Quarta expedição, I

Desastres

A nova deste revés foi um desastre maior.

A quarta expedição organizou-se através de grande comoção nacional, que se traduziu em atos contrapostos à própria gravidade dos fatos. Foi a princípio o espanto; depois um desvairamento geral da opinião; um intenso agitar de conjeturas para explicar o inconceptível do acontecimento o induzir uma razão de ser qualquer para aquele esmagamento de uma força numerosa, bem aparelhada e tendo chefe de tal quilate. Na desorientação completa dos espíritos, alteou-se logo, primeiro esparsa em vagos comentários, condensada depois em inabalável certeza, a ideia de que não agiam isolados os tabaréus turbulentos. Eram a vanguarda de ignotas falanges prontas a irromperem, de remanente, em toda a parte, convergentes sobre o novo regímen. E como nas capitais, federal e estaduais, há muito, meia dúzia de platônicos, revolucionários contemplativos e mansos, se agitavam esterilmente na propaganda da restauração monárquica, fez-se de tal circunstância ponto de partida para a mais contraproducente das reações.

Canudos — uma diátese

Era preciso uma explicação qualquer para sucessos de tanta monta. Encontraram-na: os distúrbios sertanejos significavam pródromos de vastíssima conspiração contra as instituições recentes. Canudos era uma Koblenz de pardieiros. Por detrás da envergadura desengonçada de Pajeú se desenhava o perfil fidalgo de um Brunswick qualquer. A dinastia em disponibilidade de Bragança, encontrara afinal um Monck, João Abade. E Antônio Conselheiro — um Messias de feira — empolgara nas mãos trementes e frágeis os destinos de um povo…

A República estava em perigo; era preciso salvar a República. Era este o grito dominante sobre o abalo geral…

Exageramos?

Deletreemos, ao acaso, qualquer jornal daqueles dias.

Doutrinava-se:

O que de um golpe abalava o prestígio da autoridade constituída e abatia a representação do brio da nossa pátria no seu renome, na sua tradição e na sua força era o movimento armado que, à sombra do fanatismo religioso, marchava acelerado contra as próprias instituições, não sendo lícito a ninguém iludir-se mais sobre o pleito em que audazmente entravam os saudosos do Império, francamente em armas.

Concluía-se: “Não há quem a esta hora não compreenda que o monarquismo revolucionário quer destruir com a República a unidade do Brasil.” [ 73 ]

Explicava-se:

A tragédia de 3 de março, em que juntamente com o Moreira César perderam a vida o ilustre coronel Tamarindo e tantos outros oficiais briosíssimos do nosso Exército, foi a confirmação de quanto o partido monarquista à sombra da tolerância do poder público, e graças até aos seus involuntários alentos, tem crescido em audácia e força. [ 74 ]

Afirmava-se:

Trata-se da restauração; conspira-se; forma-se o exército imperialista. O mal é grande; que o remédio corra parelhas com o mal. A monarquia arma-se? Que o presidente chame às armas os republicanos. [ 75 ]

E assim por diante. A opinião nacional esbatia-se de tal modo na imprensa. Na imprensa e nas ruas.

Alguns cidadãos ativos congregaram o povo na capital da República e resumiram-lhe a ansiedade patriótica numa moção incisiva:

O povo do Rio de Janeiro reunido em meeting e ciente do doloroso revés das armas legais nos sertões da Bahia, tomadas pela caudilhagem monárquica, e congregado em torno do governo, aplaudindo todos os atos de energia a cívica que praticar pela desafronta do Exército e da pátria, aguarda ansioso, a sufocação da revolta.

A mesma toada em tudo. Em tudo a obsessão do espantalho monárquico, transmudando em legiões — coorte misteriosa marchando surdamente na sombra —, meia dúzia de retardatários, idealistas e teimosos.

O presidente da República por sua vez quebrou a serenidade habitual:

Sabemos que, por detrás dos fanáticos de Canudos, trabalha a política. Mas nós estamos preparados, tendo todos os meios para vencer, seja como for contra quem for.

Empastelamento de jornais monárquicos

Afinal a multidão interveio.

Copiemos:

Já era tarde e a excitação do povo aumentava na proporção de sua massa sempre crescente; assim nesta indignação lembraram-se dos jornais monarquistas, e todos por um, em um ímpeto de desabafo, foram às redações e tipografias dos jornais Gazeta da Tarde, Liberdade e Apóstolo, e, apesar de ter a polícia corrido para evitar qualquer assalto a esses jornais, não chegou a tempo de evitá-lo, pois a multidão aos gritos de viva a República e à memória de Floriano Peixoto invadiu aqueles estabelecimentos e destruiu-os por completo, queimando tudo.

Então começaram a quebrar e inutilizar tudo quanto encontraram, atirando, depois, os objetos, livros, papéis, quadros, móveis, utensílios, tabuletas, divisões etc., para a rua de onde foram logo conduzidos para o largo de São Francisco de Paula, onde formaram uma grande fogueira, ficando outros em montes de destroços na mesma rua do Ouvidor. [ 76 ]

A rua do Ouvidor e as caatingas

Interrompamos, porém, este respigar em ruínas. Mais uma vez, no decorrer dos sucessos que nos propusemos narrar, forramo-nos à demorada análise de acontecimentos que fogem à escala superior da História. As linhas anteriores têm um objetivo único: fixar, de relance, símiles que se emparelham na mesma selvatiqueza. A rua do Ouvidor valia por um desvio das caatingas. A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro. E a guerra de Canudos era, por bem dizer, sintomática apenas. O mal era maior. Não se confinara num recanto da Bahia. Alastrara-se. Rompia nas capitais do litoral. O homem do sertão, encourado e bruto, tinha parceiros porventura mais perigosos.

Valerá a pena defini-los?

A força portentosa da hereditariedade, aqui, como em toda a parte e em todos os tempos, arrasta para os meios mais adiantados — enluvados e encobertos de tênue verniz de cultura — trogloditas completos. Se o curso normal da civilização em geral os contém, e os domina, e os manieta, e os inutiliza, e a pouco e pouco os destrói, recalcando-os na penumbra de uma existência inútil, de onde os arranca, às vezes, a curiosidade dos sociólogos extravagantes, ou as pesquisas da psiquiatria, sempre que um abalo profundo lhes afrouxa em torno a coesão das leis eles surgem e invadem escandalosamente a História. São o reverso fatal dos acontecimentos, o claro-escuro indispensável aos fatos de maior vulto.

Mas não têm outra função, nem outro valor; não há analisá-los. Considerando-os, o espírito mais robusto permanece inerte a exemplo de uma lente de flint glass, admirável no refratar, ampliadas imagens fulgurantes, mas imprestável se a focalizam na sombra.

Deixemo-los; sigamos.

Antes, porém, insistamos numa proposição única: atribuir a uma conjuração política qualquer a crise sertaneja exprimia palmar insciência das condições naturais da nossa raça.

Considerações

O caso, vimo-lo anteriormente, era mais complexo e mais interessante. Envolvia dados entre os quais nada valiam os sonâmbulos erradios e imersos no sonho da restauração imperial. E esta insciência ocasionou desastres maiores que os das expedições destroçadas. Revelou que pouco nos avantajávamos aos rudes patrícios retardatários. Estes, ao menos, eram lógicos. Insulado no espaço e no tempo, o jagunço, um anacronismo étnico, só podia fazer o que fez — bater, bater terrivelmente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três séculos, procurava levá-lo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão de descargas.

Reagiu. Era natural. O que surpreende é a surpresa originada por tal fato. Canudos era uma tapera miserável, fora dos nossos mapas, perdida no deserto, aparecendo, indecifrável, como uma página truncada e sem número das nossas tradições. Só sugeria um conceito — e é que, assim como os estratos geológicos não raro se perturbam, invertidos, sotopondo-se uma formação moderna a uma formação antiga, a estratificação moral dos povos por sua vez também se baralha, e se inverte, e ondula riçada de sinclinais abruptas, estalando em faults, por onde rompem velhos estádios há muito percorridos.

Sob tal aspecto era, antes de tudo, um ensinamento e poderia ter despertado uma grande curiosidade. A mesma curiosidade do arqueólogo ao deparar as palafitas de uma aldeia lacustre, junto a uma cidade industrial da Suíça…

Entre nós, de um modo geral, despertou rancores. Não vimos o traço superior do acontecimento. Aquele afloramento originalíssimo do passado, patenteando todas as falhas da nossa evolução, era um belo ensejo para estudarmo-las, corrigirmo-las ou anularmo-las. Não entendemos a lição eloquente.

Na primeira cidade da República, os patriotas satisfizeram-se com o auto-de-fé de alguns jornais adversos, e o governo começou a agir. Agir era isto — agremiar batalhões.

*

Versões disparatadas

As primeiras notícias do desastre prolongaram por muitos dias a agitação em todo o país. A parte de combate do major Cunha Matos, deficientíssima, mal indicando as fases capitais da ação, eivada de erros singulares, tinha apenas a eloquência do alvoroço com que fora escrita. Incutia nos que a liam o pensamento de uma hecatombe, ulteriormente agravada de outras informações. E estas, instáveis, acirrando num crescendo a comoção e a curiosidade públicas, desencontradamente, lardeadas de afirmativas contraditórias, derivavam pelos espíritos inquietos num desfiar de conjeturas intermináveis.

Não havia acertar no abstruso das opiniões com a mais breve noção sobre as coisas. Ideavam-se sucessos sofregamente aceitos com todos os visos de realidade, até que outros, diversos, os substituíssem, dominando por um dia ou por uma hora as atenções, e extinguindo-se por sua vez diante de outras versões efêmeras. De sorte que num alarma crescente — do boato medrosamente boquejado no recesso dos lares à mentira escandalosa rolando com estardalhaço pelas ruas — se avolumaram apreensões e cuidados. Era uma tortura permanente de dúvidas cruciantes. Nada se sabia de positivo. Nada sabiam mesmo os que haviam compartido o revés. Na inconsistência dos boatos, uma informação única tomava os mais diversos cambiantes.

Mentiras heroicas

Afirmava-se: o coronel Tamarindo não fora morto; salvara-se valorosamente, com um punhado de companheiros leais, e estava caminho de Queimadas. Contravinha-se: salvara-se, mas estava gravemente ferido em Maçacará, onde chegara exausto.

Depois uma afirmativa lúgubre: o infeliz oficial fora de fato trucidado. E assim em seguida.

Agitavam-se ideias alarmantes: os sertanejos não eram “um bando de carolas fanáticos”, eram um “exército instruído, disciplinado” — admiravelmente armados de carabinas Mauser, tendo ademais artilharia, que manejavam com firmeza. Alguns dos nossos, e entre eles o capitão Vilarim, haviam sido despedaçados por estilhas de granadas…

O cabo Roque

Nessas incertezas, a verdade aparecia, às vezes, sob uma forma heroica. A morte trágica de Salomão da Rocha foi uma satisfação ao amor-próprio nacional. Aditou-se-lhe depois, mais emocionante, a lenda do cabo Roque, abalando comovedoramente a alma popular. Um soldado humilde, transfigurado por um raro lance de coragem marcara a peripécia culminante da peleja. Ordenança de Moreira César, quando se desbaratara a tropa, e o cadáver daquele ficara em abandono à margem do caminho, o lutador leal permanecera a seu lado, guardando a relíquia veneranda abandonada por um exército. De joelhos junto ao corpo do comandante, batera-se ate ao último cartucho, tombando, afinal, sacrificando-se por um morto…

E a cena maravilhosa, fortemente colorida pela imaginação popular, fez-se quase uma compensação à enormidade do revés. Abriram-se subscrições patrióticas; planearam-se homenagens cívicas e solenes; e, num coro triunfal de artigos vibrantes e odes ferventes, o soldado obscuro transcendia à História quando — vítima da desgraça de não ter morrido —, trocando a imortalidade pela vida, apareceu com os últimos retardatários supérstites em Queimadas.

A este desapontamento aditaram-se outros, à medida que a situação se esclarecia. A pouco e pouco se reduzia por um lado, agravando-se por outro, a catástrofe. Os trezentos e tantos mortos das informações oficiais ressurgiam. Três dias depois do recontro, três dias apenas, já se achava em Queimadas, a duzentos quilômetros de Canudos, grande parte da expedição. Uma semana depois, verificava-se, ali, a existência de 74 oficiais. Duas semanas mais tarde, no dia 19 de março, lá estavam — salvos — 1.081 combatentes.

Vimos quantos entraram em ação. Não subtraiamos. Deixemos aí, registrados, estes algarismos inexoráveis. Eles não diminuíram, com a sua significação singularmente negativa, o fervor das adesões entusiásticas.

Levantamento em massa

Os governadores de Estado, os congressos, as corporações municipais, continuaram vibrantes no anelo formidável da vingança. E em todas as mensagens, variantes de um ditado único, monótono pela simulcadência dos mesmos períodos retumbantes, persistiu, como aspiração exclusiva, o esmagamento dos inimigos da República, armados pela caudilhagem monárquica. Como o da capital federal, o povo das demais cidades entendeu também deliberar na altura da situação gravíssima, apoiando todos os atos de energia cívica que praticasse o governo pela desafronta do Exército e (esta conjunção valia por cem páginas eloqüentes) da pátria. Decretou-se o luto nacional. Exararam-se votos de pesar nas atas das sessões municipais mais remotas. Sufragaram-se os mortos em todas as igrejas. E, dando à tristeza geral a nota supletiva da sanção religiosa, os arcebispados expediram aos sacerdotes dos dois cleros ordem para dizerem nas missas a oração Pro pace. Congregaram-se em toda a linha cidadãos ativos, aquartelando. Ressurgiram batalhões, o Tiradentes, o Benjamim Constant, o Acadêmico e o Frei Caneca, feitos de veteranos já endurados ao fogo da revolta anterior, da Armada; — enquanto agremiando patriotas de todos os matizes formavam-se outros, o Deodoro, o Silva Jardim, o Moreira César… Não bastava.

Planos

No quartel-general do Exército abriram-se inscrições para o preenchimento dos claros de diversos corpos. O presidente da República declarou, em caso extremo, chamar às armas os próprios deputados do Congresso federal, e, num ímpeto de lirismo patriótico, o vice-presidente escreveu ao Clube Militar propondo-se valentemente cingir o sabre vingador. Fervilhavam planos geniais, idéias raras, incomparáveis. Engenheiros ilustres apresentavam o traçado de um milagre de engenharia — uma estrada de ferro de Vila Nova a Monte Santo, saltando por cima de Itiúba, e feita em trinta dias, e rompendo de chofre, triunfalmente, num coro estrugidor de locomotivas acesas, pelo sertão bravio dentro.

É que estava em jogo, em Canudos, a sorte da República…

Diziam-no informes surpreendedores: aquilo não era um arraial de bandidos truculentos apenas. Lá existiam homens de raro valor — entre os quais se nomeavam conhecidos oficiais do Exército e da armada foragidos desde a Revolta de Setembro, que o Conselheiro avocara ao seu partido.

Um tropear de bárbaros

Garantia-se: um dos chefes do reduto era um engenheiro italiano habilíssimo, adestrado talvez nos polígonos bravios da Abissínia. Expunham-se detalhes extraordinários: havia no arraial tanta gente que tendo desertado cerca de setecentos só lhes deram pela falta muitos dias depois. E sucessivas, impiedosas, novas notícias acumulavam-se sobre o fardo extenuador de apreensões, premindo as almas comovidas. Assim, estavam já expugnadas pelos jagunços Monte Santo, Cumbe, Maçacará e, talvez, Jeremoabo. As hordas invasoras, depois de saquearem aquelas vilas, marchavam convergentes para o sul, reorganizando-se no Tucano, de onde, acrescidas de novos contingentes, demandavam o litoral, avançando sobre a capital da Bahia…

As gentes alucinadas ouviam um surdo tropear de bárbaros…

Os batalhões de Moreira César eram as legiões de Varo… Encalçavam-nos, na fuga, catervas formidandas.

Não eram somente os jagunços. Em Juazeiro, no Ceará, um heresiarca sinistro, o padre Cícero, conglobava multidões de novos cismáticos em prol do Conselheiro. Em Pernambuco, um maníaco, José Guedes, surpreendia as autoridades, que o interrogavam, com a altaneria estoica de um profeta. Em Minas, um quadrilheiro desempenado, João Brandão, destroçava escoltas e embrenhava-se no alto sertão do São Francisco, tangendo cargueiros ajoujados de espingardas.

A aura da loucura soprava também pelas bandas do sul: o monge do Paraná, por sua vez, aparecia nessa concorrência extravagante para a história e para os hospícios.

E tudo isto, punha-se de manifesto, eram feituras de uma conjuração que desde muito vinha solapando as instituições. A reação monárquica tomava afinal a atitude batalhadora precipitando nas primeiras escaramuças, coroadas do melhor êxito, aquela vanguarda de retardatários e de maníacos.

O governo devia agir prontamente.

[ 73 ] Gazeta de Notícias.
[ 74 ] O País.
[ 75 ] O Estado de S. Paulo.
[ 76 ] Jornal do Brasil.