Sucedeu em Curanja

Euclides da Cunha em banquete com os peruanos
Euclides em banquete com os peruanos, oferecido na casa comercial de C. Sharf. Curanja, [3 jul. 1905]. Euclides está sentado ao lado do chefe da comissão peruana, Pedro Alejandro Buenaño, que está na cabeceira da mesa

Foi o que sucedeu em Curanja a 3 de julho.

Ofereceram-nos um banquete (ao chefe peruano e a mim), as principais pessoas do lugar. Aceitei-o com prazer: estava ainda na ilusão de uma simpatia que desapareceria em breve. Dirigi-me ao local (uma casa comercial de C. Sharf, entregue à direção do seu guarda-livros, o alemão Alf. Shultz) — e fui para logo surpreendido com a profusão de bandeiras peruanas em pleno contraste com a ausência da nossa — sendo, entretanto, facílimo aos promotores da festa adquirirem-na no próprio acampamento.

Notando este fato, pensei em retirar-me e aguardava a primeira oportunidade para o fazer, sem alarde ou escândalo, quando observei, entre as ramagens que decoravam as paredes de paxiúba da sala do festim, algumas folhas de palmeira cujas faces internas de um amarelo muito intenso contrastavam no verde do resto da folhagem. Era uma solução a atitude contrafeita que me impusera…, e espetaculoso patriotismo daquela gente. Realmente, pouco depois de sentados à mesa, tomei de golpe a palavra, sem aguardar o momento oportuno para os brindes, e numa rápida saudação agradeci o convite que se me fizera — e isto por dois motivos essenciais:

Primeiro — como americano — sentindo-me feliz com todas as manifestações de cordialidade entre homens oriundos de raças quase irmãs, talvez destinados a íntimas alianças no futuro para reagirem ao imperialismo crescente das grandes nacionalidades; em segundo lugar — como brasileiro — profundamente comovido diante da “inteligente gentileza” e requintada galanteria com que se tinha posto naquela sala a bandeira de nossa terra. (O espanto dos convivas foi absoluto!) Esclareci-o então dizendo-lhes que uma extraordinária nobreza de sentir fizera que eles ao invés de irem procurar no seio mercenário de uma fábrica a bandeira de meu país tinham-na buscado no seio majestoso das matas, tomando-a exatamente da árvore que entre todas simboliza as idéias superiores da retidão e da altura. E terminei: “Porque, Srs. peruanos, a minha terra é retilínea e alta como as palmeiras…”

Não poderei dizer… o efeito dessas palavras, nem o constrangimento com que o chefe peruano e outros cumprimentaram-me declarando “que eu havia compreendido muito bem o pensamento deles…”

Como citar
CUNHA, Euclides da. Sucedeu em Curanja. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Dispersos e fragmentos. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/dispersos-e-fragmentos/sucedeu-em-curanja/. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em Revista do Grêmio Euclides da Cunha, t. II, n. 12, Rio de Janeiro, 15 ago. 1940. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Obra completa. Fragmentos e relíquias. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 840-1.