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Tenho diante de mim uma página de V. Hugo; é através dessa lente extraordinária que vejo esse amálgama formidável de luzes e trevas – de lágrimas e sangue –; essa loucura pavorosa de um povo sobre a qual, antítese extraordinária – rebrilha a consciência eterna da História…

Filho d’este século – que brotou da Revolução Francesa, como a luz dos incêndios – é com o entusiasmo o mais ardente e elevado – que procuro – lançando o pensamento através da História – a legião fogosa e audaz dos Girondinos, esses doudos divinos – doudos porque tinham a razão além do seu tempo – no futuro –!

Há duas épocas primordiais na História: uma, é aquela em que Cristo morreu pelas ideias do povo – a outra, a em que o povo se ergueu pelos ideais de Cristo; numa cruz abrindo os braços à Humanidade, ergueu-se n’Ásia, ao lado do passado; n’outra a Humanidade abrindo os braços no livro, ergueu-se na Europa, ao lado do futuro… Entre elas o tumultuar titânico dos povos… Entre elas a suprema agonia da Humanidade, as cóleras impotentes dos heróis, os esquadrões malditos dos tiranos; as guerras – distração dos reis; as inquisições – divertimento dos padres; o mundo acorrentado aos tronos, a consciência encarcerada nas Catedrais!…

Estas épocas são os pontos culminantes da História. Entre elas as Cruzadas – em que os túmulo do primeiro republicano do mundo teve uma guarda de reis e em que os padres se uniam aos homens pa morrer; entre elas a Inquisição – em que os padres separavam-se dos homens – pa matar!…

A primeira – é sublimemente triste; o pensador ante ela estaca inerte, combalido e obscurecido e sente o vácuo no cérebro, um entorpecimento profundo abate-lhe a inteligência, só sente que tem vida – pelo coração apenas: porque chora: esta, marca a morte de Cristo.

A segunda é terrivelmente sublime, – febril, numa férvida expansão de ideias, a sua mente dilata-se – e ele ergue-se altivo e forte, sentindo a vida concentrada no cérebro; esta, marca a ressurreição do povo!… noventa e três!…

Foi, por certo, terrível aquela época; foi decerto fatal aquela explosão formidável de cóleras acumuladas em dezesseis séculos; a sombra pavorosa da populaça – essa hidra de milhares de corpos e uma só cabeça – Marat; conjuntamente com os castelos feudais e as coroas da tirania, derribou, calcou em terra mta fronte de inocente e nobre; em toda aquela sublimidade houve mto crime horroroso e cruel; mtos heróis, na ebriez da luta, empunharam o ferro de Caco; mtos miseráveis empunharam o punhal de Bruto; vibraram, palpitaram naquela convulsão enorme todas as cambiantes do sentimento humano; há ali o sublime – a tomada da Bastilha; o horrível, a morte de Antonieta, o ridículo – a morte da Du Barry; tal quadra arranca-nos um brado de glória, tal arranca-nos um grito de horror; há ali Vergniaud – o soldado mais firme da Justiça, morrendo vítima da injustiça revolucionária; há ali Barère, Louvet, Roland, Grégoire; Barbaroux; Desmoulins, Danton – a voz do povo – rude, selvagem, vibrante e alevantada; e mtos outros, são os bons, são os heróis; erguem-se no centro pavoroso das cóleras, calmos e fortes, o verbo iluminado pela verdade e pela justiça; mas há ali, Robespierre, correto, casquilho e frio, um pedante enluvado e empoado, que desviou por algum tempo a revolução de seu norte glorioso, precipitando-a no crime – reservado a uma morte trágica; há ali Santerre – um bruto; d’Herbois, um idiota; Saint-Just – um louco e sobre todos, pálido, andrajoso, sombrio, a boca crispada na garra de um sarcasmo terrível, o olhar desvairado e incisivo – um alucinado – Marat!

Mas esse caos imenso, essa imensa desordem – essa extraordinária anarquia, não o negueis, encerram a lógica inquebrável, a lógica fatal da História.

Expliquemo-nos.

A Revolução Francesa não começou em 1789, começou em 33; não principiou na França, principiou na Ásia; não rugiu pela primeira vez no lábio de Mirabeau, falou pela boca de Cristo: a Revolução Francesa veio do passado, veio de mui longe, foi a colaboração de todos os povos; retemperou-se através dos séculos; cada homem, cada família, cada sociedade contribuiu com seu contingente para formá-la; todos os grandes acontecimentos da História impelem pa ela a Humanidade, por isso ela foi multiforme e gigante: a Reforma ensinou-a a pensar, e ela criou Condorcet, a Inquisição obrigou-a a odiar, ela gerou Marat; na sua marcha eterna a humanidade tende de há mto pa ela; o Feudalismo – criou-lhe a reação da cólera, por isso ela foi sangrenta; a Cavalaria aproximou-a da Glória, por isso ela foi grande –. As Cruzadas aproximaram-na de Deus, Deus impeliu-a pa o futuro, por isso ela foi fatal…

A Revolução Francesa, pois – não foi um fato extraordinário, que se isolasse da evolução da Humanidade, foi perfeitamente lógica. Muito antes d’ela deu-se uma revolução mui mais pujante, que a preparou – e que, no entanto, pa muitos passa inapercebida; esta revolução profunda irrompeu dos cérebros de três homens e penetrou na alma da multidão; tendo de cada uma dessas individualidades, o caráter essencial; ela bateu os velhos preconceitos com a Ciência, com o Direito e com o riso – porque estas individualidades eram Diderot, Rousseau e Voltaire…

Destas três forças uma era infalível – a Ciência, outra invencível – o Direito e a outra Cruel – a Ironia; a primeira iluminou a fronte dos Girondinos; a segunda palpitou no coração do verdadeiro povo parisiense e estrugiu na boca de Danton; a terceira disseminou-se na vasta camada dos cépticos; trancou os corações à piedade, fechou as frontes à ideia e quedou-se depois fúnebre, terrível e cortante no lábio lívido de Marat!..

Esta criou a Guilhotina – esse triângulo tão diminuto aonde inscrevia-se a Eternidade…

*

Mas, perdoemos a Revolução.

Façamos um supremo esforço; sejamos surdos aos gemidos das vítimas; cegos aos clarões flamívomos dos incêndios; esqueçamo-nos daquelas legiões sombrias e ensanguentadas que a macularam; esqueçamos o homem formidável, o atleta colossal que irrompeu de seu seio febricitante, fez por um instante o mundo dobrar-se ao peso de sua espada e foi depois finar-se enjaulado no infinito – Napoleão e lembremo-nos de alguma cousa que sem ela se arrastaria ainda combalido, tendo sobre o seio a pedraria feudal; de alguma cousa que transborda de luzes – luzes daquela enorme explosão – e marcha pelo influxo de todas as ideias – o Século XIX.

Euclides

Como citar
CUNHA, Euclides da. 93. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Dispersos e fragmentos. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/dispersos-e-fragmentos/93-2/. Acesso em: [data]. Reprod. sem as notas do editor de: CUNHA, Euclides da. 93 (Manuscrito em Caderno de cálculo infinitesimal, c. 1885). In: CUNHA, Euclides da. Ensaios e inéditos. Coord. Leopoldo M. Bernucci, Francisco Foot Hardman, org. estabel. de texto, prefácio e notas por Leopoldo M. Bernucci, Felipe Pereira Rissato. São Paulo: Editora UNESP, 2018. p. 57-63. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.