Discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

Exmo. sr. presidente. Senhores membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro:

Acudindo ao vosso chamado, venho ocupar o lugar que me designastes e agradecer-vo-lo, assegurando-vos ao mesmo tempo a ufania que me causa esta investidura, embora ela envolva grandes responsabilidades e me obrigue, de ora avante, a acomodar uma visão restrita e frágil às mais dilatadas perspectivas do nosso tirocínio histórico. Felizmente, malgrado tanta desvalia, chego ainda a tempo de aproveitar mais utilmente, no vosso convívio, uns restos da mocidade. Forrei-me ao domínio de alguns preconceitos sem sentido; reconheci a inanidade de não sei quantas fórmulas vãs, que os doutrinadores do momento — agitantes no vácuo de uma metafísica tacanha — remascam, ruminam e remoem, na mesma inconsciência com que certos brâmanes murmuram durante a vida inteira, sem os entenderem, os versículos do Rig Veda; e rompendo as malhas de um ingênuo fetichismo político, ao mesmo passo que deixaram de atrair-me as aventuras de antigo caçador de miragens, posso vir, placidamente, para o vosso meio, trazendo-vos uma qualidade única e irredutível, mas que por si supre por outras, e que no momento atual, para ter algum valor, deve ser isolada: a qualidade de brasileiro.

Não é oportuno, e de algum modo fora arremeter com as praxes adotadas, o tentar demonstrar-vos que semelhante título não no-lo pode dar, na sua estrutura complexa, o fortuito do nascimento numa quadra do chão, ou os atributos artificiais de uma constituição parodiada — senão um intenso esforço consciente, diria melhor, uma espécie de aclimação histórica —, aparelhando-nos para compreender os destinos de um povo que, nascendo em condições especialíssimas, quando surgia a Renascença — em pleno transfigurar das sociedades já constituídas —, deparou, na própria marcha crescentemente acelerada do progresso geral, sérios estorvos, impossibilitando-lhe uma situação de parada indispensável ao perfeito caldeamento de suas raças constituintes — e chegou ainda incaracterístico à fase integradora do Império, que foi o órgão proeminente da sua unidade nacional.

Infelizmente me escasseiam competência e valor para congraçar numa síntese rigorosa, com as suas recíprocas influências, as grandes fatalidades que perturbaram ou demoraram a nossa evolução: desde as condições físicas desfavoráveis do território amplíssimo e quase impenetrável em virtude da sua própria estrutura geognóstica, aos empeços e perturbações de ordem moral, em grande parte oriundas da circunstância de termos sido obrigados a efetuar, simultaneamente, a nossa formação étnica e a nossa formação política, dando traçados paralelos a fenômenos naturalmente sucessivos.

Então as notáveis vicissitudes da nossa existência coletiva, com os seus desvios, com os seus recuos, com os seus descompassados arrojos seguidos de subitâneos desfalecimentos, e com as suas grandes curvas quase fechadas, que fazem do Brasil exemplo único, a estear a fantasia filosófica de Vico, porque trouxeram a nossa Idade Média até ao nosso tempo, irmanando o feudalismo retrógrado dos donatários, que os alvarás nomeavam, com o feudalismo anárquico dos governadores, que as eleições não elegem — tudo isto, toda essa agitação tumultuária, onde raro se destaca o caráter social dos acontecimentos, nos revelaria que aquele título não é uma coisa que se recebe, senão uma posição que se conquista, e acarreta deveres tão sérios que quem a merece não sabe distinguir os compatriotas de boa vontade pelas fórmulas inexpressivas e artificiosas dos partidos. Revelaria isto a mais ligeira análise da situação presente.

Não a farei, porém. Evito pormenorizar um assunto em que o funambulesco se conchava ao trágico, num dualismo abominável: o mesmo Tácito, neste lance, cederia muito a seu bom grado uma tal em presa ao mimógrafo Batilus…

Prefiro não deixar a atitude de curioso contemplativo, protegido pela obscuridade enobrecedora, mercê da qual passo por aí perfeitamente desconhecido, como um grego antigo transviado nas ruas de Bizâncio…

Ademais, para ser útil basta-me o cingir-me ao vosso belíssimo programa.

De feito, estas estantes iludem miraculosamente o encerro das paredes que nos cercam; têm a transparência ideal, e cheia de esplendores, dos próprios livros que as atestam; e dão aos escassos metros quadrados desta sala uma amplitude de quatro séculos, sem que se estranhe a falta de homogeneidade de uma tal comparação, porque a mesma realidade tangível nos ensina que, ao pisarmos as velhas tábuas desta casa, andamos sobre um trecho da terra misteriosa e sagrada do passado.

Aqui se conjugam, sem o emperramento de irritantes atritos, sem o dispersivo das paixões, e sem que os apequene a lógica caturra destes tempos, os efeitos máximos dos quatrocentos anos da nossa vida; passa intacta e intangível, sobranceira a um tempo ao livre-arbítrio dos homens e aos caprichos da Providência, a diretriz do nosso futuro, garantida pelo seu determinismo inflexível nesse eterno equilíbrio dinâmico das tendências psíquicas individuais e dos motivos — perpetuum mobile onde os nossos impulsos pessoais se corrigem, se retificam e se ampliam sob a disciplina austera da influência acumulada das gerações que passaram… E mesmo para os mais desalentados, salteados de assombros ante a situação presente, para os que prefiguram todos os desastres rompentes desta crise, mesmo para esses, há neste recinto, no esplêndido isolamento deste cordão sanitário de milhares de livros, um admirável e — consolador exílio, um segredo que lhes permite ligar a vida objetiva, transitória à grande vida imortal da Pátria, sem que percam a contemplação de seus aspectos físicos formosíssimos dela, um belo ostracismo que escapou a todas as tiranias, porque é um prêmio — um exílio no tempo…

E eu aqui virei, sempre que mo permitirem as breves folgas da minha carreira fatigante, trazer-vos a minha boa vontade, que deve ser muito grande para nivelar-me tão despercebido de outros requisitos, à incomparável superioridade dos vossos intuitos e dos vossos esforços.

Como citar
CUNHA, Euclides da. Discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Discursos e entrevistas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/discursos-e-entrevistas/. Acesso em: [data]. Reprod. CUNHA, Euclides da. Outros Contrastes e confrontos. In: Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 561-3. Originalmente publicado na Revista do IHGB, tomo LXVI, 2ª parte, pp. 288-293.