- O coronel Antônio Moreira César e o meio que o celebrizou
- [Floriano Peixoto]
- [Moreira César]
- Primeira expedição regular
- [Crítica]
- Cresce a população de Canudos
- Como a aguardam os jagunços
- [Trincheiras]
- [Armas, pólvora, balas e lutadores]
- [João Abade]
- [Procissões]
- [Rezas]
O coronel Antônio Moreira César e o meio que o celebrizou
O novo insucesso das armas legais, imprevisto para toda a gente, coincidia com uma fase crítica da nossa história.
A pique ainda das lamentáveis conseqüências de sanguinolenta guerra civil, que rematara ininterrupta série de sedições e revoltas, emergentes desde os primeiros dias do novo regímen, a sociedade brasileira, em 1897, tinha alto grau de receptividade para a intrusão de todos os elementos revolucionários e dispersivos. E quando mais tarde alguém se abalançar a definir, à luz de expressivos documentos, a sua psicologia interessante naquela quadra, demonstrará a inadaptabilidade do povo à legislação superior do sistema político recém-inaugurado, como se este, pelo avantajar-se em demasia ao curso de uma evolução vagarosa, tivesse, como efeito predominante, alastrar sobre o país, que se amolentara no marasmo monárquico, intenso espírito de desordem, precipitando a República por um declive onde os desastres repontavam, ritmicamente, delatando a marcha cíclica de uma moléstia.
O governo civil, iniciado em 1894, não tivera a base essencial de uma opinião pública organizada. Encontrara o país dividido em vitoriosos e vencidos. E quedara na impotência de corrigir uma situação que, não sendo francamente revolucionária e não sendo também normal, repelia por igual os recursos extremos da forca e o influxo sereno das leis. Estava defronte de uma sociedade que, progredindo em saltos, da máxima frouxidão ao rigorismo máximo, das conspirações incessantes aos estados de sítio repetidos, parecia espelhar incisivo contraste entre a sua organização intelectual imperfeita e a organização política incompreendida.
De sorte que, lhe sendo impossível substituir o lento trabalho de evolução para alevantar a primeira ao nível da última, deixava que se verificasse o fenômeno inverso: a significação superior dos princípios democráticos decaía — sofismada, invertida, anulada.
Floriano Peixoto
Não havia obstar essa descensão. O governo anterior, do marechal Floriano Peixoto, tivera, pelas circunstâncias especialíssimas que o rodearam, função combatente e demolidora. Mas, no abater a indisciplina emergente de sucessivas sedições, agravara a instabilidade social e fora de algum modo contraproducente, violando flagrantemente um programa preestabelecido. Assim é que, nascendo do revide triunfante contra um golpe de Estado violador das garantias constitucionais, criara o processo da suspensão de garantias; abraçado tenazmente à Constituição, afogava-a; fazendo da legalidade a maior síntese de seus desígnios, aquela palavra, distendida à consagração de todos os crimes, transmudara-se na fórmula antinômica de uma terra sem leis. De sorte que o inflexível Marechal de Ferro tivera, talvez involuntariamente, porque a sua figura original é ainda um intricado enigma, desfeita a missão a que se devotara. Apelando, nas aperturas das crises que o assoberbaram, incondicionalmente, para todos os recursos, para todos os meios e para todos os adeptos, surgissem de onde surgissem, agia inteiramente fora da amplitude da opinião nacional, entre as paixões e interesses de um partido que, salvante bem raras exceções, congregava todos os medíocres ambiciosos que, por instinto natural de defesa, evitam as imposições severas de um meio social mais culto. E ao debelar, nos últimos dias de seu governo, a Revolta de Setembro, que enfeixara todas as rebeldias contrariadas e todos os tumultos dos anos anteriores, formara, latentes, prestes a explodir, os germens de mais perigosos levantes.
Destruíra e criara revoltosos. Abatera a desordem com a desordem. Ao deixar o poder não levara todos os que o haviam acompanhado nos transes dificílimos do governo. Ficaram muitos agitadores, robustecidos numa intensa aprendizagem de tropelias, e estes viam-se contrafeitos no plano secundário a que naturalmente volviam. Traziam o movimento irreprimível de uma carreira fácil e vertiginosa demais para estacar de súbito: dilataram-na pela nova situação adentro.
Viu-se, então, um caso vulgaríssimo de psicologia coletiva: colhida de surpresa, a maioria do país inerte e absolutamente neutral constituiu-se veículo propício à transmissão de todos os elementos condenáveis que cada cidadão, isoladamente, deplorava. Segundo o processo instintivo, que lembra na esfera social a herança de remotíssima predisposição biológica, tão bem expressa no mimismo psichico de que nos fala Scipio Sighele, as maiorias conscientes, mas tímidas, revestiam-se, em parte, da mesma feição moral dos medíocres atrevidos que Ihes tomavam a frente. Surgiram, então, na tribuna, na imprensa e nas ruas — sobretudo nas ruas —, individualidades que nas situações normais tombariam à pressão do próprio ridículo. Sem ideais, sem orientação nobilitadora, peados num estreito círculo de idéias, em que o entusiasmo suspeito pela República se aliava a nativismo extemporâneo e à cópia grosseira de um jacobinismo pouco lisonjeiro à história — aqueles agitadores começaram a viver da exploração pecaminosa de um cadáver. O túmulo do marechal Floriano Peixoto foi transmudado na arca de aliança da rebeldia impenitente e o nome do grande homem fez-se a palavra de ordem da desordem.
A retração criminosa da maioria pensante do país permitia todos os excessos; e no meio da indiferença geral todas as mediocridades irritadiças conseguiram imprimir àquela quadra, felizmente transitória e breve, o traço mais vivo que a caracteriza. Não lhes bastavam as cisões remanescentes, nem os assustava uma situação econômica desesperadora: anelavam avolumar aquelas e tornar a última insolúvel. E como o exército se erigia, ilógicamente, desde o movimento abolicionista até à proclamação da República, em elemento ponderador das agitações nacionais, cortejavam-no, captavam-no, atraíam-no afanosa e imprudentemente.
Ora, de todo o exército, um coronel de infantaria, Antônio Moreira César, era quem parecia haver herdado a tenacidade rara do grande debelador de revoltas.
O feiticismo político exigia manipansos de farda.
Escolheram-no para novo ídolo.
* * *
Moreira César
E à nova do desastre, avolumando a gravidade da luta nos sertões, o governo não descobriu quem melhor lhe pudesse balancear as exigências gravíssimas. Escolheu-o para chefe da expedição vingadora.
Em torno do nomeado criara-se uma legenda de bravura.
Recém-vindo de Santa Catarina, onde fora o principal ator no epílogo da campanha federalista do Rio Grande, tinha excepcional renome feito de aclamações e apodos, consoante o modo de julgar incoerente e extremado da época em que eram vivos os mínimos incidentes da guerra civil distendida da baía do Rio de Janeiro para o Sul, pela Revolta da Esquadra.
Entre dois extremos, do arrojo de Gumercindo Saraiva à abnegação de Gomes Carneiro, a opinião nacional oscilava espelhando os mais díspares conceitos no aquilatar vitoriosos e vencidos; e nessa instabilidade, nesse baralhamento, nesse afogueado expandir da nossa sentimentalidade suspeita, o que de fato se fazia em todos os tons, com, todas as cores e sob aspectos vários — era a caricatura do heroísmo. Os heróis imortais de quarto de hora, destinados a suprema consagração de uma placa à esquina das ruas, entravam, surpreendidos e de repente, pela história dentro, aos encontrões, como intrusos desapontados, sem que se pudesse saber se eram bandidos ou santos, envoltos de panegíricos e convícios, surgindo entre detirambos ferventes, ironias e invectivas despiedadas, da sangueira de Inhanduí, da chacina de Campo Osório, do cerco memorável da Lapa, dos barrocais do pico do Diabo, ou do platonismo marcial de Itararé.
Irrompiam a granel. Eram legião. Todos saudados; amaldiçoados todos.
Ora, entre eles, o coronel Moreira César era figura à parte.
Surpreendiam-se igualmente ao vê-lo admiradores e adversários. O aspecto reduzia-lhe a fama. De figura diminuta — um tórax desfibrado sobre pernas arcadas em parêntesis — era organicamente inapto para a carreira que abraçara.
Faltava-lhe esse aprumo e competição inteiriça que no soldado são a base física da coragem.
Apertado na farda, que raro deixava, o dólmã feito para ombros de adolescente frágil agravava-lhe a postura.
A fisionomia inexpressiva e mórbida completava-lhe o porte desgracioso e exíguo. Nada, absolutamente, traía a energia surpreendedora e temibilidade rara de que dera provas, naquele rosto de convalescente sem uma linha original e firme: pálido, alongado pela calva em que se expandia a fronte bombeada, e mal alumiado por olhar mortiço, velado de tristeza permanente.
Era uma face imóvel como um molde de cera, tendo a impenetrabilidade oriunda da própria atonia muscular. Os grandes paroxismos da cólera, e a alacridade mais forte, ali deviam amortecer-se inapercebidos, na lassidão dos tecidos, deixando-a sempre fixamente impassível e rígida.
Aos que pela primeira vez o viam custava-lhes admitir que estivesse naquele homem de gesto lento e frio, maneiras corteses e algo tímidas, o campeador brilhante, ou o demônio crudelíssimo que idealizavam. Não tinha os traços característicos nem de um, nem de outro. Isto, talvez, porque fosse as duas coisas ao mesmo tempo.
Justificam-se os que o aplaudiam e os que o invectivavam. Naquela individualidade singular entrechocavam-se, antinômicas, tendências monstruosas e qualidades superiores, umas e outras no máximo grau de intensidade. Era tenaz, paciente, dedicado, leal, impávido, cruel, vingativo, ambicioso. Uma alma proteiforme constrangida em organização fragílima.
Aqueles atributos, porém, velava-os reserva cautelosa e sistemática. Um único homem os percebeu ou decifrou bem, o marechal Floriano Peixoto. Tinha para isto a afinidade de inclinações idênticas. Aproveitou-o, na ocasião oportuna, como Luís XII aproveitaria Bayard, se pudesse enxertar na bravura romanesca do cavaleiro sem máculas as astúcias de Fra Diavolo.
Moreira César estava longe da altitude do primeiro e mais longe ainda da depressão moral do último. Não seria, entretanto, imperdoável exagero considerá-lo misto reduzido de ambos. Alguma coisa de grande e incompleto, como se a evolução prodigiosa do predestinado parasse, antes da seleção final dos requisitos raros com que o aparelhara, precisamente na fase crítica em que ele fosse definir-se como herói ou como facínora. Assim, era um desequilibrado. Em sua alma a extrema dedicação esvaía-se no extremo ódio, a calma soberana em desabrimentos repentinos e a bravura cavalheiresca na barbaridade revoltante.
Tinha o temperamento desigual e bizarro de um epilético provado, encobrindo a instabilidade nervosa de doente em placidez enganadora.
Entretanto, não raro, a sua serenidade partia-se rota pelos movimentos impulsivos da moléstia, que somente mais tarde, mercê de comoções violentas, se desvendou inteiramente nas manifestações físicas dos ataques. E se pudéssemos acompanhar a sua vida assistiríamos ao desdobramento contínuo do mal, que lhe imprimiu, como a outros sócios de desdita, um feitio original e interessante, definido por uma sucessão por demais eloqüente de atos que, aparecendo intercalados por períodos de calma crescentemente reduzidos, constituem os pontos determinantes da curva inflexível em que o arrebatava a fatalidade biológica.
De feito, eram correntes entre os seus companheiros de armas os episódios frisantes que, de tempos a tempos, com ritmo inabalável, lhe interferiam a linha de uma carreira militar correta como poucas.
Fora longo rememorá-los, além do perigo de incidirmos no arquivar versões exageradas ou falsas.
À parte, porém, todos os casos duvidosos, definidos sempre pelo traço preponderante de vias de fato violentíssimas — aqui o ultraje, a rebencadas, de um médico militar, além a arremetida a faca, felizmente tolhida em tempo, contra um oficial argentino, por certa palavra mal compreendida —, apontamos, de relance, os mais geralmente conhecidos.
Um, sobretudo, dera relevo à sua energia selvagem.
Foi em 1884, no Rio de Janeiro. Um jornalista, ou melhor, um alucinado, criara, agindo libérrimo graças à frouxidão das leis repressivas, escândalo permanente de insultos intoleráveis na corte do antigo Império; e tendo respingado sobre o Exército parte das alusões indecorosas, que por igual abrangiam todas as classes, do último cidadão ao monarca, foi infelizmente resolvido por alguns oficiais, como supremo recurso, a justiça fulminante e desesperadora do linchamento.
Assim se fez. E entre os subalternos encarregados de executar a sentença — em plena rua, em pleno dia, diante da justiça armada pelos Comblains de toda a força policial em armas — figurava, mais graduado, o capitão Moreira César, ainda moço, à volta dos trinta anos, e tendo já em seus assentamentos, averbados, merecidos elogios por várias comissões exemplarmente cumpridas. E foi o mais afoito, o mais impiedoso, o primeiro talvez no esfaquear pelas costas a vítima, exatamente na ocasião em que ela, num carro, sentado ao lado de autoridade superior do próprio Exército, se acolhera ao patrocínio imediato das leis…
O crime acarretou-lhe a transferência para Mato Grosso, e dessa Sibéria canicular do nosso Exército tornou somente após a proclamação da República.
Vimo-lo nessa época.
Era ainda capitão e embora nunca houvesse arrancado da espada em combate, recordava um triunfador. Nos dias ainda vacilantes do novo regímen, o governo parecia desejar ter perto de si aquele esteio firme — o homem para as crises perigosas e para as grandes temeridades. A sua figura de menino atravessava os quartéis e as ruas envolta de murmúrio simpático e louvaminheiro, comentando-lhe em lisonjarias os lances capitais da vida, acerca dos quais, entretanto, era de todo muda uma fé de ofício de burocracia inofensivo e tímido, repleta de encômios ao desempenho de missões pacíficas.
Por um contraste expressivo, nos documentos da profissão guerreira é que estava a placabilidade de uma existência acidentada, revolta e turbulenta em que, não raro, relampagueara a faca, ao lado da espada inteiramente virgem.
Esta saiu-lhe da bainha, afinal, nos últimos anos da existência. Em 1893, já coronel, porque galgara velozmente três postos em dois anos, ao declarar-se a Revolta da Armada o marechal Floriano Peixoto destacou-o armado de poderes discricionários para Santa Catarina, como uma barreira à conflagração que se reanimara no sul e ameaçava os Estados limítrofes. Seguiu; e em ponto algum do nosso território pesou tão firme e tão estrangulador o guante dos estados de sítios.
Os fuzilamentos que ali se fizeram, com triste aparato de imperdoável maldade, dizem-no de sobra. Abalaram tanto a opinião nacional que, ao terminar a revolta, o governo civil, recém-inaugurado, pediu contas de tais sucessos ao principal responsável. A resposta, pelo telégrafo, foi pronta. Um “não”, simples, seco, atrevido, cortante, um dardo batendo em cheio a curiosidade imprudente dos poderes constituídos, sem o atavio, sem o rodeio, sem a ressalva da explicação mais breve.
Meses depois chamaram-no ao Rio de Janeiro.
Embarca com o seu batalhão, o 7º, num navio mercante; e em pleno mar, com surpresa dos próprios companheiros prende o comandante. Assaltara-o — sem que para tal houvesse o mínimo pretexto — a suspeita de uma traição, um desvio na rota, adrede disposto para o prender e aos soldados. O ato seria absolutamente inexplicável se não o caracterizássemos como aspecto particular da desorganização psíquica que o vitimava.
Não lhe diminuiu, contudo, o prestígio. Fez-se dono do batalhão que comandava; deu-lhe um pessoal que ultrapassava, de muito, o número regulamentar de praças, entre as quais — em manifesta violação da lei — dezenas de crianças que não podiam carregar as armas; e, imperando incondicionalmente, organizou o melhor corpo do Exército, porque nos longos intervalos lúcidos patenteava, francas, qualidades eminentes e raras de chefe disciplinador e inteligente, contrastando com os paroxismos da exaltação intermitente.
Estes tomaram-se, por fim, mais ostensivos e repetidos — num crescendo inflexível.
Nomeado para a expedição contra Canudos, estadeou-os numa série de desatinos, culminados afinal por uma catástrofe.
Vê-los-emos em breve, extremados por dois ímpetos de impulsivo: a partida caprichosa de Monte Santo, de improviso, com espanto de seu próprio Estado-maior, precisamente na véspera do dia prefixo em detalhe para a marcha; e, três dias mais tarde, o arremesso contra o arraial, de mil e tantos homens exaustos de uma carreira de léguas, precisamente na véspera do dia marcado para o assalto.
Estes últimos fatos, e a sua identidade está no objetivarem a mesma nevrose, tiveram a intercorrência dos ataques.
Foram uma revelação.
Todos os acidentes singulares de sua existência desconexa, viu-se afinal que eram sinais comemorativos enfeixando uma diagnose única e segura…
Realmente, a epilepsia alimenta-se de paixões; avoluma-se no próprio expandir das emoções subitâneas e fortes; mas, quando, ainda larvada, ou traduzindo-se em uma alienação apenas afetiva, solapa surdamente as consciências, parece ter na livre manifestação daquelas um derivativo salvador atenuando os seus efeitos. De sorte que, sem exagero de frase, se pode dizer que há muitas vezes num crime, ou num lance raro de heroísmo, o equivalente mecânico de um ataque. Contido o braço homicida, ou imobilizado, de chofre, o herói no arremesso glorioso, o doente pode surgir, ex abrupto, sucumbindo ao acesso. Daí esses atos inesperados, incompreensíveis ou brutais, em que a vítima procura iludir instintivamente o próprio mal, buscando muitas vezes o crime como um derivativo à loucura.
Durante longo tempo numa semiconsciência de seu estado, numa série de delírios breves e fugazes, que ninguém percebe, que nem ela às vezes percebe, sente crescer a instabilidade da vida. E luta tenazmente. Os intervalos lúcidos fazem-se-lhe ponto de apoio à consciência vacilante à procura de motivos inibitórios numa ponderação cada vez mais penosa das condições normais ambientes. Aqueles, entretanto, a pouco e pouco se enfraquecem. A inteligência abalada afinal mal se subordina às condições exteriores ou relaciona os fatos e, em contínuo descair, baralha-os, perturba-os, inverte-os, deforma-os. O doente cai, então, no estado crepuscular, segundo uma expressão feliz, e condensa no cérebro, como se fosse a soma de todos os delírios anteriores, instável, pronto a desencadear-se em ações violentas, que o podem atirar no crime ou, acidentalmente, na glória, o potencial da loucura.
Cabe à sociedade, nessa ocasião, dar-lhe a camisa de força ou a púrpura. Porque o princípio geral da relatividade abrange as mesmas paixões coletivas. Se um grande homem pode impor-se a um grande povo pela influência deslumbradora do gênio, os degenerados perigosos fascinam com igual vigor as multidões tacanhas.
Ora, entre nós, se exercitava o domínio do caput mortuum das sociedades. Despontavam efêmeras individualidades singulares; e entre elas o coronel César destacava-se em relevo forte, como se a niilidade do seu passado salientasse melhor a energia feroz que desdobrara nos últimos tempos.
É cedo ainda para que se lhe defina a altitude relativa e a depressão do meio em que surgiu. Na apreciação dos fatos o tempo substitui o espaço para a focalização das imagens: o historiador precisa de certo afastamento dos quadros que contempla.
Cerremos esta página perigosa…
* * *
Primeira expedição regular
Deferindo ao convite que lhe fora feito, o coronel Moreira César seguiu a 3 de fevereiro para a Bahia, levando o batalhão que comandava, o 7° de Infantaria, entregue à direção do major Rafael Augusto da Cunha Matos; uma bateria do 2° Regimento de Artilharia, comandada pelo capitão José Agostinho Salomão da Rocha; e um esquadrão do 9° de Cavalaria, do capitão Pedreira Franco.
Era o núcleo da brigada de três armas, que se constituiu logo com a celeridade que as circunstâncias demandavam, ligando-se-lhe três outros corpos, desfalcados tolos: o 16°, que estava em São João d’El-Rei, de onde abalou dirigido pelo coronel Sousa Meneses, com 28 oficiais e 290 praças; cerca de 140 soldados do 33°, o 9°, de Infantaria, do coronel Pedro Nunes Tamarindo e pequenos contingentes da força estadual baiana.
O chefe expedicionário não se demorou na Bahia. Recolhida toda a força que lá estava, prosseguiu imediatamente para Queimadas, onde, cinco dias apenas depois que partira da capital da República, a 8 de fevereiro, estava toda a expedição reunida — quase 1.300 combatentes, fartamente municiados, com 15 milhões de cartuchos e setenta tiros de artilharia.
A mobilização fora, como se vê, um prodígio de rapidez. Continuou rápida. Deixando em Queimadas, “1ª base de operações”, sob o comando de um tenente, platônica guarnição de oitenta doentes e setenta crianças, que não suportavam o peso das mochilas, seguiu o grosso da tropa para a “2ª base de operações”, Monte Santo, onde a 20 estava pronta para a investida.
Chegara, porém, mal auspiciada. Um dia antes a enervação doentia do comandante explodira numa convulsão epileptiforme, em plena estrada, antes do sítio de “Quirinquinquá”; e fora de caráter tal que os cinco médicos do corpo de saúde previram uma reprodução de lastimáveis conseqüências. Os principais chefes de corpos, porém, bem que cientes de um diagnóstico, que implicava seriamente a firmeza e as responsabilidades do comando geral ante as condições severas da luta, forraram-se, cautelosos e tímidos, à menor deliberação a respeito.
O coronel Moreira César abeirava-se do objetivo da campanha condenado pelos próprios médicos que comandava.
É natural que não fossem as operações concertadas com a indispensável lucidez e que as inquinassem, desde o primeiro passo nos caminhos, todos os erros e inexplicáveis descuidos e inexplicável olvido de preceitos rudimentares, já rudemente corrigidos ou expostos com a maior clareza nos desastres anteriores. Nada se resolveu de acordo com as circunstâncias especialíssimas da empresa. Ficou dominando todas as decisões um plano único, um plano de delegado policial enérgico: lançar a marche-marche mil e tantas baionetas dentro de Canudos.
Isto no menor tempo possível. Os engenheiros militares Domingos Alves Leite e Alfredo do Nascimento, tenentes do Estado-maior de 1ª classe, adidos à brigada, tiveram uma semana para reconhecer a paragem desconhecida e áspera. Na exiguidade de tal prazo não lhes era possível a escolha de pontos estratégicos, que firmassem uma linha de operações indispensáveis. O vertiginoso mesmo dos levantamentos militares estava aquém dessa missão de afogadilho, adstrita a trianguladas fantásticas — bases medidas a olho, visadas divagantes pelos topos indistintos das serras, distâncias averbadas nos ponteiros dos podômetros presos às botas dos operadores apressados. Estes esclareciam-se inquirindo os raros habitantes dos lugares percorridos: era o arquivar longuras calcadas numa unidade traiçoeira, a légua, de estimativa exagerada pelo amor-próprio do matuto vezado às caminhadas longas; rumos desesperadamente embaralhados ou linhas de ensaios em que um erro de cinco graus era um primor de rigorismo; informes sobre acidentes, contextura do solo e aguadas, de existência problemática e dúbia.
Subordinaram ao comandante o levantamento feito. Foi, sem maior exame, aprovado.
De acordo com ele escolheu-se a nova estrada. Envolvente a do Cambaio, pelo levante, e mais longa de nove ou dez léguas, tinha, ao que se figurava, a vantagem de se arredar da zona montanhosa. Largando de Monte Santo, as forças demandariam o arraial do Cumbe no rumo seguro de ESE, e, atingindo este, infletindo, rota em cheio para o norte, fraldejando as abas da serra de Aracati, em marcha contornante, a pouco e pouco rumando a NNO, iriam interferir no sítio do Rosário a antiga estrada de Maçacará. Escolhido este caminho não se cogitou de o transformar em linha de operações, pela escolha de dois ou três pontos defensáveis, garantidos de guarnições que, mesmo diminutas, pudessem estear a resistência, dado que houvesse um insucesso, um recuo ou uma retirada.
Crítica
Ninguém cogitava na mais passageira hipótese de um revés. A exploração realizada fora até um transigir dispensável com as velharias da estratégia: bastava o olhar perspícuo do guia, capitão Jesuíno, para aclarar a rota.
Sabia-se, no entanto, que esta atravessaria longos trechos de caatingas exigindo aberturas de picadas, e extenso areal de quarenta quilômetros onde, naquela quadra, na plenitude do estio, não se compreendia a viagem sem que os combatentes fossem arcando sob carregamento de água, a exemplo das legiões romanas na Tunísia. Para obviar este inconveniente, levaram uma bomba artesiana, como se fossem conhecidas as camadas profundas da terra pelos que lhe ignoravam a própria superfície, e houvesse, entre as fileiras, argutos rabdomantes capazes de marcar, com a varinha misteriosa, o ponto exato em que existisse o lençol líquido a aproveitar-se. Veremos a sua função mais longe.
Entretanto ia-se marchar o desconhecido, por veredas desfrequentadas, porque todas as travessias por ali se resumem no trecho de uma estrada secular, a de Bom Conselho a Jeremoabo, contornando e evitando pelo levante os agros tabuleiros que lhe demoram ao norte, e descem insensivelmente para o Vaza-Barris, formando no ligeiro divortium aquarum, entre este e o Itapicuru, desmedidos areais sem o mais exíguo regato, porque absorvem, numa sucção de esponja, os mais impetuosos aguaceiros.
A jornada pressupunha-se longa e inçada de tropeços: 150 quilômetros, um mínimo de 25 léguas, que valiam por uma longura décupla, ante o despovoamento e a maninhez da terra. Era natural que se garantisse ao menos a pretensa base de operações, para que se não insulasse inteiramente a tropa no deserto. Apesar disto, Monte Santo, com as suas péssimas condições de defesa, dominada pela serrania a prumo, de onde meia dúzia de inimigos podiam batê-la toda, a salvo, ficaria sob o comando do coronel Meneses com uma guarnição deficiente de poucas dezenas de praças. De sorte que os jagunços poderiam facilmente tomá-la, enquanto o resto da tropa seguisse para Canudos. Não o fizeram. Mas era de presumir que o fizessem, porque lá chegavam informes acordes todos no assegurar que os sertanejos se aparelhavam fortemente para a luta.
* * *
Cresce a população de Canudos
Eram certas as notícias.
Canudos aumentara em três semanas de modo extraordinário. A nova do último triunfo sobre a expedição Febrônio, avolumada pelos que a espalhavam, romanceada já de numerosos episódios, destruíra as últimas vacilações dos crentes que até então tinham temido procurar o falanstério de Antônio Conselheiro.
Como nos primeiros tempos da fundação, a todo o momento, pelo alto das colinas, apontavam grupos de peregrinos em demanda da paragem lendária — trazendo tudo, todos os haveres; muitos carregando em redes os parentes enfermos, moribundos ansiando pelo último sono naquele solo sacrossanto, ou cegos, paralíticos e lázaros, destinando-se ao milagre, à cura imediata, a um simples gesto de taumaturgo venerado. Eram, como sempre, toda a sorte de gente: pequenos criadores, vaqueiros crédulos e possantes, de parceria, na mesma congérie, com os vários tipos da mangalaça sertaneja; ingênuas mães de família, irmanadas a zabaneiras incorrigíveis e trêfegas. No coice dessas procissões, viam-se, invariavelmente, sem compartirem das litanias entoadas, estranhos, seguindo sós, como de sobre-rolda ao movimento dos fiéis, os bandidos soltos —capangas em disponibilidade, procurando um teatro maior à índole aventureira e à valentia impulsiva. No correr do dia pelas estradas de Calumbi, de Maçacará, de Jeremoabo e de Uauá, convergindo dos quadrantes, chegavam cargueiros repletos de toda a sorte de mantimentos, enviados diretamente a Canudos pelos adeptos que de longe o avitualhavam, em Vila Nova da Rainha, Alagoinhas, em todos os lugares. Havia abastança e um entusiasmo forte.
Como a aguardam os jagunços
Logo ao apontar da manhã distribuíam-se os trabalhos. Não faltavam braços; havia-os até de sobra. Destacavam-se piquetes vigilantes, de vinte homens cada um, ao mando de cabecilha de confiança, para vários pontos de acesso — em Cocorobó, junto à confluência do Macambira, na baixada das Umburanas e no alto da Favela, a fim de renderem os que ali haviam atravessado a noite, velando. Seguiam para as insignificantes plantações, estiradas pelas duas margens do rio, os que na véspera já tinham pago o tributo de se entregarem ao serviço comum. Dirigiam-se para as obras da igreja, outro; e outros — os mais ardilosos e vivos — para mais longe, para Monte Santo, para o Cumbe, para Queimadas, em comissões delicadas, indagando acerca dos novos invasores, confabulando com os fiéis que naquelas localidades se afrontavam com a vigilância das autoridades, adquirindo armamentos, ajeitando contrabandos afinal fáceis de serem feitos, espiando tudo, de tudo inquirindo cautelosamente.
E partiam felizes. Pelos caminhos fora passavam pequenos grupos ruidosos, carregando armas ou ferramentas de trabalho, cantando. Olvidavam os morticínios anteriores. No ânimo de muitos repontava a esperança de que os deixariam, afinal, na quietude da existência simples do sertão.
Trincheiras
Os chefes, porém, não se iludiam. Premunidos de cautelas, concertaram na defesa urgente. Pelos dias ardentes, viam-se os sertanejos esparsos sobre o alto dos cerros e à ourela dos caminhos, rolando, carregando ou amontoando pedras, rasgando a terra a picareta e a enxada numa faina incessante. Construíam trincheiras.
O sistema era, pela rapidez, um ideal de fortificação passageira: aberta cavidade circular ou elíptica, em que pudesse ocultar-se e mover-se à vontade o atirador, bordavam-na de pequenos espaldões de pedras justapostas, com interstícios para se enfiar o cano das espingardas. As placas de talcoxisto, facilmente extraídas com todas as formas desejadas, facilitavam a tarefa. Explicam o extraordinário número desses fojos tremendos que progredindo, regularmente intervalados, para todos os rumos, crivando a terra toda em roda de Canudos, semelhavam canhoneiras incontáveis de uma fortaleza monstruosa e sem muros. Eram locadas, cruzando os fogos sobre as veredas, de tal modo que, sobretudo nos longos trechos onde aquelas seguem aproveitando o leito seco dos riachos, tornavam dificílima a travessia à tropa mais robusta e ligeira. E como previssem que esta, procurando escapar àquelas passagens perigosas, volvesse aos lados assaltando e conquistando as trincheiras que as orlavam, fizeram próximas, no alto das barrancas, outras mais distantes e identicamente dispostas, em que se pudessem acolher e continuar o combate os atiradores repelidos. De sorte que, seguindo pelos caminhos ou abandonando-os, os antagonistas seriam sempre colhidos numa rede de balas.
É que os rebeldes dispensavam quaisquer ensinamentos para estes preparativos. A terra era um admirável modelo: serrotes empinando-se em redutos, rios escavando-se em passagens cobertas e fossos; e, por toda a parte, as caatingas trançadas em abatises naturais. Escolhiam os arbustos mais altos e frondosos. Trançavam-lhes jeitosamente os galhos interiores, sem lhes desfazer a fronde, de modo a se formar, dois metros sobre o chão, pequeno jirau, suspenso, capaz de suportar comodamente um ou dois atiradores invisíveis, ocultos na folhagem. Eram uma usança avoenga aqueles mirantes singulares com os quais desde muito vezavam tocaiar os canguçus bravios. Os mutãs [ 70 ] dos indígenas intercalavam-se, deste modo, destacadamente, completando o alinhamento das trincheiras. Ou então dispositivos mais sérios. Descobriam um cerro coroado de grandes blocos redondos, em acervos. Desentupiam as suas junturas e as largas brechas, onde viçavam cardos e bromélias; abriam-nas como postigos estreitos, mascarados de espessos renques de gravatás; limpavam depois os repartimentos interiores; e moviam-se, por fim, folgadamente, entre os corredores do monstruoso blocausse dominante sobre as várzeas e os caminhos, e de onde podiam, sem riscos, alvejar os mais remotos pontos.
Armas, pólvora, balas e lutadores
Não ficavam nisto os preparativos. Reparavam-se as armas. No arraial estrugia a orquestra estridente das bigornas, à cadência dos malhos e marrões: enrijando e maleando as foices entortadas; aguçando e aceirando os ferrões buídos; temperando as laminas largas das facas de arrasto, compridas como espadas; retesando os arcos, que lembram uma transição entre as armas dos selvagens e a antiga besta de polé; consertando a fecharia perra das velhas espingardas e garruchas. E das tendas abrasantes irrompia um ressoar metálico de arsenais ativos.
Não era suficiente a pólvora adquirida nas vilas próximas, faziam-na: tinham o carvão, tinham o salitre, apanhado à flor da terra mais para o norte, junto ao São Francisco, e tinham, desde muito, o enxofre. O explosivo surgia perfeito, de uma dosagem segura, rivalizando bem com os que adotavam nas caçadas.
Não faltavam balas. A goela larga dos bacamartes aceitava tudo: seixos rolados, pedaços de pregos, pontas de chifres, cacos de garrafas, esquírolas de pedras.
Por fim não faltavam lutadores famanazes, cujas aventuras de pasmar corriam pelo sertão inteiro.
Porque a universalidade do sentimento religioso, de par com o instinto da desordem, ali agremiara não baianos apenas senão filhos de todos os Estados limítrofes. Entre o jagunço do São Francisco e o “cangaceiro” dos Cariris, surgiam, sob todos os matizes, os valentões tradicionais dos conflitos sertanejos, variando até então apenas no nome, nas sedições parceladas, dos “calangros”, dos “balaios” ou dos “cabanos”.
Correra nos sertões um toque de chamada…
João Abade
Dia a dia chegavam ao arraial singulares recém-vindos, absolutamente desconhecidos. Vinham “debaixo do cangaço”: a capanga atestada de balas e o polvarinho cheio; a garrucha de dois canos atravessada à cinta, de onde pendia a parnaíba inseparável; à bandoleira, o clavinote de boca-de-sino. Nada mais. Entravam pelo largo, sem que lhes indagassem a procedência, como se fossem antigos conhecidos. Recebia-os o astuto João Abade que, pleiteando-lhes parelhas na turbulência, tinha a ascendência de uma argúcia rara e uns laivos de superioridade mental, graças talvez à circunstância de haver estudado no liceu de uma das capitais do Norte, de onde fugira após haver assassinado a noiva, o seu primeiro crime. O certo é que os dominava e disciplinava. “Comandante da rua”, título inexplicável naquele labirinto de bitesgas, sem abandonar o povoado exercia-lhe absoluto domínio que estendia pela redondeza, num raio de cinco léguas em volta, percorrida continuamente pelas rondas velozes dos piquetes.
Obedeciam-no incondicionalmente. Naquela dispersão de ofícios, múltiplos e variáveis, onde ombreavam o tabaréu crendeiro e o facínora despejado, estabelecera-se raro entrelaçamento de esforços; e a mais perfeita conformidade de vistas volvidas para um objetivo único: reagir à invasão iminente.
Houve, todavia, segundo o revelaram alguns prisioneiros no termo da campanha, uma parada súbita na azáfama guerreira, um como sobressalto, estuporando a grei revoltosa e pondo-a a pique de dissolução repentina: foi quando, voltando dos diversos pontos os emissários, que tinham ido indagar sobre a marcha invasora, trouxeram, a par de informações seguras quanto ao número e armamentos dos soldados, o renome do novo comandante.
Imobilizou a atividade febril dos jagunços a síncope de um espanto extraordinário. Exagerara-se demais na distensão das mais extravagantes fantasias a temibilidade daquele. Era o anti-Cristo, vindo jungir à derradeira prova os penitentes infelizes. Imaginaram-no herói de grande número de batalhas, quatorze como especificou um rude poeta sertanejo, no canto que depois consagrou à campanha; e prefiguraram a devastação dos lares, dias de torturas sem nome, a par duríssimos tratos. Canudos dissolvido a bala, a fogo, e a espada…
Deram-lhe um apelido lúgubre: — “Corta-cabeças”…
Segundo depois se soube, nenhuma das expedições foi aguardada com ansiedade igual. Houve mesmo algumas deserções, rareando principalmente as fileiras que deviam tornar-se mais fortes, a dos adventícios perigosos que para lá iam não já sob o estímulo de uma crença senão pelo anelo dos desmandos e dos conflitos. Os piquetes, ao tornarem dos arredores, chegavam desfalcados de alguns daqueles sinistros companheiros.
Mas esse movimento de temor redundara em movimento seletivo. Expungira o arraial de incrédulos e tímidos. A grande maioria dos verdadeiros crentes permaneceu resignada.
Procissões
Desinfluído embora, o povo volvera-se para a última instância da fé religiosa. E não raro, então, atirando para o lado as armas emperradas, o arraial inteiro saía em longas procissões de penitência pelos descampados.
Cessaram, de chofre, os contingentes de peregrinos. Cessou o mourejar febril dos preparativos bélicos. Os piquetes que diariamente, ao clarear das manhãs, seguiam para diversos pontos, não mais passavam pelas veredas entoando as cantigas altas e festivas; embrenhavam-se, cautos, pelas moitas, quedando-se largas horas, silenciosos, vigilantes.
Rezas
Nesta situação aflitíssima, saiu a campo, alentando os combatentes robustos mas apreensivos, a legião fragílima da beataria numerosa. Ao anoitecer, acesas as fogueiras, a multidão, genuflexa, prolongava além do tempo consagrado, as rezas, dentro da latada.
Esta, entressachada de ramas aromáticas de caçatinga, tinha, extremando-a, à porta do Santuário, uma pequena mesa de pinho coberta de toalha alvíssima.
Abeirava-a, ao findar dos terços, uma figura estranha.
Revestido da longa camisa de azulão, que lhe descia, sem cintura, desgraciosamente, escorrida pelo corpo alquebrado abaixo; torso dobrado, fronte abatida e olhos baixos, Antônio Conselheiro aparecia. Quedava longo tempo, imóvel e mudo, ante a multidão silenciosa e queda. Erguia lentamente a face macilenta, de súbito iluminada por olhar fulgurante e fixo. E pregava.
A noite descia de todo e o arraial repousava sob o império do evangelista humílimo e formidável…