Travessia do Cambaio, IV

Nos Tabuleirinhos

As colunas chegaram à tarde em “Tabuleirinhos”, quase à orla do arraial, e não prosseguiram aproveitando o ímpeto da marcha perseguidora. Combalidos da refrega e famintos desde a véspera, tiveram apenas abrandada a sede na água impura da lagoa minúscula do Cipó, e acamparam. Fizeram-no, porém, com o desleixo das fadigas acumuladas e, talvez, também com a ilusão enganadora do triunfo recente. De sorte que não pressentiram, em torno, a sobre-rolda dos jagunços. Porque a nova da investida chegara ao arraial com os foragidos; e para quebrar o ímpeto do invasor sobrestante , grande numero de lutadores de lá partiram. Meteram-se, imperceptíveis, pelas caatingas; e aproximaram-se do acampamento.

À noite circularam-no. A tropa adormeceu sob a guarda terrível do inimigo..

Segundo combate

Ao amanhecer, porém, nada lho revelou; e, formadas cedo, as colunas dispuseram-se ao último arranco sobre o arraial, depois de um quarto de hora e marche-marche sobre o terreno, que ali é desafogado e chão.

Mas antes de abalarem sobreveio ligeiro contratempo. Um shrapnel emperrara na alma de um dos canhões resistindo a todos os esforços pare a extração. Adotou-se, então, o melhor dos alvitres: disparar o Krupp na direção provável de Canudos.

Seria uma aldravada batendo às portas do arraial, anunciando estrepitosamente o visitante importuno e perigoso.

De fato, o tiro partiu… E a tropa foi salteada por toda a banda! Reeditou-se o episódio de Uauá. Abandonando as espingardas imperfeitas pelos varapaus, pelos fueiros dos carros, pelas foices, pelas forquilhas, pelas aguilhadas longas e pelos facões de folha larga, os sertanejos enterreiraram-na, surgindo em grita, todos a um tempo, como se aquele disparo lhes fosse um sinal prefixo para o assalto.

Felizmente os expedicionários, em ordem de marcha, tinham prontas as armas para a réplica, que se realizou logo em descargas rolantes e nutridas.

Mas os jagunços não recuaram. O arremesso da investida jogara-os dentro dos intervalos dos pelotões. E pela primeira vez os soldados viam, de perto, as faces trigueiras daqueles antagonistas, até então esquivos, afeitos às correrias velozes nas montanhas…

A primeira vítima foi um cabo do 9°. Morreu matando.

Ficou trespassado na sua baioneta o jagunço que o abatera atravessando-o com o ferrão de vaqueiro.

A onda assaltante passou sobre os dois cadáveres.

Tomara-lhe a frente um mamaluco possante — rosto de bronze afeado pela pátina das sardas —, de envergadura de gladiador sobressaindo no tumulto. Este campeador terrível ficou desconhecido à história. Perdeu-se-lhe o nome . Mas não a imprecação altiva que arrojou sobre a vozeria e sobre os estampidos, ao saltar sobre o canhão da direita, que abarcou nos braços musculosos, como se estrangulasse um monstro:

“Viram, canalhas, o que é ter coragem?!”

A guarnição da peça recuara espavorida, enquanto ela rodava, arrastada a braço, apresada.

Era o desastre iminente.

Avaliou-o o comandante expedicionário, que tudo indica ter sido o melhor soldado da própria expedição que dirigia. Animou valentemente os companheiros atônitos e, dando-lhes o exemplo, precipitou-se contra o grupo. E a luta travou-se braço a braço, brutalmente, sem armas, a punhadas, quase surda: um torvelinho de corpos enleados, de onde se difundiam estertores de estrangulados, ronquidos de peitos ofegantes, baques de quedas violentas…

O canhão retomado volveu à posição primitiva. As coisas, porém, não melhoraram. Apenas repelidos os jagunços, num retroceder repentino que não era uma fuga, mas uma negaça perigosa, fervilhavam no matagal rarefeito, em roda: vultos céleres, fugazes, indistintos, aparecendo e desaparecendo nos claros das galhadas. Novamente esparsos e intangíveis, punham, ressoantes, sobre os contrários, os projéteis grosseiros — pontas de chifre, seixos rolados, e pontas de pregos — de sua velha ferramenta da morte, desde muito desusada. [ 68 ] Renovavam o duelo à distancia, antepondo as espingardas de pederneira e os trabucos de cano largo às mannlichers fulminantes. Volviam ao sistema habitual de guerra, o que era delongar indefinidamente a ação, dando-lhe um caráter mais sério que o do ataque violento anterior, fazendo-a derivar cruelmente monótona, sem peripécias, na iteração fatigante dos mesmos incidentes, até ao esgotamento completo do adversário que, relativamente incólume, cairia afinal exausto de os bater, vencido pelo cansaço de minúsculas vitórias, num asfaltamento trágico de algozes enfastiados de matar; punhos amolecidos e frouxos pelo multiplicado dos golpes; forças perdidas em arremessos doidos contra o vácuo.

A situação desenhou-se insanável.

Restava aos invasores um recurso em desespero de causa: o avançar aforradamente, deslocando o campo do combate, e cair sobre o arraial, assaltantes e assaltados, tendo às ilhargas os guerrilheiros atrevidos, e talvez na frente, antes da entrada daquele, outros reforços tolhendo-lhes o passo. Mas, nesse pelejar em marcha de três quilômetros, as munições, prodigamente gastas na façanha prejudicial do Cambaio, talvez se extinguissem em caminho e não podia alvitrar-se o meio extremo de se ultimar a empresa a choques de armas brancas, ante a sobrecarga muscular dos soldados famintos e combalidos, a que se aditavam cerca de setenta feridos, agitando-se, inúteis, na desordem.

Estava, além disto, excluída a hipótese eficaz de um bombardeio preliminar: restavam apenas vinte litros de artilharia.

A retirada impô-se urgente e inevitável. Reunida em plena refrega a oficialidade, o comandante definiu-lhe a situação e determinou que optasse por uma das pontas do dilema: o prosseguimento da luta até ao sacrifício completo ou o seu abandono imediato. Foi aceita a última sob a condição expressa de não se deixar uma única arma, um único ferido e não ficar um único cadáver insepulto.

Este recuo, entretanto, era de todo contraposto aos resultados diretos do combate. Como na véspera, as perdas sofridas de um e outro lado estavam fora de qualquer paralelo. A tropa perdera apenas quatro homens, excluídos trinta e tantos feridos, ao passo que os contrários, desconhecidos o número dos últimos, foram dizimados.

Um dos médicos [ 69 ] contou rapidamente mais de trezentos cadáveres. Tingira-se a água impura da lagoa do Cipó e o sol — batendo de chapa na sua superfície, destacava-a sinistramente no pardo escuro da terra requeimada, como uma nódoa amplíssima, de sangue…

A Legio Fulminata de João Abade

A retirada foi a salvação. Mas o investir de arranco com o arraial, arrostando tudo, talvez fosse a vitória.

Desvendemos — arquivando depoimentos de testemunhas contestes — um dos casos originais dessa campanha. Algum tempo depois de travado o conflito em Tabuleirinhos, os habitantes de Canudos, impressionados com a intensidade dos tiroteios, alarmaram-se; e prevendo as conseqüências que adviriam se os soldados ali chegassem, de chofre, caindo sobre a beataria medrosa, João Abade reuniu o resto dos homens válidos, cerca de seiscentos, seguindo em reforço aos companheiros. A meio caminho, porém, a sua coluna foi inopinadamente colhida pelas balas. Atirando contra os primeiros agressores no lugar do encontro, os soldados mal apontavam; de sorte que, na maior parte, os tiros, partindo em trajetórias altas, se lançavam segundo o alcance máximo das armas. Ora, todos estes projéteis perdidos, passando sobre os combatentes, iam cair, adiante, no meio da gente de João Abade. Os jagunços, perplexos, viam os companheiros baqueando, como fulminados; percebiam o assovio tenuíssimo das balas e não lobrigavam o inimigo. Em torno os arbúsculos estonados e raros não permitiam tocaias; os cerros mais próximos viam-se desnudos, desertos. E as balas desciam incessantes, aqui, ali, de soslaio, de frente, pelo centro da legião surpreendida, pontilhando-a de mortos — como uma chuva silenciosa de raios… Um assombro supersticioso sombreou logo nos rostos mais enérgicos. Volveram, atônitos, as vistas para o firmamento ofuscante, varado pelos ramos descendentes das parábolas invisíveis; e não houve, depois, contê-los. Precipitaram-se, desapoderadamente, para Canudos, onde chegaram originando alarma espantoso.

Não havia ilusão possível: o inimigo, dispondo de engenhos de tal ordem, ali estaria em breve, sobrestante, no rastro dos derradeiros defensores do arraial. Quebrou-se o encanto do Conselheiro. Tonto de pavor, o povo ingênuo perdeu, em momentos, as crenças que o haviam empolgado. Bandos de fugitivos, sobraçando trouxas estavanadamente feitas, porfiavam na fuga, atravessando rápidos, a praça e os becos, demandando as caatingas, sem que as contivessem os cabecilhas mais prestigiosos; enquanto as mulheres, em desalinho, em gritos, soluçando, clamando, numa algazarra indefinível, mas ainda fascinadas, agitando os relicários, rezando, se agrupavam à porta do Santuário implorando a presença do evangelizador.

Novo milagre de Conselheiro

Mas Antônio Conselheiro, que nos dias normais mesmo evitava encará-las, naquelas aperturas estabeleceu separação completa. Subiu com meia dúzia de fiéis para os andaimes altos da igreja nova, e fez retirar, depois, a escada.

O agrupamento agitado ficou embaixo, imprecando, chorando, rezando. Não olhou sequer o apóstolo esquivo, atravessando impassível sobre as tábuas que infletiam, rangendo.

Atentou para o povoado revolto, em que se atropelavam, prófugos, os desertores da fé, e preparou-se para o martírio inevitável…

Neste comenos sobreveio a nova de que a força recuava.

Foi um milagre. A desordem desfechava em prodígio.

[ 68 ] Os incidentes desta jornada, devo-os ao depoimento fidedigno do dr. Albertazzi.
[ 69 ] Dr. Edgar Henrique Albertazzi.