Quarta expedição, VIII

Novos reforços

Este ataque chegou à Bahia com as proporções de batalha perdida, pondo mais um solavanco no desequilíbrio geral, mais uma dúzia de boatos no turbilhonar das conjeturas; e o governo começou a agir com a presteza requerida pela situação. Reconhecida a ineficácia dos reforços recém-enviados, cuidou de formar uma nova divisão, arrebanhando os últimos batalhões dispersos pelos Estados, capazes de mobilização rápida. E, para pulsear de perto a crise, resolveu enviar para a base de operações um de seus membros, o Secretário de Estado dos Negócios da Guerra, marechal Carlos Machado de Bittencourt.

Este seguiu em agosto para a Bahia, ao tempo que de todos os ângulos do país abalavam novos lutadores. O movimento armado repentinamente se generalizava, assumindo a forma de um levantamento em massa.

As tropas confluíam do extremo norte e do extremo sul, acrescidas dos corpos policiais de São Paulo, Pará e Amazonas. Nessa convergência para o seio da antiga metrópole, o paulista, forma delida do bandeirante aventuroso; o rio-grandense, cavaleiro e bravo; e o curiboca nortista, resistente como poucos — índoles díspares, homens de opostos climas, contrastando nos usos e tendências étnicas, do mestiço escuro ao caboclo trigueiro e ao branco, ali se agremiavam sob o liame de uma aspiração uniforme. A antiga capital agasalhava-os no recinto de seus velhos baluartes, rodeando num mesmo afago carinhoso e ardente a imensa prole havia três séculos erradia. Depois de longamente dispersos os vários fatores da nossa raça volviam repentinamente ao ponto de onde tinham partido, tendendo para um entrelaçamento belíssimo. A Bahia ataviara-se para os receber. Transfigurou-a aquele fluxo da campanha — mártires que chegavam, combatentes que seguiam — e, partida a habitual apatia, revestiu a feição guerreira do passado. As inúteis fortalezas, que se lhe intercalam, decaídas à parceria burguesa das casas, no alinhamento das ruas, prontamente reparadas, cortadas as árvores que nasciam nas fendas das suas muralhas, ressurgiam à luz, recordando as quadras em que rugiam naquelas ameias as longas colubrinas de bronze.

Nelas aquartelavam os contingentes recém-vindos: o 1° Batalhão Policial de São Paulo, com 458 praças e 21 oficiais, comandado pelo tenente-coronel Joaquim Elesbão dos Reis; os 29º, 39°, 37°, 28º, e 4°, dirigidos pelo coronel João César de Sampaio, tenentes-coronéis José da Cruz, Firmino Lopes Rego e Antônio Bernardo de Figueiredo e major Frederico Mara, com efetivos sucessivos de 240 praças e 27 oficiais, 250 praças e 40 oficiais, 332 praças e 51 oficiais, 250 praças e 11 oficiais, além de 36 alferes adidos, e o 4° com 219 praças e 11 alferes que eram toda a oficialidade, não tendo nem capitães nem tenentes. Por fim dois corpos: o Regimento Policial do Pará, somando 640 combatentes, comandados pelo coronel José Sotero de Meneses, e um da polícia do Amazonas, sob o comando do tenente Cândido José Mariano, com 328 soldados.

Estes reforços, que montavam a 2.914 homens incluídos perto de trezentos oficiais, foram repartidos em duas brigadas, a de linha, ao mando do coronel Sampaio e os da polícia — excluída a de São Paulo, que seguira isolada na frente, sob o do coronel Sotero — constituindo uma divisão que foi entregue ao general de Brigada Carlos Eugênio de Andrade Guimarães.

Todo o mês de agosto gastou-se em mobilizá-los. Chegavam destacadamente à Bahia; municiavam-se e embarcavam para Queimadas e dali para Monte Santo, onde deviam concentrar-se nos primeiros dias de setembro.

Os batalhões de linha, além de desfalcados, como o indicam os números acima, reduzidos quase a duas companhias, vinham desprovidos de tudo, sem os mais simples apetrechos bélicos — à parte as espingardas velhas e o fardamento ruço, que haviam servido na recente campanha federalista do Sul.

O marechal Carlos Machado de Bittencourt

O marechal Carlos Machado de Bittencourt, principal árbitro da situação, desenvolveu, então, atividade notável.

Vinha de molde para todas as dificuldades do momento.

Era um homem frio, eivado de um ceticismo tranquilo e inofensivo. Na sua simplicidade perfeitamente plebéia se amorteciam todas as expansões generosas. Militar às direitas, seria capaz — e demonstrou-o mais tarde ultimando tragicamente a vida — de se abalançar aos maiores riscos. Mas friamente, equilibradamente, encarrilhado nas linhas inextensíveis do dever. Não era um bravo e não era um pusilânime.

Ninguém podia compreendê-lo arrebatado num lance de heroísmo. Ninguém podia imaginá-lo subtraindo-se tortuosamente a uma conjuntura perigosa. Sem ser uma organização militar completa e inteiriça, afeiçoara-se todavia ao automatismo típico dessas máquinas de músculos e nervos feitas para agirem mecanicamente à pressão inflexível das leis.

Mas isto menos por educação disciplinar e sólida que por temperamento, inerte, movendo-se passivo, comodamente endentado na entrosagem complexa das portarias e dos regulamentos. Fora disto era um nulo. Tinha o fetichismo das determinações escritas. Não as interpretava, não as criticava: cumpria-as. Boas ou péssimas, absurdas, extravagantes, anacrônicas, estúpidas ou úteis, fecundas, generosas e dignas, tornavam-no proteiforme, espelhando-as — bom ou detestável, extravagante ou generoso e digno. Estava escrito. Por isto, todas as vezes que os abalos políticos lhas baralhavam, se retraía cautelosamente ao olvido.

O marechal Floriano Peixoto — profundo conhecedor dos homens do seu tempo — nos períodos críticos de seu governo, em que a índole pessoal de adeptos ou adversários influía, deixou-o sempre, sistematicamente, de parte. Não o chamou; não o afastou; não o prendeu. Era-lhe por igual desvalioso como adversário ou partidário. Sabia que o homem, cuja carreira se desatava numa linha reta, seca, inexpressiva e intorcível, não daria um passo a favor ou contra no travamento dos estados de sítio.

A República fora-lhe acidente inesperado no fim da vida.

Não a amou nunca. Sabem-no quantos com ele lidaram. Foi-lhe sempre novidade irritante, não porque mudasse os destinos de um povo senão porque alterava umas tantas ordenanças e uns tantos decretos, e umas tantas fórmulas, velhos preceitos que sabia de cor e salteado.

Ao seguir para a Bahia desenfluíra todos os entusiasmos. Quem dele se abeirasse, buscando alentos de uma intuição feliz ou um traço varonil, sulcando a situação emocionante e grave, que até lá o arrastava, topava, surpreso, a esterilidade de uns conceitos triviais, longas frivolidades cruelmente enfadonhas sobre paradas de tropas, intermináveis minúcias sobre distribuição de gêneros e remontas de cavalhadas — como se este mundo todo fosse uma imensa Casa da Ordem, e a História uma variante da escrituração dos sargentos.

Saltou naquela capital quando ia em sua plenitude o fervor patriótico de todas as classes; e de algum modo o amorteceu. Manifestações ruidosas, versos flamívomos, oradores explosivos passaram-lhe por diante, estrondaram-lhe em torno, deflagraram-lhe aos ouvidos, num estrepitar de palmas e aplausos. Ouviu-os indiferente e contrafeito. Não sabia respondê-las. Tinha a frase emperrada e pobre. Além disso, tudo quanto saía do passo ordinário da vida não o comovia, desorientava-o, contrariava-o.

Recém-vindos da luta, requerendo uma transferência ou uma licença, nada adiantavam se, dispensando a formalidade de um atestado médico, lhe pusessem à vista apenas o rombo de um tiro de trabuco ou um gilvaz sanguíneo ou um rosto cadavérico de esmaleitado. Eram coisas banais, do ofício.

Quadro lancinante

Certa vez essa insensibilidade lastimável calou profundamente. Foi numa visita a um dos hospitais.

O quadro do amplo salão era impressionador…

Imaginem-se dois extensos renques de leitos alvadios, e sobre eles — em todas as atitudes, rígidos debaixo dos lençóis escorridos como mortalhas; de bruços, ou acaroados com os travesseiros, em mudos paroxismos de dores; sentados, ou acurvados, ou estorcendo-se em gemidos — quatrocentos baleados! Cabeças envoltas em tiras sanguinolentas; braços partidos, em tipóias; pernas encanadas, em talas, rigidamente estendidas; pés disformes pela inchação, atravessados de espinhos; peitos broqueados à bala ou sarjados à faca; todos os traumatismos e todas as misérias…

A comitiva que encalçava o ministro — autoridades estaduais e militares, jornalistas, homens de toda a condição — ali entrou silenciosamente, tolhida de assombros.

Começou a lúgubre visita. O marechal aproximava-se de um ou outro leito, lendo maquinalmente a papeleta pendida à cabeceira; e seguia.

Mas teve que estacar um momento. Surgira-lhe em frente, emergindo dos cobertores, a face abatida de um velho, um cabo de esquadra, veterano de 35 anos de fileira. Uma vida batida a coice de armas desde os pântanos do Paraguai às caatingas de Canudos… E no rosto macilento do infeliz resplandecia um belo riso jovial e forte. Reconhecera o ministro do qual fora ordenança nos bons tempos de moço, em que o acompanhara na batalha, nos acantonamentos, nas longas marchas fatigantes. E dizia-o, agitado, voz sacudida e rouca, numa alegria dolorosíssima, num delírio de frases rudes e sinceras — olhos refulgentes de alacridade e de febre, e forçando por erguer-se, abordoando o tronco esmirrado aos braços finos e trêmulos; entreaberta a camisa de algodão deixando ver, na clavícula, a nódoa de uma cicatriz antiga…

Era empolgante a cena. Resfolegaram surdamente, opressos, todos os peitos. Empanaram-se todas as vistas, de lágrimas… e o marechal Bittencourt prosseguiu, tranquilamente, continuando a leitura maquinal das papeletas.

É que tudo aquilo — fortes emoções ou quadros lancinantes — estava fora do programa. Não o distraía.

Era realmente o homem feito para aquela emergência. O governo não depararia quem melhor lhe transmitisse a ação, intacta, rompendo retilineamente no tumulto da crise.

Nesse abnegar-se a si próprio, abdicando todas as regalias da própria posição, fez-se, na lídima significação do termo, o Quartel-Mestre-General de uma campanha em que era chefe supremo um seu inferior hierárquico.

É que um bom senso sólido, blindado da frieza que o libertava de quaisquer perturbações, fizera que ele apanhasse, de um lance, as exigências reais da luta. Destas — compreendeu-o logo — a menos valiosa era, de certo, a acumulação de um maior número de combatentes no conflito. Estes, penetrando a região conflagrada, agravariam antes o estado dos companheiros, que pretendessem auxiliar, se lá fossem compartir as mesmas provações, reduzir-lhes os recursos escassos no concorrerem à mesma penúria. O que era preciso combater a todo o transe, e vencer, não era o jagunço, era o deserto. Fazia-se imprescindível dar à campanha o que ela ainda não tivera: uma linha e uma base de operações. Terminava-se por onde devia começar-se. E foi essa a empresa impulsionada com sucesso pelo ministro. Atraído durante toda a estadia na Bahia por sem número de questões de pormenores — equipamento dos batalhões que chegavam e acomodações para as turmas incessantes de feridos — o seu espírito superpunha-lhes sempre aquele objetivo capital, condição preponderante, e talvez única, do sério problema a resolver. Venceu-o, por fim, num destruir tenaz de numerosas dificuldades.

Nos últimos dias de agosto organizara-se, afinal, definitivamente, um corpo regular de comboios, atravessando continuamente os caminhos e ligando de modo efetivo, com breves intervalos de dias, o exército em operações a Monte Santo.

Este resultado pressagiava o desenlace próximo da contenda. Porque desde o começo, revelam-no as expedições antecedentes, as causas do insucesso em grande parte repousavam no insulamento em que cegamente se encravaram os expedicionários perdendo-se na região estéril, isolando-se diante do inimigo em espetaculosas diligências policiais, onde não havia rastrear-se os mínimos preceitos da estratégia.

O marechal Bittencourt fez, pelo menos, isto: transmudou um conflito enorme em campanha regular. A que até então se fizera traduzira-se num prodigalizar inútil da bravura, mas o heroísmo e abnegação mais rara não a impulsionaram. Cristalizara num assédio platônico e dúbio, recortado de fuzilarias inúteis, em que se jogava nobre e estupidamente a vida. E este prolongar-se-ia, indeterminado, até que o arraial sinistro absorvesse, um a um, os que o acometiam. Em tal caso a simples substituição dos que ali tombavam — oito a dez por dia — por outros, tornava-se um círculo vicioso crudelíssimo. Além disto, numerosos assaltantes eram uma agravante. Circulariam todo o povoado, trancar-lhe-iam todas as saídas, mas teriam, passados poucos dias, latentes em roda, as linhas do outro cerco intangível e formidável — o deserto recretado, das caatingas, pondo-os nas aperturas crescentes e inelutáveis da fome.

Previu-o o marechal Bittencourt.

Colaboradores prosaicos demais…

Um estrategista superior, atraído pela forma técnica e alta da questão, gizaria rasgos estupendos de tática e não a resolveria. Um lidador brilhante idearia novas arrancadas impetuosas, que esmagassem de vez a rebeldia, e extenuar-se-ia, inútil, a marche-marche pelas caatingas. O marechal Bittencourt, indiferente a tudo isto — impassível dentro da impaciência geral — organizava comboios e comprava muares…

De feito, aquela campanha cruenta e na verdade dramática só tinha uma solução, e esta singularmente humorística.

Mil burros mansos valiam na emergência por 10 mil heróis. A luta com todo o seu cortejo de combates sangrentos descambava, deploravelmente prosaica, a um plano obscuro.

Dispensava o heroísmo, desdenhava o gênio militar, excluía o arremesso das brigadas, e queria tropeiros e azêmolas. Esta maneira de ver implicava com o lirismo patriótico e doía, feito um epigrama malévolo da História, mas era a única. Era forçada a intrusão pouco lisonjeira de tais colaboradores em nossos destinos. O mais caluniado dos animais ia assentar, dominadoramente, as patas entaloadas em cima de uma crise, e esmagá-la…

Ademais, somente eles podiam dar às operações a celeridade exigida pelas circunstâncias. É o caso que a guerra só podia delongar-se por mais dois meses, no máximo. Mais três meses seriam — e não havia remover a conclusão inabalável — a derrota, o abandono de quanto se havia feito, a paralisação obrigada.

Ia entrar, em novembro, sobre aquela zona, o regímen torrencial e dele decorreriam consequências insanáveis.

Nos leitos, até então secos, dos regatos, acachoariam rios de águas barrentas, e o Vaza-Barris, intumescido de repente, transmudar-se-ia em onda enorme e dilatada, rolando transbordante, intransponível, cortando todas as comunicações.

Depois, quando as caudais se extinguissem, rápidas — porque o turbilhão das águas, derivando para o São Francisco e para o mar, se esgota com a mesma celeridade com que se forma — despontariam entraves mais graves. Sob a adustão dos dias ardentíssimos, cada banhado, cada lagoa efêmera, cada caldeirão encovado nas pedras, cada poça de água — é um laboratório infernal, destilando a febre que irradia latente nos germens do impaludismo, profusamente disseminados nos ares, ascendendo em número infinito de cada ponto em que bata um raio de sol e descendo sobre as tropas, milhares de organismos em que as fadigas criavam receptividade mórbida funesta.

Era preciso liquidar a pendência antes dessa quadra perigosa, dispondo as coisas para um sítio real e firme determinando a rendição imediata. E, vencido o inimigo que podia ser vencido, recuar incontinente ante o inimigo invencível e eterno — a terra desolada e estéril. Mas para tal era indispensável garantir-se a subsistência do exército que, com os recentes reforços, montaria cerca de 8 mil homens.

Conseguiu-o o ministro da Guerra.

De sorte que ao partir, em começo de setembro, para Queimadas — estavam dispostos todos os elementos para desenlace próximo: aguardavam-no, concentradas em Monte Santo, as brigadas da “Divisão Auxiliar”; seguiam, ainda que raros, os primeiros comboios regulares para Canudos.

Em Canudos

Iam ainda a tempo de reanimar a expedição que até àquela data atravessara, presa aos flancos do arraial, quarenta e tantos dias de agitação perigosa e inútil. Definimo-la já, em breve diário, que não alongamos para evitar a mesmice dolorosa de episódios sucedendo-se sem variantes apreciáveis.

Os mesmos tiroteios improvisos, violentos, instantâneos, em horas incertas; os mesmos armistícios enganadores; a mesma apatia recortada de alarmas; a mesma calma estranha e esmagadora, intermitentemente rota de descargas…

Combates diários, ora mortíferos rareando as fileiras e desfalcando-as de oficiais prestimosos, ora ruidosos e longos, mas à maneira dos recontros entre os mercenários na Idade Média, esgotando-se num dispêndio de milhares de balas, sem um ferido, sem um escoriado sequer, de lado a lado. Por fim a existência aleatória, a terços de rações, quando as havia, dividindo-se um boi por batalhão e um litro de farinha por esquadra; e, como nos maus dias da Favela, as empresas diárias, em que se escalavam corpos para arrebanharem gado.

Os comboios eram raros e incertos. Chegavam escassos, extraviando-se parte das cargas pelos caminhos. Diante dos expedicionários se levantou de novo, como perigo único, a fome.

Metidos nos casebres, ou nas tendas por detrás dos morros, ou colados às escarpas das trincheiras, pouco se temiam do jagunço. Os perigos consistiam, exclusivos, nas caçadas, que estes faziam, de incautos que se afastavam dos abrigos. As duas torres da igreja nova lá estavam sobranceiras na altura, como dois mutãs sinistros sobre o exército. E nada escapava à pontaria dos que as guarneciam e que não as abandonavam no maior fragor dos canhoneios. A travessia para a Favela continuava, por isto, perigosa, tornando-se necessário estacionar uma guarda à margem do rio, no ponto em que ia dar o caminho, a fim de impedir que para lá seguissem soldados imprudentes. Naquele ponto recebiam o batismo de fogo os reforços que chegavam: a Brigada Girard a 15 de agosto, reduzida a 892 praças e 56 oficiais; o Batalhão Paulista a 23, com 424 praças e 21 oficiais; o 37° de Infantaria, que precedera a Divisão Auxiliar, com 205 praças e 16 oficiais, comandado pelo tenente-coronel Firmino Lopes Rego. Os rudes adversários deixavam-nos descer em paz as últimas abas da montanha, timbrando em Ihes fazer no último passo, embaixo, no álveo do rio, uma recepção retumbante e teatral, de tiros, cortada invariavelmente de estrídulos assovios terrivelmente irônicos.

É que não os assustavam os novos antagonistas. Permaneciam na mesma atitude desafiadora, inamolgáveis. E pareciam disciplinar-se. Correspondiam-se, de um a outro extremo do povoado, ao través do casario, a disparos combinados de bacamartes. Arrojavam-se mais ordenados e seguros nos assaltos. Recebiam, por sua vez, comboios, entrando pelos caminhos da Várzea da Ema, sem que lhos capturasse a tropa assaltante para não desguarnecer as posições ocupadas ou, consideração mais séria, evitar ciladas perigosas. Porque pelas cercanias, derivando invisíveis pelas colinas do norte e dali para Canabrava e Cocorobó, circulando de longe os batalhões, rondavam rápidas colunas volantes de jagunços, das quais havia sinais iniludíveis. Não raro o soldado inexperto, ao avultar sobre um cerro, baqueava atravessado por uma bala, que partia de fora do arraial, das linhas intangíveis daquele outro assédio abarcando a tropa. Os animais de montaria e tração eram muitas vezes espavoridos a tiro, nas pastagens que se alongavam pelas duas margens do rio; e em certo dia de agosto 20 muares da artilharia foram capturados, apesar de estarem sob a guarda de um batalhão aguerrido, o 5° de Linha, sobre o qual se fez carga da importância da presa.

Estes incidentes delatavam raro alento entre os rebeldes.

Não Ihes davam, entretanto, tréguas os assaltantes. Os três Krupps que desde 19 de julho emparcavam sobre a encosta, tendo no sopé a vanguarda do 25° sobranceando a praça, batiam-nos noite e dia ateando incêndios a custo debelados e arruinando inteiramente a igreja velha, de madeiramento já todo exposto a ressaltar no telhado abatido em parte e em cujo campanário não se compreendia que ainda subisse à tarde o impávido sineiro, tangendo as notas consagradas da Ave-Maria.

O sino da Igreja

Como se não bastasse aquele bombardeio à queima-roupa, descera, a 23 de agosto, do alto da Favela, o Wíthworth 32. Naquele dia fora ferido o general Barbosa, quando inspecionava a bateria do centro, próxima ao quartel-general da 1ª coluna. De sorte que a vinda do monstruoso canhão dava oportunidade a revide imediato. Este realizou-se logo ao amanhecer do dia subsequente. E foi, de fato, formidando. A grande peça detonou: viu-se arrebentar, com estrondo, o enorme shrapnel entre as paredes da igreja, esfarelando-lhe o teto, derrubando os restos do campanário e fazendo saltar pelos ares, revoluteando, estridulamento badalando, como se ainda vibrasse um alarma, o velho sino que chamava ao descer das tardes os combatentes para as rezas…

Fuzilaria

Mas, tirante este incidente, fora perdida a jornada: quebrara-se uma peça do aparelho obturador do canhão fazendo-o emudecer para sempre. Caíram nas linhas de fogo oito soldados, e uma fuzilaria fechada, estupenda, incomparável, entrou pela noite dentro até ao amanhecer. Reatou-se durante o dia, após ligeiro armísticio, vitimando mais quatro soldados, que com seis do 26°, que aproveitando o tumulto desertaram, elevaram a dez as perdas do dia. Continuou no dia 26, abatendo cinco praças; matando quatro, no dia 27; quatro, no dia 28; no dia 29, quatro soldados e um oficial; e assim por diante na mesma escala inflexível, que exauria a tropa.

As baixas, somando-se diariamente em parcelas pouco díspares, com os claros abertos em todas as fileiras pelos combates anteriores, tinham já, desde meados de agosto, imposto a reorganização das forças rarescentes. Na diminuição que tivera o número de brigadas, passando de sete a cinco, e no descair das graduações dos comandos, percebia-se, apesar dos reforços recém-vindos, o enfraquecimento da expedição. [ 84 ]

Dos vinte batalhões de infantaria que lá estavam — à parte o 5° Regimento de Artilharia, o 5° da Polícia Baiana, uma bateria de tiro rápido e um esquadrão de cavalaria —, quinze eram comandados por capitães e duas brigadas por tenentes-coronéis, não descendo o das companhias aos sargentos por ser maior que o destes o número de alferes.

Breve, porém, a situação mudaria. Canudos teria em torno, em algarismos rigorosamente exatos, trinta batalhões, excluídos os corpos de outras armas. [ 85 ]

Avançava pelos caminhos a Divisão salvadora.

[ 84 ] “Quartel-General do Comando-em-chefe – Campo de combate em Canudos, 17 de agosto de 1897 – Ordem do dia nº 102 – Reorganização das forças em operações no interior do Estado. Nesta data passa a ter a seguinte organização a força do meu comando: 14º batalhão de infantaria sobre o comando do capitão do 32º Antônio da Silva Paraguaçu; 22º sob o comando do major do mesmo corpo Lídio Corpo; 24º sob o comando do major do mesmo corpo Henrique José de Magalhães; 38º sob o comando do capitão do mesmo corpo Afonso Pinto de Oliveira, todos da arma de infantaria, constituindo a 1ª brigada, sob o comando do coronel do 14º Joaquim Manoel de Medeiros; 15º sob o comando do capitão do 38º José Xavier de Figueiredo Brito; 16º sob o comando do capitão do 24º Napoleão Felipe Aché; 27º sob o comando do capitão do 24º Tito Pedro Escobar; 33º sob o comando do capitão José Soares de Melo, constituindo a 2ª brigada, sob o comando do coronel do 27º Inácio Henrique de Gouveia; 5º comando pelo capitão Leopoldo Barros e Vasconcelos, do mesmo corpo; 7º sob o comando do capitão do mesmo corpo Alberto Gavião Pereira Pinto; 25º sob o comando do major Henrique Severiano da Silva; 34º comandado pelo capitão Pedro de Barros Falcão, constituindo a 3ª brigada, sob o comando do tenente-coronel do 25º Emídio Dantas Barreto; 5º regimento de artilharia , comandado pelo capitão do mesmo João Carlos Pereira Ibiapina; bateria do 2º regimento sob o comando do 1º tenente do 5º batalhão de posição Afrodísio Borba e bateria de tira rápido comandada pelo capitão do 1º de posição Antônio Afonso de Carvalho, constituindo a brigada de artilharia, sob o comando do coronel do 5º regimento Antônio Olímpio da Silveira, cujas brigadas ficam fazendo parte da 1ª coluna, sob o comando do general de brigada João da Silva Barbosa; 9º batalhão de infantaria, sob o comando do capitão do 31º José Lauriano da Costa; 26º do comando do capitão do 40º Francisco de Moura Costa; 32º sob o comando do major do mesmo corpo Florismundo Colatino dos Reis Araújo Góis; 35º comandado pelo campitão Fortunato de Sena Dias, constituindo a 4ª brigada, do comando do coronel do 32º Donaciano de Araújo Pantoja; 12º de infantaria do comando do capitão do 31º Joaquim Gomes da Silva; 30º comandado pelo capitão Altino Dias Ribeiro; 31º sob o comando do major do mesmo corpo João Pacheco de Assis; 40º sob o comando do major Manual Nonato Neves de Seixas, constituindo a 5ª brigada do comando do tenente-coronel do 30º Antônio Tupi Ferreira Caldas, as quais formarão a 2ª coluna sob o comando interino do coronel Joaquim Manuel de Medeiros, passando a comandar interinamente a 1ª brigada o major do 16º Aristides Rodriguez Vaz.”
[ 85 ] 4º, 5º, 7º, 9º, 12º, 14º, 15º, 16º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º, 34º, 35º, 37º, 38º, 40º de linha; 5º da Bahia; 1 de São Paulo, 2 do Pará; 1 do Amazonas. Ao todo 30.
Adite-se: 5º regimento de artilharia; bateria do 2º regimento da mesma arma; uma bateria de tiro rápido; um esquadrão de cavalaria; o 4º corpo de polícia baiana e o batalhão patriótico “Moreira César”, dos comboios.