O Homem, I

Complexidade do problema etnológico no Brasil

Adstrita às influências que mutuam, em graus variáveis, três elementos étnicos, a gênese das raças mestiças do Brasil é um problema que por muito tempo ainda desafiará o esforço dos melhores espíritos.

Está apenas delineado.

Entretanto no domínio das investigações antropológicas brasileiras se encontram nomes altamente encarecedores do nosso movimento intelectual. Os estudos sobre a pré-história indígena patenteiam modelos de obervação sutil e conceito crítico brilhante, mercê dos quais parece definitivamente firmado, contravindo ao pensar dos caprichosos construtores da ponte Alêutica, o autoctonismo das raças americanas.

Neste belo esforço, rematado pela profunda elaboração paleontológica de Wilhelm Lund, destacam-se o nome de Morton, a intuição genial de Frederico Hartt, a inteiriça organização científica de Meyer, a rara lucidez de Trajano de Moura, e muitos outros cujos trabalhos reforçam os de Nott e Gordon no definir, de uma maneira geral mas completa, a América como um centro de criação desligado do grande viveiro da Ásia Central. Erige-se autônomo entre as raças o homo americanus.

A face primordial da questão ficou assim aclarada. Que resultem do “homem da Lagoa Santa” cruzado com o pré-colombiano dos “sambaquis” ou se derivem, altamente modificados por ulteriores cruzamentos e pelo meio, de alguma raça invasora do Norte, de que se supõe oriundos os tupis tão numerosos na época do descobrimento — os nossos silvícolas, com seus frisantes caracteres antropológicos, podem ser considerados tipos evanescentes de velhas raças autóctones da nossa terra.

Esclarecida deste modo a preliminar da origem do elemento indígena, as investigações convergiram para a definição da sua psicologia especial; e enfeixaram-se, ainda, em algumas conclusões seguras.

Não precisamos revivê-las. Sobre faltar-nos competência. nos desviaríamos muito de um objetivo prefixado.

Os dois outros elementos formadores, alienígenas, não originaram idênticas tentativas. O negro banto, ou catre, com as suas várias modalidades, foi até neste ponto o nosso eterno desprotegido. Somente nos últimos tempos um investigador tenaz, Nina Rodrigues, subordinou a uma análise cuidadosa a sua religiosidade original e interessante. Qualquer, porém, que tenha sido o ramo africano para aqui transplantado trouxe, certo, os atributos preponderantes do homo afer, filho das paragens adustas e bárbaras, onde a seleção natural, mais que em quaisquer outras, se faz pelo exercício intensivo da ferocidade e da força.

Quanto ao fator aristocrático de nossa gens, o português, que nos liga à vibrátil estrutura intelectual do celta, está, por sua vez, malgrado o complicado caldeamento de onde emerge, de todo caracterizado.

Conhecemos, deste modo, os três elementos essenciais, e, imperfeitamente embora, o meio físico diferenciados — e ainda, sob todas as suas formas; as condições históricas adversas ou favoráveis que sobre eles reagiram. No considerar, porém, todas as alternativas e todas as fases intermédias desse entrelaçamento de tipos antropológicos de graus díspares nos atributos físicos e psíquicos, sob os influxos de um meio variável, capaz de diversos climas, tendo discordantes aspectos e apostas condições de vida, pode afirmar-se que pouco nos temos avantajado. Escrevemos todas as variáveis de uma fórmula intricada, traduzindo sério problema; mas não desvendamos todas as incógnitas.

É que, evidentemente, não basta, para o nosso caso, que postos uns diante de outros o negro banto, o indo-guarani e o branco, apliquemos ao conjunto a lei antropológica de Broca. Esta é abstrata e irredutível. Não nos diz quais os reagentes que podem atenuar o influxo da raça mais numerosa ou mais forte, e causas que o extingam ou atenuem quando ao contrário da combinação binária, que pressupõe, despontam três fatores diversos, adstritos às vicissitudes da história e dos climas.

É uma regra que nos orienta apenas no indagarmos a verdade. Modifica-se, como todas as leis, à pressão dos dados objetivos. Mas ainda quando por extravagante indisciplina mental alguém tentasse aplicá-la, de todo despeada da intervenção daqueles, não simplificaria o problema.

É fácil demonstrar.

Abstraiamos de inúmeras causas perturbadoras, e consideremos os três elementos constituintes de nossa raça em si mesmos, intactas as capacidades que Ihes são próprias.

Vemos, de pronto, que, mesmo nesta hipótese favorável, deles não resulta o produto único imanente às combinações binárias, numa fusão imediata em que se justaponham ou se resumam os seus caracteres, unificados e convergentes num tipo intermediário. Ao contrário a combinação ternária inevitável determina, no caso mais simples, três outras, binárias. Os elementos iniciais não se resumem, não se unificam; desdobram-se; originam número igual de subformações — substituindo-se pelos derivados, sem redução alguma, em uma mestiçagem embaralhada onde se destacam como produtos mais característicos o mulato, o mameluco ou curiboca e o cafuz [ 6 ]. As sedes iniciais das indagações deslocam-se apenas mais perturbadas, graças a reações que não exprimem uma redução, mas um desdobramento. E o estudo destas subcategorias substitui o das raças elementares agravando-o e dificultando-o, desde que se considere que aquelas comportam, por sua vez, inúmeras modalidades consoante as dosagens variáveis do sangue.

O brasileiro, tipo abstrato que se procura, mesmo no caso favorável acima firmado, só pode surdir de um entrelaçamento consideravelmente complexo.

Teoricamente ele seria o pardo, para que convergem os cruzamentos do mulato, do curiboca e do cafuz.

Avaliando-se, porém, as condições históricas que têm atuado, diferentes nos diferentes tratos do território; as disparidades climáticas que nestes ocasionam reações diversas diversamente suportadas pelas raças constituintes; a maior ou menor densidade com que estas cruzaram nos vários pontos do país; e atendendo-se ainda à intrusão — pelas armas na quadra colonial e pelas imigrações em nossos dias — de outros povos, fato que por sua vez não foi e não é uniforme, vê-se bem que a realidade daquela formação é altamente duvidosa, senão absurda.

Como quer que seja, estas rápidas considerações explicam as disparidades de vistas que reinam entre os nossos antropólogos. Forrando-se, em geral, à tarefa penosa de subordinar as suas pesquisas a condições tão complexas, têm atendido sobremaneira ao preponderar das capacidades étnicas. Ora, a despeito da grave influência destas, e não a negamos, elas foram entre nós levadas ao exagero, determinando a irrupção de uma meia-ciência difundida num extravagar de fantasias, sobre ousadas, estéreis. Há como que um excesso de subjetivismo no animo dos que entre nós, nos últimos tempos, cogitam de coisas tão sérias com uma volubilidade algo escandalosa, atentas as proporções do assunto. Começam excluindo em grande parte os materiais objetivos oferecidos pelas circunstâncias mesológica e histórica. Jogam, depois, e entrelaçam, e fundem as três raças consoante os caprichos que os impelem no momento. E fazem repontar desta metaquímica sonhadora alguns precipitados fictícios.

Alguns firmando preliminarmente, com autoridade discutível, a função secundária do meio físico e decretando preparatoriamente a extinção quase completa do silvícola e a influência decrescente do africano depois da abolição do tráfico, prevêem a vitória final do branco, mais numeroso e mais forte, como termo geral de uma série para o qual tendem o mulato, forma cada vez mais diluída do negro, e o caboclo, em que se apagam, mais depressa ainda, os traços característicos do aborígene.

Outros dão maiores largas aos devaneios. Ampliam a influência do último. E arquitetam fantasias que caem ao mais breve choque da crítica: devaneios a que nem faltam a metrificação e as rimas porque invadem a ciência na vibração rítmica dos versos de Gonçalves Dias.

Outros vão terra-a-terra demais. Exageram a influência do africano, capaz, com efeito, de reagir em muitos pontos contra a absorção da raça superior. Surge o mulato. Proclamam-no o mais característico tipo da nossa subcategoria étnica.

O assunto assim vai derivando multiforme e dúbio.

Acreditamos que isto sucede porque o escopo essencial destas investigações se tem reduzido à pesquisa de um tipo étnico único, quando há, certo, muitos.

Não temos unidade de raça.

Não a teremos, talvez, nunca.

Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma. Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social.

Estamos condenados à civilização.

Ou progredimos, ou desaparecemos.

A afirmativa é segura.

Não a sugere apenas essa heterogeneidade de elementos ancestrais. Reforça-a outro elemento igualmente ponderável: um meio físico amplíssimo e variável, completado pelo variar de situações históricas, que dele em grande parte decorreram.

A este propósito não será desnecessário considerá-lo por alguns momentos.

Variabilidade do meio físico…

Contravindo à opinião dos que demarcam aos países quentes um desenvolvimento de 30° de latitude, o Brasil está longe de se incluir todo em tal categoria. Sob um duplo aspecto, astronômico e geográfico, aquele limite é exagerado.

Além de ultrapassar a demarcação teórica vulgar, exclui os relevos naturais que atenuam ou reforçam os agentes meteorológicos, criando climas equatoriais em altas latitudes ou regímens temperados entre os trópicos. Toda a climatologia, inscrita nos amplos lineamentos das leis cosmológicas gerais, desponta em qualquer parte adicta de preferência às causas naturais mais próximas e particulares. Um clima é como que a tradução fisiológica de uma condição geográfica. E definindo-o deste modo concluímos que o nosso país, pela sua própria estrutura, se imprópria a um regímen uniforme.

Demonstram-no os resultados mais recentes, e são os únicos dignos de fé, das indagações meteorológicas. Estas o subdividem em três zonas claramente distintas: a francamente tropical, que se expande pelos Estados do Norte ao sul da Bahia, com uma temperatura média de 26°; a temperada, de S. Paulo ao Rio Grande, pelo Paraná e Santa Catarina, entre os isotermos 15° e 20°; e como transição — a subtropical, alongando-se pelo Centro e Norte de alguns Estados, de Minas ao Paraná.

Aí estão, claras, as divisas de três hábitats distintos.

Ora, mesmo entre as linhas mais ou menos seguras destes despontam modalidades, que ainda os diversificam.

Indiquemo-las a traços rápidos.

A disposição orográfica brasileira, possantes massas sublevadas que se orientam perlongando o litoral perpendicularmente ao rumo do SE, determina as primeiras distinções em largos tratos de território que demoram ao Oriente, criando anomalia climatológica expressiva.

De fato, o clima aí inteiramente subordinado aos fácies geográfico viola as leis gerais que o regulam. A partir dos trópicos para o Equador a sua caracterização astronômica, pelas latitudes, cede às causas secundárias perturbadoras. Define-se, anormalmente, pelas longitudes.

É um fato conhecido. Na extensa faixa da costa, que vai da Bahia à Paraíba, se vêem transições mais acentuadas, acompanhando os paralelos, no rumo do ocidente, do que os meridianos, demandando o norte. As diferenças no regímen e nos aspectos naturais, que segundo este rumo são imperceptíveis, patenteiam-se, claras, no primeiro. Distendida até às paragens setentrionais extremas, a mesma natureza exuberante ostenta-se sem variantes nas grandes matas que debruam a costa, fazendo que a observação rápida do estrangeiro prefigure dilatada região vivaz e feracíssima. Entretanto a partir do 13° paralelo as florestas mascaram vastos territórios estéreis, retratando nas áreas desnudas as inclemências de um clima em que os graus termométricos e higrométricos progridem em relação inversa, extremando-se exageradamente.

Revela-o curta viagem para o ocidente, a partir de um ponto qualquer daquela costa. Quebra-se o encanto de ilusão belíssima. A natureza empobrece-se; despe-se das grandes matas; abdica o fastígio das montanhas; erma-se e deprime-se — transmudando-se nos sertões exsicados e bárbaros, onde correm rios efêmeros, e destacam-se em chapadas nuas, sucedendo-se, indefinidas, formando o palco desmedido para os quadros dolorosos das secas.

O contraste é empolgante.

Distantes menos de cinqüenta léguas, apresentam-se regiões de todo opostas, criando opostas condições à vida.

Entra-se, de surpresa, no deserto.

E, certo, as vagas humanas que nos dois primeiros séculos do povoamento embateram as plagas do Norte tiveram na translação para o ocidente, demandando o interior, obstáculos mais sérios que a rota agitada dos mares e das montanhas, na travessia das caatingas ralas e decíduas. O malogro da expansão baiana, que entretanto precedera à paulista no devassar os recessos do país, é exemplo frisante.

O mesmo não sucede, porém, dos trópicos para o sul.

Aí a urdidura geológica da terra, matriz de sua morfogenia interessante, persiste inalterável, abrangendo extensas superfícies para o interior, criando as mesmas condições favoráveis, a mesma flora, um clima altamente melhorado pela altitude, e a mesma feição animadora dos aspectos naturais.

A larga antemural da cordilheira granítica, derivando a prumo para o mar, nas vertentes interiores descamba suavemente em vastos plainos ondulados.

É a escarpa abrupta e viva dos planaltos.

Sobre estes os cenários, sem os traços exageradamente dominadores das montanhas, revelam-se mais opulentos e amplos. A terra patenteia essa manageability of nature, de que nos fala Buckle, e o clima temperado quente desafia na benignidade o admirável regímen da Europa Meridional. Não o regula mais, como mais para o norte, exclusivamente, o SE. Rolando dos altos chapadões do interior, o NO prepondera então, em toda extensíssima zona que vai das terras elevadas de Minas e do Rio ao Paraná, passando por São Paulo.

Ora, estas largas divisões, apenas esboçadas, mostram já uma diferença essencial entre o Sul e o Norte, absolutamente distintos pelo regímen meteorológico, pela disposição da terra e pela transição variável entre o sertão e a costa.

Descendo à análise mais íntima desvendaremos aspectos particulares mais incisivos ainda.

Tomemos os casos mais expressivos, evitando extensa explanação do assunto.

Vimos em páginas anteriores que o SE, sendo o regulador predominante do clima na costa oriental, é substituído, nos Estados do Sul, pelo NO e nas extremas setentrionais pelo NE. Ora, estes, por sua vez, desaparecem no âmago dos planaltos, ante o SO que, como um hausto possante dos pampeiros, se lança pelo Mato Grosso, originando desproporcionadas amplitudes termométricas, agravando a instabilidade do clima continental, e submetendo as terras centrais a um regímen brutal, diverso dos que vimos rapidamente delineando.

Com efeito, a natureza em Mato Grosso balanceia os exageros de Buckle. É excepcional e nitidamente destacada. Nenhuma se lhe assemelha. Toda a imponência selvagem, toda a exuberância inconceptível, unidas à brutalidade máxima dos elementos, que o preeminente pensador, em precipitada generalização, ideou no Brasil, ali estão francas, rompentes em cenários portentosos. Contemplando-as, mesmo através da frieza das observações de naturalistas pouco vezados a efeitos descritivos, vê-se que aquele regímen climatológico anômalo é o mais fundo traço da nossa variabilidade mesológica.

Nenhum se lhe equipara no jogar das antíteses. A sua feição aparente é a de benignidade extrema: — a terra afeiçoada à vida; a natureza fecunda erguida na apoteose triunfal dos dias deslumbrantes e calmos; e o solo abrolhando em vegetação fantástica — farto, irrigado de rios que irradiam pelos quatro pontos cardeais. Mas esta placidez opulenta esconde, paradoxalmente, gérmens de cataclismos, que irrompendo, sempre com um ritmo inquebrável, no estio, traindo-se nos mesmos prenúncios infalíveis, ali tombam com a finalidade irresistível de uma lei.

Mal poderemos traçá-los. Esbocemo-los.

Depois de soprarem por alguns dias as rajadas quentes e úmidas de NE, os ares imobilizam-se, por algum tempo, estagnados. Então “a natureza como que se abate extática, assustada; nem as grimpas das árvores balouçam; as matas, numa quietude medonha, parecem sólidos inteiriços. As aves se achegam nos ninhos, suspendendo os vôos e se escondem” . [ 7 ]

Mas, volvendo-se o olhar para os céus, nem uma nuvem! O firmamento límpido arqueia-se alumiado ainda por um Sol obscurecido, de eclipse. A pressão, entretanto, decai vagarosamente, numa descensão contínua, afogando a vida. Por momentos um cumulus compacto, de bordas acobreado-escuras, negreja no horizonte, ao sul. Deste ponto sopra, logo depois, uma viração, cuja velocidade cresce rápida, em ventanias fortes. A temperatura cai em minutos e, minutos depois, os tufões sacodem violentamente a terra. Fulguram relâmpagos; estrugem trovoadas nos céus já de todo bruscos e um aguaceiro torrencial desce logo sobre aquelas vastas superfícies, apagando, numa inundação única, o divortium aquarum indeciso que as atravessa, adunando todas as nascentes dos rios e embaralhando-lhes os leitos em alagados indefinidos…

É um assalto subitâneo. O cataclismo irrompe arrebatadamente na espiral vibrante de um ciclone. Descolmam-se as casas; dobram-se, rangendo, e partem-se, estalando, os carandás seculares; ilham-se os morros; alagoam-se os plainos…

E uma hora depois o Sol irradia triunfalmente no céu puríssimo! A passarada irrequieta descanta pelas frondes gotejantes; suavizam os ares virações suaves — e o homem, deixando os refúgios a que se acolhera trêmulo, contempla os estragos entre a revivescência universal da vida. Os troncos e galhos das árvores rachadas pelos raios, estorcidas pelos ventos; as choupanas estruídas, colmos por terra; as últimas ondas barrentas dos ribeirões, transbordantes; a erva acamada pelos campos, como se sobre eles passassem búfalos em tropel — mal relembram a investida fulminante do flagelo…

Dias depois, os ventos rodam outra vez, vagarosamente, para leste; e a temperatura começa a subir de novo; a pressão a pouco e pouco diminui; e cresce continuamente o mal-estar, até que se reate nos ares imobilizados a componente formidável do pampeiro e ressurja, estrugidora, a tormenta, em rodeos turbilhonantes, enquadrada pelo mesmo cenário lúgubre, revivendo o mesmo ciclo, o mesmo círculo vicioso de catástrofe.

Ora — avançando para o norte — desponta, contrastando com tais manifestações, o clima do Pará. Os brasileiros de outras latitudes mal o compreendem, mesmo através das lúcidas observações de Bates. Madrugadas tépidas, de 23° centígrados, sucedendo-se inesperadamente a noites chuvosas; dias que irrompem como apoteoses fulgurantes, revelando transmutações inopinadas: árvores, na véspera despidas, aparecendo juncadas de flores; brejos apaulados transmudando-se em prados. E logo depois, no círculo estreitíssimo de 24 horas, mutações completas: florestas silenciosas, galhos mal vestidos pelas folhas requeimadas ou murchas; ares vazios e mudos; ramos viúvos das flores recém-abertas, cujas pétalas exsicadas se despegam e caem, mortas, sobre a terra imóvel sob o espasmo enervante de um bochorno de 35°, à sombra. “Na manhã seguinte, o Sol se alevanta sem nuvens e deste modo se completa o ciclo —primavera, verão e outono num só dia tropical” . [ 8 ]

A constância de tal clima faz que se não percebam as estações que, entretanto, como em um índice abreviado, se delineiam nas horas sucessivas de um só dia, sem que a temperatura quotidiana tenha durante todo o ano uma oscilação maior que 1° ou 1°,5. Assim a vida se equilibra numa constância imperturbável.

Entretanto, a um lado, para o ocidente, no Alto Amazonas manifestações diversas caracterizam novo hábitat. E este, não há negá-lo, impõe aclimação penosa a todos os filhos dos próprios territórios limítrofes.

Ali, no pleno dos estios quentes, quando se diluem, mortas nos ares parados, as últimas lufadas de leste, o termômetro é substituído pelo higrômetro na definição do clima. As existências derivam numa alternativa dolorosa de vazantes e enchentes dos grandes rios. Estas alteiam-se sempre de um modo assombrador. O Amazonas referto salta fora do leito, levanta em poucos dias o nível das águas, de dezessete metros; expande-se em alagados vastos, em furos, em paranás-mirins, entrecruzados em rede complicadíssima de mediterrâneo cindido de correntes fortes, dentre as quais emergem, ilhados, os igapós verdejantes.

A enchente é unia parada na vida. Preso nas malhas dos igarapés, o homem aguarda, então, com estoicismo raro ante a fatalidade incoercível, o termo daquele inverno paradoxal, de temperaturas altas. A vazante é o verão. É a revivescência da atividade rudimentar dos que ali se agitam, do único modo compatível com uma natureza que se demasia em manifestações dispares tornando impossível a continuidade de quaisquer esforços.

Tal regímen acarreta o parasitismo franco. O homem bebe o leite da vida sugando os vasos túmidos das sifônias…

Mas neste clima singular e típico destacam-se outras anomalias, que ainda mais o agravam. Não bastam as intermitências de cheias e estiagens, sobrevindo rítmicas como a sístole e a diástole da maior artéria na terra. Outros fatos tornam ao forasteiro inúteis todas as tentativas de aclimação real.

Muitas vezes em plena enchente, em abril ou maio, no correr de um dia calmoso e claro, dentro da atmosfera ardente do Amazonas difundem-se rajadas frigidíssimas do sul.

É como uma bafagem enregelada do pólo…

O termômetro desce, então, logo, numa queda única e forte, de improviso. Estabelece-se por alguns dias uma situação inaturável.

Os regatões espertos que esporeados pela ganância se avantajam até ali, e os próprios silvícolas enrijados pela adaptação, acolhem-se aos tijupás, tiritantes, abeirando-se das fogueiras. Cessam os trabalhos. Abre-se um novo hiato nas atividades. Despovoam-se aquelas grandes solidões alagadas, morrem os peixes nos rios, enregelados; morrem as aves nas matas silenciosas, ou emigram; esvaziam-se os ninhos; as próprias feras desaparecem, encafurnadas nas tocas mais profundas — ; e aquela natureza maravilhosa do Equador, toda remodelada pela reação esplêndida dos sois, patenteia um simulacro crudelíssimo de desolamento polar e lúgubre. É o tempo da friagem.

Terminemos, porém, esses debuxos rápidos.

Os sertões do Norte, vimo-lo anteriormente, refletem, por sua vez, novos regímens, novas exigências biológicas. Ali a mesma intercadência de quadras remansadas e dolorosas se espelha mais duramente talvez, sob outras formas.

Ora, se considerarmos que estes vários aspectos climáticos não exprimem casos excepcionais, mas aparecem todos, desde as tormentas do Mato Grosso aos ciclos das secas do Norte, com a feição periódica imanente às leis naturais invioláveis, conviremos em que há no nosso meio físico variabilidade completa.

Daí os erros em que incidem os que generalizam, estudando a nossa fisiologia própria, a ação exclusiva de um clima tropical. Esta exercita-se, sem dúvida, originando patologia sui generis, em quase toda a faixa marítima do Norte e em grande parte dos Estados que lhe correspondem, até ao Mato Grosso. O calor úmido das paragens amazonenses, por exemplo, deprime e exaure. Modela organizações tolhiças em que toda a atividade cede ao permanente desequilíbrio entre as energias impulsivas das funções periféricas fortemente excitadas e a apatia das funções centrais: inteligências marasmáticas, adormidas sob o explodir das paixões; enervações periclitantes, em que pese à acuidade dos sentidos, e mal reparadas ou refeitas pelo sangue empobrecido nas hematoses incompletas…

Daí todas as idiossincrasias de uma fisiologia excepcional: o pulmão que se reduz, pela deficiência da função e é substituído, na eliminação obrigatória do carbono, pelo fígado, sobre o qual desce pesadamente a sobrecarga da vida: organizações combalidas pela alternativa persistente de exaltações impulsivas e apatias enervadoras, sem a vibratilidade, sem o tonus muscular enérgico dos temperamentos robustos e sangüíneos. A seleção natural, em tal meio, opera-se à custa de compromissos graves com as funções centrais, do cérebro, numa progressão inversa prejudicialíssima entre o desenvolvimento intelectual e o físico, firmando inexoravelmente a vitória das expansões instintivas e visando o ideal de uma adaptação que tem, como conseqüências únicas, a máxima energia orgânica, a mínima fortaleza moral. A aclimação traduz uma evolução regressiva. O tipo deperece num esvaecimento contínuo, que se lhe transmite à descendência até a extinção total. Como o inglês em Barbados, na Tasmânia ou na Austrália, o português no Amazonas, se foge ao cruzamento, no fim de poucas gerações tem alterados os caracteres físicos e morais de uma maneira profunda, desde a tez, que se acobreia pelos sóis e pela eliminação incompleta do carbono, ao temperamento, que se debilita despido das qualidades primitivas. A raça inferior, o selvagem bronco, domina-o; aliado ao meio vence-o, esmaga-o, anula-o na concorrência formidável ao impaludismo, ao hepatismo, às pirexias esgotantes, às canículas abrasadoras, e aos alagadiços maleitosos.

Isto não acontece em grande parte do Brasil Central e em todos os lugares do Sul.

Mesmo na maior parte dos sertões setentrionais o calor seco, altamente corrigido pelos fortes movimentos aéreos provindos dos quadrantes de leste, origina disposições mais animadoras e tem ação estimulante mais benéfica.

E volvendo ao sul, no território que do norte de Minas para o sudoeste progride até o Rio Grande, deparam-se condições incomparavelmente superiores:

Uma temperatura anual média de 17° a 20°, num jogo mais harmônico de estações; um regímen mais fixo das chuvas que, preponderantes no verão, se distribuem no outono e na primavera de modo favorável às culturas. Atingindo o inverno, a impressão de um clima europeu é precisa: sopra o SO frigidíssimo sacudindo chuvisqueiros finos e esgarçando garoas; a neve rendilha as vidraças; gelam os banhados, e as geadas branqueiam pelos campos…

…E sua reflexão na História

A nossa história traduz notavelmente estas modalidades mesológicas.

Considerando-a sob uma feição geral, fora da ação perturbadora dos pormenores inexpressivos, vemos, logo na fase colonial, esboçarem-se situações diversas.

Enfeudado o território, dividido pelos donatários felizes, e iniciando-se o povoamento do país com idênticos elementos, sob a mesma indiferença da metrópole, voltada ainda para as últimas miragens da “Índia portentosa”, abriu-se separação radical entre o Sul e o Norte.

Não precisamos rememorar os fatos decisivos das duas regiões. São duas histórias distintas, em que se averbam movimentos e tendências opostas. Duas sociedades em formação, alheadas por destinos rivais — uma de todo indiferente ao modo de ser da outra, ambas, entretanto, evolvendo sob os influxos de uma administração única. Ao passo que no Sul se debuxavam novas tendências, uma subdivisão maior na atividade, maior vigor no povo mais heterogêneo, mais vivaz, mais prático e aventureiro, um largo movimento progressista em suma — tudo isto contrastava com as agitações, às vezes mais brilhantes mas sempre menos fecundas, do Norte — capitanias esparsas e incoerentes, jungidas à mesma rotina, amorfas e imóveis, em função estreita dos alvarás da corte remota.

A história é ali mais teatral porém menos eloquente.

Surgem heróis, mas a estatura avulta-lhes, maior, pelo contraste com o meio; belas páginas vibrantes mas truncadas, sem objetivo certo, em que colaboram, de todo desquitadas entre si, as três raças formadoras.

Mesmo no período culminante, a luta com os holandeses, acampam, claramente distintos em suas tendas de campanha, os negros de Henrique Dias, os índios de Camarão e os lusitanos de Vieira. Mal unidos na guerra, distanciam-se na paz. O drama de Palmares, as correrias dos silvícolas, os conflitos na orla dos sertões, violam a transitória convergência contra o batavo.

Preso no litoral, entre o sertão inabordável e os mares, o velho agregado colonial tendia a chegar ao nosso tempo, imutável, sob o emperramento de uma centralização estúpida, realizando a anomalia de deslocar para uma terra nova o ambiente moral de uma sociedade velha.

Bateu-o, felizmente, a onda impetuosa do Sul.

Aqui, a aclimação mais pronta, em meio menos adverso, emprestou, cedo, mais vigor aos forasteiros. Da absorção das primeiras tribos surgiram os cruzados das conquistas sertanejas, os mamalucos audazes. O paulista — e a significação histórica deste nome abrange os filhos do Rio de Janeiro, Minas, São Paulo e regiões do Sul — erigiu-se como um tipo autônomo, aventuroso, rebelde, libérrimo, com a feição perfeita de um dominador da terra, emancipando-se, insurreto, da tutela longínqua, e afastando-se do mar e dos galeões da metrópole, investindo com os sertões desconhecidos, delineando a epopeia inédita das bandeiras

Este movimento admirável reflete o influxo das condições mesológicas. Não houvera distinção alguma entre os colonizadores de um e outro lado. Em todos prevaleciam os mesmos elementos, que eram o desespero de Diogo Coelho:

“Piores que na terra que peste…”

Mas no Sul a força viva restante no temperamento dos que vinham de romper o mar imoto não se delia num clima enervante; tinha nova componente na própria força da terra; não se dispersava em adaptações difíceis. — Alterava-se, melhorando. O homem sentia-se forte. Deslocado apenas o teatro dos grandes cometimentos, podia volver para o sertão impérvio a mesma audácia que o precipitara nos périplos africanos.

Além disto — frisemos este ponto escandalizando embora os nossos minúsculos historiógrafos — a disposição orográfica libertava-o da preocupação de defender o litoral, onde aproava a cobiça do estrangeiro.

A serra do Mar tem um notável perfil em nossa história. A prumo sobre o Atlântico desdobra-se como a cortina de baluarte desmedido. De encontro às suas escarpas embatia, fragílima, a ânsia guerreira dos Cavendish e dos Fenton. No alto, volvendo o olhar em cheio para os chapadões, o forasteiro sentia-se em segurança. Estava sobre ameias intransponíveis que o punham do mesmo passo a cavaleiro do invasor e da metrópole. Transposta a montanha — arqueada como a precinta de pedra de um continente — era um isolador étnico e um isolador histórico. Anulava o apego irreprimível ao litoral, que se exercia ao norte; reduzia-o a estreita faixa de mangues e restingas, ante a qual se amorteciam todas as cobiças, e alteava, sobranceira às frotas, intangível no recesso das matas, a atração misteriosa das minas…

Ainda mais — o seu relevo especial torna-a um condensador de primeira ordem, no precipitar a evaporação oceânica.

Os rios que se derivam pelas suas vertentes nascem de algum modo no mar. Rolam as águas num sentido oposto à costa. Entranham-se no interior, correndo em cheio para os sertões. Dão ao forasteiro a sugestão irresistível das entradas.

A terra atrai o homem; chama-o para o seio fecundo; encanta-o pelo aspecto formosíssimo; arrebata-o, afinal, irresistívelmente na correnteza dos rios.

Daí o traçado eloquentíssimo do Tietê, diretriz preponderante nesse domínio do solo. Enquanto no São Francisco, no Paraíba, no Amazonas, e em todos os cursos d’água da borda oriental, o acesso para o interior seguia ao arrepio das correntes, ou embatia nas cachoeiras que tombam dos socalcos dos planaltos, ele levava os sertanistas, sem uma remada, para o rio Grande e daí ao Paraná e ao Paranaíba. Era a penetração em Minas, em Goiás, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, no Mato Grosso, no Brasil inteiro. Segundo estas linhas de menor resistência, que definem os lineamentos mais claros da expansão colonial, não se opunham, como ao norte, renteando o passo às bandeiras, a esterilidade da terra, a barreira intangível dos descampados brutos.

Assim é fácil mostrar como esta distinção de ordem física esclarece as anomalias e contrastes entre os sucessos nos dois pontos do país, sobretudo no período agudo da crise colonial, no século XVII.

Enquanto o domínio holandês, centralizando-se em Pernambuco, reagia por toda a costa oriental, da Bahia ao Maranhão, e se travavam recontros memoráveis em que, solidárias, enterreiravam o inimigo comum as nossas três raças formadoras, o sulista, absolutamente alheio àquela agitação, revelava, na rebeldia aos decretos da metrópole, completo divórcio com aqueles lutadores. Era quase um inimigo tão perigoso quanto o batavo. Um povo estranho de mestiços levantadiços, expandindo outras tendências, norteado por outros destinos, pisando, resoluto, em demanda de outros rumos, bulas e alvarás entibiadores. Volvia-se em luta aberta com a corte portuguesa, numa reação tenaz contra os jesuítas. Estes, olvidando o holandês e dirigindo-se, com Ruiz de Montoya a Madri e Díaz Taño a Roma, apontavam-no como inimigo mais sério.

De feito, enquanto em Pernambuco as tropas de von Schoppe preparavam o governo de Nassau, em São Paulo se arquitetava o drama sombrio de Guaíra. E quando a restauração em Portugal veio alentar em toda a linha a repulsa ao invasor, congregando de novo os combatentes exaustos, os sulistas frisaram ainda mais esta separação de destinos, aproveitando-se do mesmo fato para estadearem a autonomia franca, no reinado de um minuto de Amador Bueno.

Não temos contraste maior na nossa história. Está nele a sua feição verdadeiramente nacional. Fora disto mal a vislumbramos nas cortes espetaculosas dos governadores, na Bahia, onde imperava a Companhia de Jesus com o privilégio da conquista das almas, eufemismo casuístico disfarçando o monopólio do braço indígena.

Na plenitude do século XVII o contraste se acentua.

Os homens do Sul irradiam pelo país inteiro. Abordam as raias extremas do Equador. Até aos últimos quartéis do século XVIII, o povoamento segue as trilhas embaralhadas das bandeiras. Seguiam sucessivas, incansáveis, com a fatalidade de uma lei, porque traduziam, com efeito, uma queda de potenciais, as grandes caravanas guerreiras, vagas humanas desencadeadas em todos os quadrantes, invadindo a própria terra, batendo-a em todos os pontos, descobrindo-a depois do descobrimento, desvendando-lhe o seio rutilante das minas.

Fora do litoral, em que se refletia a decadência da metrópole e todos os vícios de uma nacionalidade em decomposição insanável, aqueles sertanistas, avantajando-se às terras extremas de Pernambuco ao Amazonas, semelhavam uma outra raça, no arrojo temerário e resistência aos reveses.

Quando as correrias do bárbaro ameaçavam a Bahia, ou Pernambuco, ou a Paraíba, e os quilombos se escalonavam pelas matas, nos últimos refúgios do africano revoltoso — o sulista, di-lo a grosseira odisseia de “Palmares”, surgia como o debelador clássico desses perigos, o empreiteiro predileto das grandes hecatombes.

É que o filho do Norte não tinha um meio físico que o blindasse de igual soma de energias. Se tal acontecesse, as bandeiras irromperiam também do oriente e do norte e, esmagado num movimento convergente, o elemento indígena desapareceria sem traços remanescentes. Mas o colono nortista, nas entradas para oeste ou para o sul, batia logo de encontro à natureza adversa. Refluía prestes ao litoral sem o atrevimento dos dominadores, dos que se sentem à vontade sobre uma terra amiga, sem as ousadias oriundas da própria atração das, na segunda metade do século XVI, por Sebastião Tourinho, das, na segunda metade do século XVI, por Sebastião Tourinho, no rio Doce, Bastião Álvares, no São Francisco, e Gabriel Soares, pelo Norte da Bahia até às cabeceiras do Paraguaçu, embora tivessem depois os estímulos enérgicos das Minas de Prata, de Belchior Dias, são um pálido arremedo das arremetidas do Anhanguera ou de um Pascoal de Araújo.

Apertados entre os canaviais da costa e o sertão, entre o mar e o deserto, num bloqueio engravecido pela ação do clima, perderam todo o aprumo e este espírito de revolta, eloqüentíssimo, que ruge em todas as páginas da história do Sul.

Tal contraste não se baseia, por certo, em causas étnicas primordiais.

Delineada, deste modo, a influência mesológica em nosso movimento histórico, deduz-se a que exerceu sobre a nossa formação étnica.

Ação do meio na fase inicial da formação das raças

Volvamos ao ponto de partida.

Convindo em que o meio não forma as raças, no nosso caso especial variou demais nos diversos pontos do território as dosagens de três elementos essenciais. Preparou o advento de sub-raças diferentes pela própria diversidade das condições de adaptação. Além disso (é hoje fato inegável) as condições exteriores atuam gravemente sobre as próprias sociedades constituídas, que se deslocam em migrações seculares aparelhadas embora pelos recursos de uma cultura superior. Se isto se verifica nas raças de todo definidas abordando outros climas, protegidas pelo ambiente de uma civilização, que é como o plasma sanguíneo desses grandes organismos coletivos, que não diremos da nossa situação muito diversa? Neste caso — é evidente — a justaposição dos caracteres coincide com íntima transfusão de tendências e a longa fase de transformação correspondente erige-se como período de fraqueza, nas capacidades das raças que se cruzam, alterando o valor relativo da influencia do meio. Este como que estampa, então, melhor, no corpo em fusão, os seus traços característicos. Sem nos arriscarmos demais a paralelo ousado, podemos dizer que, para essas reações biológicas complexas, ele tem agentes mais enérgicos que para as reações químicas da matéria.

Ao calor e à luz, que se exercitam em ambas, adicionam-se, então, a disposição da terra, as modalidades do clima e essa ação de presença inegável, essa espécie de força catalítica misteriosa que difundem os vários aspectos da natureza.

Entre nós, vimo-lo, a intensidade destes últimos está longe da uniformidade proclamada. Distribuíram, como o indica a história, de modo diverso as nossas camadas étnicas, originando uma mestiçagem dissímil.

Não há um tipo antropológico brasileiro.

A formação brasileira no Norte

Procuremos, porém, neste intricado caldeamento a miragem fugitiva de uma sub-raça, efêmera talvez. Inaptos para discriminar as nossas raças nascentes, acolhamo-nos ao nosso assunto. Definamos rapidamente os antecedentes históricos do jagunço.

Ante o que vimos a formação brasileira do Norte é mui diversa da do Sul. As circunstâncias históricas, em grande parte oriundas das circunstâncias físicas, originaram diferenças iniciais no enlace das raças, prolongando-as até o nosso tempo.

A marcha do povoamento, do Maranhão à Bahia, revela-as.

Os primeiros povoadores

Foi vagaroso. As gentes portuguesas não abordavam o litoral do Norte robustecidas pela força viva das migrações compactas, grandes massas invasoras capazes, ainda que destacadas do torrão nativo, de conservar, pelo número, todas as qualidades adquiridas em longo tirocínio histórico. Vinham esparsas, parceladas em pequenas levas de degredados ou colonos contrafeitos, sem o desempenho viril dos conquistadores.

Deslumbrava-as ainda o Oriente.

O Brasil era a terra do exílio; vasto presídio com que se amedrontavam os heréticos e os relapsos, todos os passíveis do morra per ello da sombria justiça daqueles tempos. Deste modo nos primeiros tempos o número reduzido de povoadores contrasta com a vastidão da terra e a grandeza da população indígena. As instruções dadas, em 1615, ao capitão Fragoso de Albuquerque, a fim de regular com o embaixador espanhol em França o tratado de tréguas com La Ravardière, são claras a respeito. Ali se afirma “que as terras do Brasil não estão despovoadas porque nelas existem mais de 3 mil portugueses” .

Isto para o Brasil todo — mais de cem anos após o descobrimento…

Segundo observa Aires de Casal [ 9 ] “a população crescia tão devagar que na época da perda do sr. d. Sebastião (1580) ainda não havia um estabelecimento fora da ilha de Itamaracá cujos vizinhos andavam por uns duzentos, com três engenhos de açúcar”.

Quando alguns anos mais tarde se povoou melhor a Bahia, a desproporção entre o elemento europeu e os dois outros continuou desfavorável, em progressão aritmética perfeita. Segundo Fernão Cardim, ali existiam 2 mil brancos, 4 mil negros e 6 mil índios. É visível durante muito tempo a predominância do elemento autóctone. Nos primeiros cruzados, portanto, ele deve ter influído muito.

Os forasteiros que aproavam àquelas plagas eram, ademais, de molde para essa mistura em larga escala. Homens de guerra, sem lares, afeitos à vida solta dos acampamentos, ou degredados e aventureiros corrompidos, norteava-os a todos como um aforismo o ultra equinotialem non peccavi, na frase de Barléus. A mancebia com as caboclas descambou logo em franca devassidão, de que nem o clero se isentava. O padre Nóbrega definiu bem o fato, na célebre carta ao rei (1549) em que, pintando com ingênuo realismo a dissociação dos costumes, declara estar o interior do país cheio de filhos de cristãos, multiplicando-se segundo os hábitos gentílicos. Achava conveniente que lhe enviassem órfãs, ou mesmo mulheres que fossem erradas, que todas achariam maridos, por ser a terra larga e grossa. A primeira mestiçagem fez-se, pois, nos primeiros tempos, intensamente, entre o europeu e o silvícola. “Desde cedo, di-lo Casal, os tupiniquins, gentio de boa índole, foram cristianizados e aparentados com os europeus, sendo inúmeros os brancos naturais do país com casta tupiniquina.”

Por outro lado, embora existissem em grande cópia mesmo no reino, os africanos tiveram, no primeiro século, uma função inferior. Em muitos lugares rareavam. Eram poucos, diz aquele narrador sincero, no Rio Grande do Norte, “onde os índios há largo tempo que foram reduzidos, apesar da sua ferocidade e cujos descendentes por meio das alianças com os europeus e africanos têm aumentado as classes dos brancos e dos pardos” .

Estes excertos são expressivos.

Sem ideia alguma preconcebida, pode-se afirmar que a extinção do indígena, no Norte, proveio, segundo o pensar de Varnhagen, mais em virtude de cruzamentos sucessivos que de verdadeiro extermínio.

Sabe-se ainda que havia no ânimo dos donatários a preocupação de aproveitar-lhes o mais possível a aliança, captando-lhes o apego. Este proceder refletia os intuitos da metrópole. Demonstram-no-lo as sucessivas cartas régias que, de 1570 a 1758 — em que pese “a uma série nunca interrompida de hesitações e contradições” [ 10 ] — apareceram como minorativo à ganância dos colonos visando a escravização do selvagem. — Sendo que algumas, como a de 1680, estendiam a proteção ao ponto de decretar que se concedessem ao gentio terras “ainda mesmo as já dadas a outros de sesmaria”, visto que deviam ter preferência os mesmos índios “naturais senhores da terra” .

Os Jesuítas

Contribuiu para esta tentativa persistente de incorporação a Companhia de Jesus que, obrigando-se no Sul a transigências forçadas, dominava no Norte. Excluindo quaisquer intenções condenáveis, os jesuítas ali realizaram tarefa nobilitadora. Foram ao menos rivais do colono ganancioso. No embate estúpido da perversidade contra a barbaria, apareceu uma função digna àqueles eternos condenados. Fizeram muito. Eram os únicos homens disciplinados de seu tempo. Embora quimérica a tentativa de alçar o estado mental do aborígine às abstrações do monoteísmo, ela teve o valor de o atrair por muito tempo, até a intervenção oportuna de Pombal, para a nossa história.

O curso das missões, no Norte, em todo o trato de terras do Maranhão à Bahia, patenteia sobretudo um lento esforço de penetração no âmago das terras sertanejas, das fraldas da Ibiapaba às da Itiúba, que completa de algum modo a movimentação febril das bandeiras. Se estas difundiam largamente o sangue das três raças pelas novas paragens descobertas, provocando um entrelaçamento geral, a despeito das perturbações que acarretavam — os aldeamentos, centros da força atrativa do apostolado, fundiam as malocas em aldeias; unificavam as cabildas; integravam as tribos. Penetrando fundo nos sertões, graças a um esforço secular, os missionários salvaram em parte este fator das nossas raças. Surpreendidos vários historiadores pela vinda, em grandíssima escala, do africano, que iniciada em fins do século XVI nunca mais parou até o nosso (1850) e considerando que ele foi o melhor aliado do português na quadra colonial, dão-lhe geralmente influência exagerada na formação do sertanejo do Norte. Entretanto, em que pese a esta invasão de vencidos e infelizes, e à sua fecundidade rara, e a suas qualidades de adaptação, apuradas na África adusta, é discutível que ela tenha atingido profundamente os sertões.

É certo que o consórcio afro-lusitano era velho, anterior mesmo ao descobrimento, porque se consumara desde o século 15, com os azenegues e jalofos de Gil Eanes e Antão Gonçalves. Em 1530 salpintavam as ruas de Lisboa mais de 10 mil negros, e o mesmo sucedia noutros lugares. Em Évora tinham maioria sobre os brancos.

Os versos de um contemporâneo, Garcia de Resende, são um documento:

Vemos no reino meter,
Tantos cativos crescer,
Irem-se os naturais,
Que, se assim for, serão mais
Eles que nós, a meu ver.

Gênese do mulato

Assim a gênese do mulato teve uma sede fora do nosso país. A primeira mestiçagem com o africano operou-se na metrópole. Entre nós, naturalmente, cresceu. A raça dominada, porém, teve, aqui, dirimidas pela situação social, as faculdades de desenvolvimento. Organização potente afeita à humildade extrema, sem as rebeldias do índio, o negro teve, de pronto, sobre os ombros toda a pressão da vida colonial. Era a besta de carga adstrita a trabalhos sem folga. As velhas ordenações, estatuindo o “como se podem enjeitar os escravos e bestas por os acharem doentes ou mancos” , denunciam a brutalidade da época. Além disto — insistamos num ponto incontroverso — as numerosas importações de escravos se acumulavam no litoral. A grande tarja negra debruava a costa da Bahia ao Maranhão, mas pouco penetrava o interior. Mesmo em franca revolta, o negro humilde feito quilombola temeroso, agrupando-se nos mocambos, parecia evitar o âmago do país. Palmares, com seus 30 mil mocambeiros, distava afinal poucas léguas da costa.

Nesta última a uberdade da terra fixara simultaneamente dois elementos, libertando o indígena. A cultura extensiva da cana, importada da Madeira, determinara o olvido dos sertões. Já antes da invasão holandesa [ 11 ], do Rio Grande do Norte à Bahia havia cento e sessenta engenhos. E esta exploração, em dilatada escala, progrediu depois em rápido crescendo.

O elemento africano de algum modo estacou nos vastos canaviais da costa, agrilhoado à terra e determinando cruzamento de todo diverso do que se fazia no recesso das capitanias. Aí campeava, livre, o indígena inapto ao trabalho e rebelde sempre, ou mal tolhido nos aldeamentos pela tenacidade dos missionários. A escravidão negra, constituindo-se derivativo ao egoísmo dos colonos, deixava aqueles mais desembaraçados que no Sul, nos esforços da catequese. Os próprios sertanistas ao chegarem, ultimando as rotas atrevidas, àquelas paragens, tinham extinta a combatividade.

Alguns, como Domingos Sertão, cerravam a vida aventureira, atraídos pelos lucros das fazendas de criação, abertas naqueles grandes latifúndios.

Deste modo se estabeleceu distinção perfeita entre os cruzamentos realizados no sertão e no litoral.

Com efeito, admitido em ambos como denominador comum o elemento branco, o mulato erige-se como resultado principal do último e o curiboca do primeiro.

[ 6 ] Respectivamente, produtos do negro e do branco; do branco e do tupi (cari-boc, que procede do branco); do tupi e do negro. Abrange-os, como termo genérico, embora de preferência aplicado ao segundo, a palavra mameluco, ou melhor, mamaluco. Mamâ-ruca, tirado da mistura. De mamâ — misturar — ruca — tirar.
[ 7 ] Dr. João Severiano da Fonseca, Viagem ao Redor do Brasil.
[ 8 ] Draenert. O Clima do Brasil.
[ 9 ] P. 195, Corografia Brasílica.
[ 10 ] João Francisco Lisboa.
[ 11 ] Diogo de Campos Moreno, Livro que Dá Razão do Estado do Brasil.