A Bolívia, por comprazer ao desejo expresso da nação colitigante, parte da base de quase mil quilômetros, estendida entre o Madeira e o Javari, da linha divisória do Tratado preliminar de Santo Ildefonso, e reclama todo o território que lhe demora ao sul, limitado a oeste pelo curso do Ucayali até aos formadores do Urubamba e vertentes meridionais do Madre de Dios à esquerda do Inambari, reduzindo a máxima expansão oriental dos domínios peruanos à meridiana do rio Suches, e excluindo-os, inteiramente, dos vales amazônicos que se sucedem do Juruá ao Mamoré. O Peru, baseando-se, fundamentalmente, na mesma linha, exige os mesmos terrenos dilatados, extremando-os no levante com os thalwegs do Madeira e do Mamoré até à foz do Iruani, e ao sul com os do Madidi e Tambopata, por maneira a incluir no pleito largas superfícies de terras brasileiras, ao mesmo passo que agrava o hinterland boliviano, recalcando-o nas altas nascentes e cursos médios do Mamoré e do Beni.
O esboço cartográfico anexo pormenoriza os principais segmentos do irregularíssimo quadrilátero litigioso – cujas áreas se deduzem, com segurança, em números redondos:
Região ao sul do Madre de Dios | 93.000 km |
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Região entre o Madre de Dios, Abunã, Acre Meridional e paralelo 11º | 73.000 km |
Região a oeste da linha Inambari-Javari | 130.000 km |
Região ao norte do paralelo 11º até a linha de Santo Ildefonso, conforme as últimas pretensões peruanas | 424.000 km |
TOTAL | 720.000 km |
Destes algarismos derivam-se paralelos que os tornam ainda mais eloquentes. Assim, a zona controvertida ultrapassa as superfícies de nossos Estados de Minas, Rio de Janeiro e Espírito Santo, que somadas atingirão no máximo a 690.000 quilômetros quadrados; avassalaria o bloco continental, que se constituísse juntando um terço da Espanha e toda a França; abrange mais do triplo do Uruguai; e corresponde a 25 Bélgicas – o que a torna, de acordo com a densidade demográfica da última, capaz de uma população de 180.000.000 de habitantes, quádrupla da atual da América do Sul, dupla da atual dos Estados Unidos da América do Norte.
Não prolonguemos os confrontos.
Repregamo-los, adrede, de numerosas cifras, por eliminar quaisquer exageros, que os dispensa a realidade surpreendente. O que se vê, e se mede e se calcula, geometricamente, a planímetro e a régua, é a base física capaz de por si só conter uma enorme nacionalidade, e ao atentar-se que precisamente nos seus recessos, ainda não de todo conhecidos, se efetua nestes dias um incomparável povoamento intensivo, atraído pela privilegiada flora geradora da matéria-prima entre todas mais crescentemente exigida pela indústria moderna – põe-se de manifesto que o debate arbitral, em andamento, não entende apenas dos interesses imediatos das Repúblicas litigantes, senão também dos que se ligam, sob várias modalidades, à economia geral, à política, e até à civilização de todo o continente.
Daí, o interesse que desperta é a legitimidade da sua discussão, ao menos durante a litispendência, antes da sentença do juiz soberano e inapelável. Além disto, a este mesmo árbitro não lhe bastará a massa formidável de documentos cartográficos e históricos fornecidos pelos Governos interessados, apequenando-se na tarefa medíocre e exaustiva de contrastar um sem-número de linhas embaralhadas, e datas no geral inexpressivas; ou derivando ao pecaminoso anacronismo de agitar – inteiriços, enrilhados e rígidos – alguns velhos documentos coloniais, diante das exigências mui outras e das fórmulas mais liberais do direito atual entre as nações.
Embora, adstritas à praxe corrente nos deslindamentos hispano-americanos, as duas partes contratantes acordassem no submeter-lhe ao juízo os territórios que em 1810 compartiam as jurisdições das Audiências de Charcas (Bolívia) e de Lima (Peru), de modo que a sentença se haja de calcar, antes de tudo, sobre as antiquíssimas Cédulas reais, os dizeres emperrados da caótica Recopilación de Leys de Indias, ou sobre as últimas Ordenanças de intendentes, de 1792 e 1803, é evidente que estas caducas, e não raro contraditórias, resoluções do mais retrógrado imperialismo da história, retardatárias de séculos, no fixarem as raias meramente judiciárias, ou administrativas, das parcelas dos Vice-reinados do Peru e Buenos Aires, contravirão, em muitos pontos, aos limites políticos dos dous Estados constituídos mais tarde com o mais ruidoso repúdio das antigas instituições que os vitimavam.
Baste considerar-se que desde 1824, remate da independência de ambos, eles não jazeram num sequestro marroquino, ou chinês, próprio a justificar este transplante integral de tão remotas velharias para o nosso tempo. Formaram-se; evolveram; expandiram-se; e no discurso deste processo histórico, que foi o da organização de suas próprias nacionalidades, vincularam-se, já expressamente, mediante outras decisões e tratados, já pelo intercâmbio inevitável dos interesses e das idéias, a existência das nações limítrofes, determinando deveres e direitos mais legítimos, entre os quais se destacam os relativos aos próprios territórios, que se intentam deslindar com as vetustas barreiras vice-reais, num grande salto mortal de cem anos, flagrantemente violador de toda a continuidade histórica.
Assim, no tocante ao Brasil, ambas as nações litigantes, desde 1851 e 1867, até 1903, pleitearam, à saciedade por vezes, a situação e grandeza das extremas setentrionais e ocidentais daquelas terras. Em debates, em convênios, em tratados, explícitos, solenes, balancearam à luz de outros princípios os interesses recíprocos; e no se firmarem, quer pelos lados do Peru, quer pelos da Bolívia, novos marcos demarcadores, o que sempre se patenteou em todos os documentos, das notas ministeriais às derradeiras instruções aos comissários, foi sobretudo o abandono daquela mesma divisória de Santo Ildefonso – linha mais valiosa do atual litígio – que as duas Repúblicas, urna após outra, reconheceram de todo impropriada a erigir-se em diretriz predominante das novas raias divisórias.
Destruíram-na, ou alteraram-na. O Peru eliminou-a em 1851; a Bolívia transmudou-a na oblíqua de 1867. A imaginosa fronteira que jamais obtivera sanção definitiva das primitivas metrópoles interessadas – conservando-se na história mercê do próprio abandono em que permaneceu o trato mais desconhecido da América do Sul – extinguiu-se com o simples avance dos conhecimentos geográficos, sancionados pelas mais inequívocas convenções políticas e administrativas.
Entretanto, ressurge, de surpresa, agora. Dizem-no os recentes mapas oficiais peruanos, sobre os quais cabeceará, longos dias, o árbitro, no desenredo da questão monótona.
A barreira colonial renasce num majestoso traço imperialista, espichada, e deslocando-se para o norte, golpeantemente, em pleno seio da Amazônia. Depois de tantas resoluções debatidas, afirmadas e ratificadas em numerosos atos oficiais, a República sonhadora do Pacífico abandona, de improviso, os compromissos oriundos da sua existência autônoma e, abdicando a própria altitude política, volve, às recuadas, aos tempos em que ainda não existia, acolhendo-se à placenta morta da metrópole extinta, e revivendo, entre as singularidades desse processo retrospectivo, as fantasmagorias do Vice-reinado, cujo acabamento foi a primeira condição da sua própria vida.
O caso é original nos registros atrapalhados dos deslindes territoriais.
Realiza-se, em ponto grande, o fato vulgar do geômetra bisonho, a tontear entre os riscos perturbadores de um problema errado, apelando para o recurso extremo de apagar a lousa.
Mas não se passam com o mesmo desafogo as esponjas sobre os mapas.
Demonstremo-lo.
Contemplemos nos seus vários aspectos, desde o nascedouro abortício à caduquice lastimável – periclitante e vária, à mercê dos lápis arbitrários dos copistas de mapas – aquela risca fantástica e curiosa de uma espécie de geografia espectral.
E deduzam-se, depois, alguns corolários firmes.
Encravado nas terras questionadas, vê-se o território brasileiro do Acre – 191.000 quilômetros quadrados, que são a única circunscrição definida e segura na espessa penumbra geográfica onde em todos os sentidos as fronteiras se diluem.
O nosso interesse é manifesto.
Discutamo-lo.
Vejamos como os lados do amplíssimo quadrilátero litigioso se patenteiam bambeantes e incertos, ou desvaliosos, ou falsos, gravados de discordâncias inexplicáveis entre as posições ora sujeitas ao parecer arbitral e as que até bem pouco tempo lhes marcavam todos os documentos oficiais das Repúblicas contendoras.
E, sobretudo, notemos como a linha geodesia de 1777, assinalada entre o Madeira e o Javari – que por largos anos foi o pior embaraço da nossa diplomacia, e novamente a ameaça, pressuposta uma solução favorável ao Peru – apareceu desde O Tratado de 1750, em que pela primeira vez se delineou, com os mais evidentes estigmas de inviabilidade.
*
Sabe-se como se fez o Tratado de 1750.
Até aquele ano a geografia política sul-americana desenhara-se, romanticamente, adscrita ao meridiano de Tordesilhas, que entrava pelo Pará a sair em Santa Catarina, dilatando a soberania espanhola sobre quatro quintos do Novo Mundo. Ainda em pleno século XVII mapas refletem a ingênua e portentosa partilha. Todo o continente mal chega a escrever-se num título vago e magnífico – Peruvia – em sete maiúsculas dominantes, alinhadas, em curva apreensora, pelo centro das terras, desde Panamá ao cabo Horn.
A alguns cartógrafos não lhes satisfazia a impressão gráfica a entrar, tão viva, pelos olhos espantados ante domínios tão vastos. Aditavam, complacentes: “Peruvia, id est, novi orbis pars meridionalis.”
E a imaginativa desapertava-se-lhes no bosquejarem, pinturescamente, em toda a extensão das cartas, forros dos liames incômodos das fronteiras, tudo quanto o idealismo ensofregado da época engenhara a povoar as novas terras – da “Lagoa dourada”, ao norte, ao Regio gigantum, da Patagônia, ao sul, passando pelos monumentos da teocracia incomparável dos Incas. De sorte que, por vezes, mal lhes sobrava o espaço para a caricatura de três ou quatro caboclos desfibrados, no extremo oriental, onde se lia, em caracteres diminutos, inapercebido, ou relegado a expansão peninsular do cabo de São Roque, um outro nome, Brasilia, tendo, não raro, um subtítulo arrepiadoramente epigramático: Psitacorum regio.
Ora, na mesma época em que se romanceavam assuntos tão graves, em narrativas lardeadas de extravagantes devaneios, a situação real das paragens debuxadas era mui diversa. A linha imaginaria de Alexandre VI perdera, de fato, a retitude da sua definição astronômica, e partira-se, ou torcera-se, deslocando-se para o ocidente.
Não nos desviemos na tentativa impossível de enfeixar em poucas linhas um movimento histórico, onde incidem os mais complexos motivos das energias étnicas oriundas do caráter excepcional dos nossos mamalucos, as causas administrativas resultantes dos sistemas coloniais, de todo contrapostos, de Portugal e Espanha. O fato é que na plenitude da expansão povoadora, quando a sombria legislação castelhana enclausurava os colonos no círculo intransponível dos distritos, sob a disciplina dos corregedores, vedando-lhes novos descobrimentos, ou entradas, sob pena de muerte y perdimento de todos sus bienes [ 1 ], os portugueses avançavam mil léguas pelo Amazonas acima, e nas bandas do sul os nossos extraordinários mestiços sertanejos iam do Iguaçu as extremas do Mato Grosso, perlongando o valo tortuoso e longo do rio Paraguai.
Os paulistas desarranjavam toda a geografia política sul-americana.
Desde o alvorar daquele século delatavam-nos a metrópole castelhana as vozes alarmadas dos missionários e dos Vice-reis, persistentes, clamantes, sucessivas, em cartas, em ofícios, em expressivos informes, que adensados num livro seriam a mais fiel apologia da raça nova e triunfante, naquele irromper tão de golpe e já apercebida de atributos surpreendedores para a conquista da terra. Porque naquelas missivas angustiosas, incontáveis, refletindo a preocupação exclusiva de todos os delegados coloniais, martela, monotonamente, um estribilho único. Este: providências e medidas urgentíssimas “a contener los portugueses del río de S. Pablo…” E quando cessa é para ceder a variantes piores: em 1638, por exemplo: o licenciado Presidente da Audiência de Charcas, depois de descrever a marcha da invasão, sobrestante no território de Moxos e com energia virtual capaz de a conduzir mais longe, sacudiu, irreverentemente, a sonolência respeitável do venerando Conselho das Índias com uma conjectura apavorante:
…puede suceder que ellos se apoderen de las cordilleras del Itatim, y sean señores de todo el corazón del Pírú!…
Seriam infindáveis transcrições deste teor.
Abreviemos.
O Tratado de 1750 surgiu imposto por estas conjunturas prementes, que ele mesmo denuncia. Foi a glorificação da mais extraordinária marcha colonizadora que se conhece, desencadeada para o poente e apisoando os mais rígidos convênios, que se pactuaram entre Tordesilhas e Utrecht. Sancionou o triunfo de uma raça sobre outra. O que se viu, concretamente, maciçamente, depois da sua assinatura, sob o carimbo esmagador do fato consumado, foi que uma crescera, triplicando os primitivos domínios, e que a outra diminuíra, ou recuara, a abrigar-se, assombrada, no espaldão dos Andes.
E o seu efeito predominante, o seu significado imperecível, consistiu, essencialmente, em deslocar, pela primeira vez, das relações civis para as internacionais, o princípio superior da posse baseado na capacidade para o domínio eficaz e povoamento efetivo das novas regiões.
Porque no tocante as linhas limítrofes, esboçadas, foi vacilante e dúbio.
A sua exegese está nas minutas, cartas, propostas, contrapropostas e proêmios, que se cruzaram entre Aranjuez e Lisboa, na esgrima magistral do espírito vibrátil de Alexandre de Gusmão e a diplomacia cautelosa de Carvajal y Lancaster. E deletreando-os, o que sobretudo se destaca são as incertezas de ambas as metrópoles, na partilha do continente, subordinando-o às divisas naturais, mal definidas ou confusas, no imperfeito dos conhecimentos geográficos.
Ora, entre todas elas, pelo correr da extensa orla fronteiriça, desde Castillos Grandes aos contrafortes de Parima, sobrelevava-se, sobremaneira indecisa, principalmente a que se devera rumar da margem esquerda do Madeira em direção à direita do Javari.
Nos demais segmentos da enorme divisa os pareceres acentuavam-se em traços mais ou menos firmes. Ali dispartiam, duvidosos. Alexandre de Gusmão, desde o começo das negociações, em 1748, ao instruir o plenipotenciário Visconde de Vila Nova de Cerveira, definiu aquele trecho como “o mais difícil de toda a demarcação de limites”; e confessou que todo o material existente a elucidá-lo consistia numa pequena carta das missões de Moxos, que traz o tomo duodécimo “des lettres édifiantes“, e cm dous roteiros de sertanistas nossos, que até lá se tinha avantajado; concluindo que era forçoso se contentassem com tão escassos elementos, porque se houvessem de aguardar “os que se mandassem formar no mesmo país, ficaria a conclusão do tratado para as calendas gregas”.
Por seu turno o Plenipotenciário espanhol, em longo ofício àquele titular, depois de formular o seu parecer quanto ao melhor rumo da linha na paragem perturbadora, acrescentou, nuamente, que o alvitre era o mais claro que se lhe afigurava, “conveniendo en que de la misión de Santa Rosa (Guaporé) abajo, hasta ei Marañón, todos vamos a ciegas…” E, feito um eco, o negociador português, tempos depois, ao versar o mesmo lance, assentia:
quanto ao espaço intermédio e deserto (entre o Madeira e o Javari) confessamos de ambas as partes que estamos todos às cegas. [ 2 ]
Os ministros, como se vê, titubeavam em pleno desconhecido; até que, por evitar dilatórios pareceres, e sem repararem em algumas léguas de terras desertas, onde sobravam tantas às duas coroas, consoante confessaram imprudentemente – riscaram, a ventura, para o ocidente, a começar da média distância entre as confluências do Madeira e do Mamoré, a controvertida raia, predestinada a tão funesta influência no futuro, para sempre ambígua, ou absurda, e malsinada pelos seus próprios inventores, que de algum modo acenaram à tolerância das nações vindouras, antecipando um recurso absolutório naquela recíproca confissão de a haverem planeado e discutido inteiramente às cegas.
É uma gênese expressiva. Pelo menos clamorosamente contraposta à durabilidade que se pretende emprestar a uma concepção tão frágil, e à tentativa dos que hoje procuram revivê-la com os mesmos traços que a malignaram ao nascer.
Porque o Tratado preliminar, ulterior, de Santo Ildefonso, não a alterou. Reproduziu-a, copiando-a, no mais completo decalque.
A linha de 1777, que agora se restaura, é a mesma que se riscou, às apalpadelas, em 1750. Persistia a ignorância total daquela imensa zona; e os novos plenipotenciários, depois de acentuarem, ou ampliarem, esclarecendo-os, vários tratos da fronteira, que permaneceu quase inalterável, ao chegarem à mesma faixa de terrenos ignotos, lançaram-se, com o mesmo salto no escuro, da semidistância prefixa para o poente desconhecido e impérvio, percorrendo, a ciegas, trezentas léguas estiradas, de ermo.
Tão conclusivos, porém, e de intuitiva previsão, se lhes antolhavam os inconvenientes infirmativos da demarcação, tateante em tão espessa sombra geográfica, que, malgrado tratar-se de acordo preliminar, disposto “a servir de base e fundamento ao definitivo de limites, que se haveria de estender a seu tempo” [ 3 ], os negociadores, não lhes bastando restrição tão explícita, encurtando por si mesmo o alcance de um convênio que se pretende blindar de um caráter inviolável ao fim de 130 anos, como se inferissem as grandes divergências futuras, e de ânimo feito a precautelá-las, anexaram-lhe os “Artigos Separados”, que o completam e esclarecem.
São curiosos estes artigos, que de ordinário se excluem no citar-se o famoso conchavo internacional. Devendo ficar por algum tempo secretos, por conveniências mútuas e transitórias, eles eram-lhe imanentes, sendo redigidos e subscritos no mesmo dia.
Mostra-no-lo este preâmbulo:
Por consideraciones de conveniencia recíproca para las dos coronas, han resuelto Sus Majestades Católica y Fidelísíma extender los seguintes artículos separados, que habrán de quedar secretos, hasta que los dos soberanos determínen otra cosa de común acuerdo, debiendo tener desde ahora estos artículos separados la misma fuerza y vigor que los del Tratado Preliminar de Limites que se ha firmado hoy…
Os dizeres perimem quaisquer desvios de interpretação. E as novas cláusulas contrabalançam, se é que não superam, as do acordo principal. Pelo menos a primeira restringe-lhe os efeitos, sobrestando-lhos, com o subordiná-los a condições iniludivelmente suspensivas.
Sublinhemos o original castelhano:
Artículo 1º – El Tratado preliminar de limites concluido en este dia servirá de base y fundamento a otros tres que los dos altos contrayentes han convenido y ajustado en la forma siguiente: primero un Tratado de perpetua y indisoluble alianza.. . En segundo lugar un Tratado de comercio… y en tercero lugar un Tratado Definitivo de Limites para unos y otros dominios, luego que hayan venido todas las noticias y praticádose las operaciones necesarias para especificarlos.
Assim exinanido e desarticulado, o singular arranjo, que a mais retrógrada metafísica política vem espichando desde os tempos das metrópoles até hoje, através das mais díspares fases sociais, reduz-se a simples convenção preparatória para a formação ulterior, ou pouco remota, de três verdadeiros tratados.
Era o seu efeito único, a sua razão, a sua finalidade incontrastável.
De sorte que os demarcadores, em que se salientavam o ilustre Francisco Requena, e, entre os portugueses, homens da valia de um Lacerda e Almeida, ou Silva Pontes, não iam, de um modo geral, balizar sobre o terreno as linhas predeterminadas, senão discutir, consoante as instruções que os norteavam, e resolver, esclarecidos pelo exame direto das paragens exploradas, acerca das que fossem mais convenientes e naturais para os limites a estatuírem-se no acordo definitivo.
Ora, entre estas, a mais obscura era a que analisamos, com ser a única linha geodésica, planeada a esmo no deserto, de uma demarcação que desde 1750 se esteava, fundamentalmente no critério dos limites arcifínios ajustando-se às divisórias naturais,
Entretanto, nunca um geógrafo espanhol andou pelo Madeira.
Violou-se, desta forma, por parte de Espanha, a obrigação contraída.
Fizeram-no os portugueses Silva Pontes e Lacerda e Almeida, aos quais a metrópole, em 1781, deferira o encargo de determinarem a semidistância precitada, e informarem se o ponto correspondente poderia ser a origem da linha leste-oeste.
Os abnegados astrônomos, depois de lhe deduzirem a latitude rigorosa (7º 38′ 45″) patentearam-no impropriado ao objetivo requerido, e alvitraram o da confluência do Beni (10º 20’ lat. S.), sendo este parecer aceito pelo Governo português, que o transmitiu ao espanhol, de inteiro acordo com a razão expressa do compromisso preliminar.
Notificada a Espanha desta resolução, a circunstância de não mais cuidarem, as duas coroas, destes deslindamentos, certo não invalida o direito da parte contratante que foi a única, naquele trecho, a cumprir as cláusulas prescritas do que se convencionara. Mas se a despeito disto, e por obedecer à praxe trivialíssima de que as demarcações só se tornam efetivas depois de aprovadas pelos interessados, se consideram nulos os novos limites propostos pelos únicos comissários que perlustraram a região – que valor jurídico, ou político, poderá emprestar-se à duvidosa divisa que, vagamente referida num acordo preliminar e devendo ser fixada mediante estudos in loco, não foi sequer percorrida pelos comissários espanhóis?
São monstruosas estas antilogias: um trecho de fronteira debate-se, planeia-se, e surge desde a origem com os mais frisantes estigmas de inviabilidade, repudiado pelos próprios negociadores que, engenhando-o, se penitenciaram, sem rebuços, do indesculpável deslize de o haverem concebido completamente às cegas; mais tarde outros plenipotenciários, com as mesmas dúvidas, perdidos nas mesmas obscuridades, salteados dos mesmos escrúpulos, sujeitam as suas linhas definitivas, a sua existência real e efetiva, à condição inviolável do estudo dos terrenos indivisos; nesse pressuposto, um dos contratantes, cumprindo-a, propõe a variante indispensável; o outro, infringindo a obrigação contraída, o que corresponde a anular-se o convênio, queda-se na mais culposa, ou calculada indiferença; passam os tempos, longos anos, dezenas de anos, um século inteiro, a maior mora que ainda se viu na história; realizam-se nesse vasto interregno mudanças e transfigurações nas circunstâncias políticas, sociais e morais, das partes contratantes, que extinguiriam ou quebrantariam a força obrigatória de verdadeiros tratados definitivos e íntegros; – e essa monstruosidade, esse caso típico de teratologia político-geográfica, tolhiço e abortício, enjeitado a princípio pelos seus mesmos progenitores, transferido depois a um investigar futuro numa época em que os caprichos dinásticos não possuíam barreiras – ressurge de uma hibernação secular, inteiriço, intangível, inviolável, tentando renovar a preexistência precária exatamente num tempo em que, desde as noticias geográficas mais exatas aos princípios políticos mais liberais, todos os elementos convergem no engravescer-lhe a debilidade congênita irremediável. –
Evidentemente não é necessário – através das controvérsias intermináveis dos internacionalistas – apelar-se para a guerra de 1801, entre as metrópoles signatárias, e para o consecutivo tratado de Badajoz, que não renovou os compromissos anteriores, para se manifestar a nulidade de um acordo, onde se acumulam à maravilha tantas dúvidas, tantos deveres não cumpridos, e tantas infrações flagrantes.
Uma autoridade científica justamente venerada no Peru, Antonio Raimondi, referindo-se ao Tratado definitivo de 1750, mostra-no-lo “inválido de hecho por la demora de su ejecución”, dez anos apenas depois de haver sido celebrado. [ 4 ]
E era um Tratado definitivo…
Admitida esta relação, não será escandalosamente exorbitante um prazo décuplo para que se invalide um outro – preliminar – e adstrito a cláusulas que se não satisfizeram?
*
Assim o entenderam os estadistas peruanos em 1851.
Ao firmar-se em 23 de outubro daquele ano o Tratado de limites, nas terras confinantes do extremo noroeste, pelo art. 7º dele.
concordaram as altas partes contratantes em que os limites do Império do Brasil com a República do Peru fossem regulados em conformidade do princípio – uti possídetis – e, por conseguinte, reconheciam, respectivamente, como fronteira, a povoação de Tabatinga e dai para o norte em linha reta a encontrar o Japurá, defronte da foz do Apoparis; e de Tabatinga para o sul o rio Javari, desde a sua confluência no Amazonas.
É tudo quanto há sobre fronteiras; e é significativo.
Não se rastreia aí a mais vaga, a mais pálida, a mais indireta, ou implícita, ou fugitiva referência à convenção de 1777 – e menos ainda à recalcitrante linha leste-oeste. Entretanto, se lhe restassem os mais bruxuleantes vislumbres de vigor, ela se imporia, imperiosamente explícita. Baste observar-se que a malograda linha, concebida a ciegas, teria de ultimar-se, obrigatoriamente, na margem direita do Javari. Nomeado este, dever-se-ia nomeá-la. Não o fizeram, porém, os modernos estadistas. Não deviam fazê-lo. Foram lúcidos. Foram lógicos. A base das novas negociações era outra. O Tratado preliminar de 1777 estava extinto. O de 1851 surgia exatamente em virtude deste fato; e era tão outro o seu princípio norteador, que se lhe não compreenderia a enxertadura no decrépito convênio afistulado de tantos desacertos originais.
Assim acordaram, de um e de outro lado, brasileiros e peruanos.
A demonstração não é casuística, nem se alcandora em transcendentais premissas. É geométrica, é astronômica, é massudamente física e positiva.
Conhecia-se desde os fins do século XVIII a média distância entre a foz do Madeira, no Amazonas, e a do Guaporé, no Mamoré, deduzida pelos comissários portugueses. As operações astronômicas correspondentes não emudeceram no abafamento dos arquivos. Publicaram-se. E delas resultava por um cálculo simplíssimo a latitude meridional de 7º 38′ 45″. [ 5 ]
Ora, esta determinação única de um ponto bastava a definir-se toda a linha, em direção e grandeza, atento o seu caráter rigoroso, e expresso, de paralela ao equador, e a circunstância, também clara, de terminar à margem direita de um rio, no ocidente, o Javari.
Assim, em 1851, admitida, ad absurdum, a letra do Tratado de 1777, se sabia que a velhíssima divisa remataria – inflexivelmente – à margem daquele tributário amazônico, aos 6º 38′ 45″ de lat. S. Portanto, na vigência de tão monotonamente referido Tratado, tinha-se que nomear, por força, aquele ponto, até aonde aquele curso de água serviria de divisa natural.
É conclusivo.
Entretanto, a Convenção de 1851 não o fixou. Nem aludiu a tal circunstância. A fronteira iria até aonde fosse o rio. Os dizeres são límpidos: “De Tabatinga para o Sul a fronteira é o rio Javari, desde a sua confluência no Amazonas.” Todo o Javari, fosse aonde fosse. Indefinidamente, o Javari… E mais tarde, em nota oficial de 20 de dezembro de 1867, dezesseis anos transcorridos, o Ministro das Relações Exteriores do Peru ainda fortalecia o conceito, confirmando-o, com o declarar que, ante o último Tratado,
todo el curso del Javary es limite comun para los Estados contratantes. [ 6 ]
Sancionava-se o mais completo olvido do anacronismo de 1777.
Não há forrar-se ao asserto: a divisa perlongava o grande tributário do Amazonas até o fim, sem estacar no paralelo definido pela latitude da semidistância do Madeira.
Relegava-se do ajuste a linha colonial.
Para admitir-se o contrário fora preciso apelar para o maravilhoso, para o caso estupendo de se acharem as nascentes do Javari exatissimamente, sem o destoar de um segundo, naquela mesma altura, e que presumissem tão rara coincidência os dois países contratantes; ou que, por último, conjecturassem, ao menos, estarem as referidas nascentes ao norte da latitude nomeada.
Mas nem mesmo este recurso resta aos modernos partidários da imaginosa fronteira.
Mostram-no-lo os mais sisudos documentos peruanos.
Registremos um só, porém preeminente.
D. Mateo Paz Soldan é uma figura tradicional e dominante na invejável cultura da República vizinha. Era uma alma superior, amantíssima de sua terra e justamente vaidosa de suas grandes tradições. Ao mesmo passo um espírito de cultura integral pouco vulgar. Astrônomo e naturalista, humanista profundo e escritor brilhante a par de tão privilegiados atributos foi o maior geógrafo de seu país. A sua obra é ainda hoje clássica. E a sua palavra, no seu tempo, indiscutível.
Procuremo-la, extratando-a com a maior fidelidade do trabalho que, por ter sido publicado em 1863, em Paris, à custa do Governo peruano, tem o tríplice valor do nome que o nobilita, do título oficial que o reveste, e da própria data em que apareceu, no sistematizar, de maneira insofismável, as noções que então havia acerca da geografia da República.
Ora, no tocante ao desenvolvimento do rio Javari, o pensar do mestre expõe-se sem atavios: considera-o indefinido; prefigura-o dilatadíssimo:
On sait seulement qu’il entre dans le fleuve des Amazones sous le 4º 38′ lat. S. et qu’il paraît être un écoulement de l’Apurimac. [ 7 ]
Atente-se que o Apurimac tem os seus manadeiros além de 15º de lat. S; e avalie-se o desmedido estiramento que em 1863, doze anos depois do Tratado de 1851, figurava possuir um rio que todo ele se erigira, por um compromisso solene, em fronteira brasílio-peruana.
À luz desses argumentos, a paralela, que só poderia traçar-se a partir de suas cabeceiras (porque todo ele era divisa) em busca do Madeira, entregar-nos-ia a melhor porção do genuíno Peru, do Peru incásico e legendário, e quase todo o departamento de Cuzco.
O absurdo é evidente.
Vê-se bem que o atingimos, como em geometria, pelo havermos partido de um dado ad absurdum. Só o remove a tese contrária: os governos contratantes excluíram, de todo em todo, aquela linha dos efeitos do Tratado de 1851.
Apesar disto, prossigamos.
Observemos praticamente confirmada esta dedução.
O mesmo Paz Soldan, no mesmo livro – livro oficial, cristalizando todo o conhecimento geográfico do tempo -, traça os limites orientais da República. A linguagem é resplandecente. Não há miopia intelectual que se lhe furte. Diz:
De Tabatinga vers le Sud, la rivère Javary a partir de son confluence avec le fleuve des Amazones, jusqu’à sa source et de là une ligne parallèle vers le 10º de lat. sud . [ 8 ]
Esta paralela não é mais a de Santo Ildefonso, já pela sua situação, em demasia deslocada para o sul, já pelo indefinido daquele vers le 10 de lat. sud, já pelo preposterar o sentido da demarcação, delineando-a a partir do Javari, sem lhe ocorrer uma célebre semidistância, tão fatigantemente nomeada, que devera marcar-se no Madeira; e, finalmente, porque não se destinava, no ponderoso parecer do reputado geógrafo, a dilatar-se até ao Madeira, visto como sobre ela,
sur la ligne parallèle tirée sous le 10º de lar. sud, que sert de limite au Brésil il faut abaisser une perpendiculaire du Nord au Sud. Ensuit on recontre la cordillère que se prolonge do Nord au Sud; elle sert de limite jusqu’au 15º 28′ da lat. S et 71º 45′ da long. O. Paris.
Leia-se um mapa qualquer; balanceiem-se estes elementos claros: a paralela, assim definida, como se deduz do enunciado acima, e como se gravou na carta do próprio Paz Soldan – ia terminar no Purus…
Deste modo a linha ab-rogada em 1851, pela razão superior de um Tratado, delia-se de todo em 1863, ante o juízo austero do cientista de mais alto renome da República peruana.
Por fim o Tratado de 27 de março de 1867, entre a Bolívia e o Brasil, removeu-lhe os destroços, e, registre-se esta circunstância notável, sancionou o parecer proposto havia 86 anos pelos comissários portugueses, o qual se não efetuara pela indiferença criminosa da Espanha, deslindando as extremas meridionais, naquele trecho, a partir da foz do Beni (10º 20′) para o ocidente, até encontrar o Javari.
Assim se extinguiu de todo, por sucessivos atos das Repúblicas vizinhas, como o fato muito expressivo de haver uma delas corrigido um velho deslize da metrópole, a indecisa fronteira, que se aventurara entre incertezas e obscuridades.
*
Estas vacilações retratam-se de um modo gráfico nos deslocamentos que ela sofreu, malgrado o seu pretensioso traço geodésico, além da máxima tolerância admitida em assuntos desta natureza.
Realmente, é opinável se existem dois geógrafos acordes no fixá-la.
Conhecem-se-lhe pelo menos oito traçados dispares, firmados pelos nomes da maior responsabilidade.
Registrem-se:
Mapa de F. Castelnau | 7º 30′ 00″ |
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Mapa de Barrera | 10º 0′ 00″ |
Mapa de Gibbon | 10º 20′ 00″ |
Mapa de Gautherot | 9º 28′ 24″ |
Mapa de Ondarza Mujia | 6º 28′ 15″ |
Mapa de Paz Soldan | 9º 30′ 0″ |
Mapa de Silva Pontes | 7º 38′ 45″ |
Mapa de A. Raimondi | 6º 52′ 15″ |
Não será difícil apontar outros.
Mas estes exemplos bastam. Aí temos entre o mínimo (6º 28′ 15″) e o máximo (10º 20′ 00″) a diferença de 3º 51′ 45″, que equivale a 430 quilômetros.
A tanto se alarga a amplitude de oscilação da fronteira jogada, à toa, no deserto. A agitante caduquice político-geográfica, estereotipa-se. Vê-se. Aí está, sempre dúbia, sempre incompreendida, sempre errante, sempre atarantada, hoje como há um século, a saltar de um para outro lado, numa inambulação desesperadora, ora ao norte, ora ao sul, sem pouso, sem posição, sem fixidez, sem descanso, ocupando todos os pontos, abandonando todos os pontos, fugindo de todos os pontos; e a espelhar nesta volubilidade pasmosa, em nossos dias – depois de Humboldt, depois de Castelnau, depois de Gibbon, depois de Chandless – os mesmos erros, que a obscureceram nos primeiros tempos.
Afinal, a Sociedade de Geografia de Lima e o Arquivo Especial de Limites, do Peru, lhe deram o desenho mais recente, submetida à baixa latitude de 6º 52′ 15″, com que está a esta hora entregue ao juízo do Governo argentino… e deram-lhe o golpe de misericórdia.
De feito, a nova posição, revivescência da que irrefletidamente lhe deu, vai para trinta anos, A. Raimondi, está errada – absolutamente errada, e seria inaceitável ainda quando se renovasse o Tratado de 1777.
Diz o art. 13º deste:
Baixará a linha pelas águas destes dous rios, Guaporé e Mamoré, já unidos com o nome de Madeira até à paragem situada em igual distância do rio Amazonas e da boca do rio Mamoré.
Obedientes à indicação tão simples, os comissários lusitanos deduziram, como vimos, a latitude do ponto médio entre as confluências Mamoré – Guaporé e Madeira – Amazonas, encontrando 7º 38′ 45″, de lat. Sul.
Raimondi insurge-se contra cousa tão evidente, e raciocina deste feitio:
En los artículos dei Tratado aparece muy claro que los puntos que deben servir de base a la medida es la boca del rio Mamoré, y como se dá el nombre de boca al punto donde um rio termina su curso, se deduce que la boca del rio Mamoré no puede ser el punto de confluencia con el Guaporé puesto que el rio formado por la reunión de los dos continua llevando el nombre de Mamoré basta encontrarse con el Beni, desde cuyo paraje empieza a tomar el nombre de Madeira… [ 9 ]
Depois aponta vários mapas contemporâneos, confirmando-lhe o asserto, e deduz a latitude precitada, naturalmente mais baixa que a dos portugueses, de 6º 52′ 15″.[ 10 ]
Ora, defrontando-se argumento tão frívolo com aquele artigo, há de se convir em que o espírito do historiador geógrafo passava por um eclipse lamentável. Foi tal o ensombro que totalmente lhe esqueceu o preceito rudimentar, e em toda a linha admitido, de que os dizeres dos acordos se interpretam, sempre, consoante o sentido que possuíam ao tempo em que se redigiram. Com efeito, por mais que variasse, depois, a extensão do Madeira propriamente dito, e ainda que lhe substituíssem o nome, ou que os caprichos dos cartógrafos lhe dessem princípio ainda mais ao norte da foz do Beni; e que assim o considerassem todas as Cartas, de todos os geógrafos, de todos os tempos e de todos os países, o fato irredutível é que, para as metrópoles contratantes, o formavam o Guaporé e o Mamoré – já unidos com o nome de Madeira – e que, portanto, da confluência deles para jusante é que se deverá medir a distância a bipartir-se, como o fizeram os astrônomos portugueses. Ademais, se acaso lhes testassem dúvidas, ante dizeres tão simples, destruir-lhas-ia o próprio final do art. 10º, anterior, que, ao referir-se aos mesmos rios, os define como “formando juntos o rio que chamam da Madeira”, “formando juntos el rio que llaman de la Madeira…”
Não há aí nenhum vício de linguagem, nenhuma impropriedade de vocábulo, nenhuma imperfeição de pensamento, velando a inteligência do contrato. A interpretação vitoriosa dos portugueses não é apenas lógica – nem se lhes fazia mister perquirir intuitos tio manifestos – é friamente, rasamente gramatical.
Não se compreende a cinca de A. Raimondi.
Menos se explica ainda que, após tantos decênios, a desenlapasse, e coonestasse, uma corporação de alta responsabilidade pelo seu caráter oficial, e que, baseando-se nela, o chefe do Arquivo Especial de Limites, do Peru, a arquivasse numa carta, a mesma carta, certo, que se entregou ao juízo austero de um árbitro, arrastando o Governo peruano a sancionar o mais calvo e injustificável erro, que ainda se perpetrou na simples leitura de um convênio.
Temo-la sob os olhos. [ 11 ]
Lá está a claudicante divisa na sua derradeira tortura, rigorosamente firmada pelo paralelo de 6º 52′ 15″.
Intercepta o Purus em Vista Alegre; o Juruá, no barracão “Recife”; e separa, ditatorialmente, num garboso rasgo imperialista de tira-linhas napoleônico, mais de 500 estâncias brasileiras, do resto do país, e entre elas algumas vilas, Antimari, São Felipe, Cruzeiro do Sul, e uma cidade, Lábrea.
A carta do Arquivo Especial de Limites, modelada por ela, completa-a, preestabelecendo um esboço de divisão administrativa.
No aforrado anelo de se apossarem de domínios tão ricos, os geógrafos oficiais do Peru não aguardam a sentença soberana do árbitro. Predeterminam; prefixam; prefiguram as futuras barreiras. Prejulgam a própria causa. Tudo aquilo já tem um nome – Provincia do Ucayali: longa lista de terras, estirando-se, fatidicamente, por treze graus de longitude, do Madeira para o ocidente, e apavorando-nos com uma tremenda aquarela de carmim vivíssimo, e fortes tons sanguíneos, tragicamente sugestivos…
A elástica fronteira assim se estica, hoje, nas regiões exuberantes da borracha.
Pena é que uma outra variante destrua o pinturesco desses desenhos lírico-cartográficos.
Arquivemo-la.
É uma variante sobremodo eloquente no delatar que, a cabo de tantíssimas e velhas garatujas, ainda hoje, em nosso tempo, no mesmo país, na mesma cidade, talvez na mesma rua, no mesmo ano, talvez no mesmo dia, riscada pelos desenhistas oficiais, à luz das mesmas preocupações, a lastimável linha divisória… não é a mesma.
Defrontem-se as cartas de S. G. de Lima e Arquivo Especial de Limites, ambas do Peru. Desconchavam-se. Na primeira, já o vimos, ela ressurge, ameaçadoramente, guindada para o norte, com a sua direção intorcível de leste para oeste. Na segunda, não é sequer a sombra do que foi. Não é mais uma paralela. É uma oblíqua. Parte da mesma semidistância erradíssima, e vai descambando. Incide no paralelo de 7º, ao atravessar o Tarauacá; e continua a descambar, a cair. E cai, descendo sempre, a perder-se, ou a refugiar-se, nas cabeceiras remotas do Javari…
É o último avatar da singularíssima invencionice. Não o qualifiquemos. Nem afirmemos, com o Sr. Manuel Rouaud y Paz Soldan, sobrinho do cientista precitado, ao versar o mesmo assunto em 1869:
Enfin como el Tratado de 1851 ha determinado los limites actuales, todas estas discusiones no son sino de um interés puramente histórico. [ 12 ]
Digamos: a base principal das pretensões peruanas, no vertente litígio com a Bolívia, submetida ao exame e ao juízo do Governo argentino, além de ser incaracterística e vaga, ilógica e inviável, nula de direito e de fato, volúvel ou passiva ante os caprichos de todos os cartógrafos – está errada, flagrantemente errada – geométrica, astronômica, geográfica, política, jurídica e historicamente errada.
E consideremos outros aspectos deste assunto.
[ 2 ] Archivo de Simancas. Legajo 7 406, fol. 21.
[ 3 ] Tratado Preliminar de Limites, de 1º de outubro de 1977.
[ 4 ] RAIMONDI, Antonio – El Perú, t. 2º, p. 402.
[ 5 ] Ver Diário de viagem do dr. F. de Lacerda e Almeida, S. Paulo, 1841.
Lacerda e Almeida determinou a latitude da foz do Madeira, no Amazonas, 3° 22′ 45″ e a da Guaporé, 11° 54′ 46″.
Deduz-se a coordenada da semidistância:
11° 54′ 46″ – 3° 22′ 45″/ 2 = 7° 38′ 45″
Mais tarde poucos observadores divergiram do grande geógrafo.
Costa Azevedo (barão do Ladário) em 1863 determinou, na foz do Madeira, a latitude de 3° 24′ 31″, discrepante apenas 1° 45″; e a comissão de limites com a Bolívia, de 1875, encontrou para a da confluência Mamoré-Guaporé, 11° 54′ 12″ 83, discordante pouco mais de meio minuto. Com estes novos elementos a semidistância encontra-se a 7° 39′ 32″ 7, divergindo da que se deduziu há mais de um século, de menos de um minuto de arco.
O caso é verdadeiramente notável, embora se trate de uma determinação de latitude.
E considerando-se os aparelhos imperfeitos do tempo, deve-se convir em que Lacerda e Almeida foi um observador admirável.
[ 6 ] “Nota Protesta” do Sr. J. A. Barrenechea, de 20 de dezembro de 1867.
[ 7 ] PAZ SOLDAN, Mateo – Geographie du Perou, etc. Publiée aux frais du gouvernement perouvien. Paris, 1863, p. 3.
[ 8 ] Loc. cit., p. 2.
[ 9 ] El Perú, t. 2º, p. 405 e 406.
[ 10 ] Para isto, ao revés da confluência Mamoré-Guaporé, considera a do Beni (10° 20′); deduzindo-se a da semidistância à foz do Madeira:
10° 20″ – 3° 24′ 31′ / 2 + 3° 24′ 31′ = 6° 52′ 15″
[ 11 ] Mapa de la región hidrografica del Amazonas peruano, mandado trazar por la Sociedad Geografica de Lima.
[ 12 ] PAZ SOLDAN, Manuel Rouaud y – Observaciones astronomicas y fisicas, et. Lima, 1869, p. 26.
CUNHA, Euclides da. Peru versus Bolívia. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/peru-versus-bolivia/. Acesso em: [data]. Texto-base de CUNHA, Euclides da. Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 311-398.