de Deus! –
Em cada noite constelada e calma
– Grilhão de trevas algemando a terra –,
– Véu de tristeza colocada à face
Da natureza – poetisa ardente –
Um’harmonia de expressão celeste
Meiga soava alevantando as almas!
Penseroso
(Continua).
Espectador, Rio de Janeiro, 9 de setembro de 1883
XI
Era tudo harmonia! quando a aurora
Pelos céus esparzindo a rósea coma
– Como uma criança irrequieta e loura
Fechava os olhos das silente’estrelas –
E desfiava as per’olas – rosada e bela –
Do seu colar, do seu colar de luz
Por sobre o dorso das curvadas serras
Por sobre o seio dos tranquilos vales
E sobre a fronte das virgíneas matas!…
…E sobre as frontes das virgíneas matas
– Santuários puros da criação –
Onde o sabiá – poeta das flores –
Da ingazeira no orvalhado galho
Trêmulo pousado – modula triste
Suas canções tão ternas, gemedoras
No gelado seio da solidão…
Era tudo harmonia! quando a aragem
Tépida entoava maviosos hinos
Uns hinos à luz – uns hinos ao dia
Dedilhando – tremente e vaporosa
As perfumosas – orvalhadas cordas
Das palmeiras – as harpas do sertão!
XII
“E a primavera despontava ardente”!
– Rósea falena lá dos céus fugida
Nos céus roçava as purpurinas asas
As rosadas asas – de auroras feitas – !
Descia à terra – derramando risos
N’um beijo a corola mimosa abria
E tingia n’um beijo as belas pétalas
Do fresco e belo nenúfar cheiroso…
Do fresco e belo nenúfar cheiroso
– Riso nascido à branca flor das águas – !…
No verde cálix entornava meiga,
Das flores a alma: o virginal perfume!…
XIII
E despontava ardente a primavera
– Tapiz de rosas sobre o chão do céu –
Despontava, ridente e luminosa
De auroras c’roando a fronte do céu
De risos enchendo os seios dos ares
De flores ornando a fronte das matas…
Ícaro
(Continua).
Espectador, Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1883
XIV
A infância é o riso vaporoso, ingênuo,
Que prende as almas e aniquila o pranto!
Ave impoluta, – tem no lar – um ninho
Onde velada por olhar sagrado
Brinca expansiva n’um feliz encanto!
XV
A infância é mais: é uma loucura doce,
Nota festiva, – harmonioso trio!
– Estrela d’alva luminosa e casta,
Reflete os raios de uma eterna aurora
No céu da vida nebuloso e frio!
XVI
A Infância e o Gênio são gentis poemas
Escritos pela mão do Eterno Ser!
Que páginas risonhas, graciosas,
Misturam-se nos cantos que extasiam
Como se fossem pétalas de rosas!
XVII
Que lampejos do céu, quantos sorrisos,
– Vago indício de esplêndido fulgor –
Não se ocultam ali – nos dous poemas
Escritos pela mão do Criador!
Penseroso
FIM
[ 2 ] A poesia a que se referia o meu desditoso amigo e que deu origem à “Carta” acima foi “A Infância e o Gênio” publicada no “O Espectador”. Euclides, descontados os excessos de gentileza e imerecidos conceitos a mim dirigidos, afinal colaborou comigo emprestando-me o brilho do seu talento. Dos íntimos camaradas daqueles saudosíssimos tempos do jornalismo no “Evolucionista”, entre outros existem ainda Benedito Hipólito, atual Diretor da Recebedoria do Rio de Janeiro, e Honório Nascimento, poeta e guarda-livros…
Que não vejam nisto tudo, os zoilos implacáveis, assomos de vaidade.
Quem nasceu pinto…
(Nota de Boaventura Pinto na ocasião da republicação do texto em Anuário Ilustrado do Jornal do Brasil para 1910, Rio de Janeiro, n. 8, 1909, p. 277.).
[ 3 ] Publicado originalmente em Evolucionista, n. 10, 31 ago. 1883, p. 3. Transcrito sem as notas e comentários de: BERNUCCI, Leopoldo M.; RISSATO, Felipe Pereira. Engenho, arte e parceria: quatro inéditos de Euclides da Cunha. Revista do NELE (Núcleo de Estudos do Livro e da Edição/ USP), Cotia, São Paulo, Ateliê Editorial, n. 5, 2016, pp. 227. Ver também Carta a Penseroso. N. do E.
[ 4 ] Segundo Leopoldo Bernucci e Felipe Rissato, “sendo o n. 10 o único exemplar encontrado do raro periódico Evolucionista, não foi possível fornecer ao público a poesia completa…” (Engenho, Arte e parceria: quatro inéditos de Euclides da Cunha, Revista do NELE, Núcleo de Estudos do Livro e da Edição/ USP, Cotia, São Paulo, Ateliê Editorial, n. 5, 2016, p. 227). N. do E.
[ 5 ] Ver também Carta a Penseroso. N. do E.
[ 6 ] Victor Hugo – Legenda dos Séculos. N. do A.
[ 7 ] Émile Zola – Nana. N. do A.
CUNHA, Euclides da. Poesias esparsas. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Poesias. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/poesias/esparsas/. Acesso em: [data]. Reprod. CUNHA, Euclides da. Ondas e outros poemas esparsos. In: Obra completa. ed. org. por Afrânio Coutinho. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. v. 1. Cotejado em 2020 com Poesia reunida. org., estabel. de texto, introd., notas e índices por Leopoldo M. Bernucci e Francisco Foot Hardman. São Paulo: Editora UNESP, 2009.