Dois fragmentos

Revista do Grêmio Euclides da Cunha, Rio de Janeiro, 15 de agosto de 1918

…Escrevi-o [Os Sertões] em quartos de hora, nos intervalos da minha engenharia fatigante e obscura. E se atendermos que a esta circunstância de ordem objetiva se prende, mais sério, o fato que se pode dizer na impenetrabilidade do espírito, maior que a da matéria, pois mais facilmente se concebe a coexistência de dois corpos num mesmo espaço que a de dois pensamentos no mesmo cérebro — compreenderemos, de pronto, todos os defeitos [todas as lacunas, todos os deslizes que o inquinam]. Não os nego. Fui o primeiro a surpreender-me ante a recepção fidalga que obteve e para logo a atribuí menos ao valor próprio daquelas páginas que a reconhecimento por parte dos que tão bem as acolheram da grande sinceridade com que foram escritas.

Escrevi este livro para o futuro. Levado, por um conjunto de circunstâncias a que não pude forrar-me, a assistir a um doloroso drama da nossa história e escrevendo-o depois com a mesma serenidade estoica de Tucídides ao traçar a História da Guerra do Peloponeso, — “sem dar crédito às primeiras testemunhas que encontrei nem às minhas impressões pessoais, mas narrando apenas os acontecimentos de que fui espectador ou sobre os quais tive informações seguras” — quando o publiquei; depois, tive o pensamento capital de o subordinar à contraprova violentos protestos contra as falsidades ou acusações injustas que encerrasse. Atirei-o, por isso, seriamente à publicidade. Não lhe dei nem prefácio, nem paraninfo, que o apresentasse à minha terra. Quis aparecer só, absolutamente isolado na grande fraqueza do meu nome obscuro diante dos que compartiram aquela luta. E apareci só.

Não apareceram porém os protestos. Não podiam aparecer: desafiariam imprudentemente a réplica inflexível dos fatos. Não deviam aparecer: afrontariam inutilmente as energias triunfantes da verdade.

Hoje me rodeia a grande força moral da opinião pública do meu país que não solicitei. E eu volto tranquilamente à minha tenda modesta de trabalhador abraçando a minha engenharia fatigante.

*

Devia vir de militar a contradita mais bem acentuada ao livro que fui obrigado a escrever sobre a lastimável campanha de Canudos. A crítica exercitada pelo elemento civil teve em toda a linha um traço de benevolência inegável. Impressionada, pela sinceridade com que tracei aquelas páginas, ampliou no aquilatar o mérito delas aquele único; e se alguns entre os que melhor a representam, como o Sr. José Veríssimo, apontaram vários dos muitos senões que as inquinam, fizeram-no de relance, em poucas palavras constrangidas em períodos, onde o que resulta evidente é a mais franca e nobilitadora simpatia. O fato é explicável. Tanto que folheie aquele livro, o leitor a breve trecho perde a frieza indispensável a um critério analítico relevando sem-número de deslizes de forma e mesmo da seqüência lógica das idéias. Compreende estar diante de um cronista rude mas veraz; empolgado pela visão assombradora do grande assassinato coletivo, segue inteiramente absorvido no contemplar as suas várias peripécias deixando-se dominar pelas impressões de momento sem curar da unidade lógica e da unidade estética do trabalho, relegadas a segundo plano pelo domínio exclusivo de uma impressão pessoal profundamente dramática.

E porque a natureza do assunto estabelece entre ele e o narrador uma harmonia perfeita de pensar e sentir, um contágio permanente de emoções idênticas, é natural que a sua atividade cerebral por um fenômeno vulgar da psicologia, ao fim de algum tempo, vibre nessa intensidade de sentimentos que cria a admiração.

A admiração pelo livro.

Indiferença pelo autor.

Daí as palavras animadoras de Machado de Assis. Daí a feição especial do juízo do Sr. Medeiros e Albuquerque, para não citar outros, feita de extratos, como se os pontos capitais da narrativa falassem por si mesmos desprezando todos os comentários. E se alguns como Coelho Neto, fora deste rumo abreviaram as vistas acomodando-as à individualidade do escritor, a estes, reduz-lhes muito o valor dos mais favoráveis conceitos a estima pessoal altamente perturbadora.

Como citar
CUNHA, Euclides da. Dois fragmentos. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Dispersos e fragmentos. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/dispersos-e-fragmentos/dois-fragmentos/. Acesso em: [data]. Publicado original e postumamente na Revista do Grêmio Euclides da Cunha, Rio de Janeiro, 15 ago. 1918.