Sejamos francos

Democracia, Rio de Janeiro, 18 de março de 1890

As grandes exigências impostas pela existência moderna, aos nossos cérebros e aos nossos corações, definindo-se de uma maneira geral pela mais robusta fortaleza de ideias, pela mais elevada manifestação de sentimentos, deixam-nos muitas vezes desiludidos, combatidos pelo mais deplorável desânimo, quando sentimos faltar à comunhão que nos rodeia não só a consistência para suportar aquelas, como altitude para harmonizar-se a estes.

Afazendo-nos o mais possível a silenciosa eloquência dos livros, a vida universal, maravilhosa e grande, animada pelo espírito imortal dos gênios, reflete-se-nos no cérebro quer sob a forma simplicíssima das leis matemáticas, quer sob a feição complexa dos princípios sociológicos; e é assim, à luz das verdades austeras da ciência que procuramos constituir ideais capazes de nobilitarem nossa atividade. Fortes e lógicos, emergindo de uma elaboração mental constante, elementos imprescindíveis à delicadíssima organização das consciências, são estes ideais que generalizando, pelo altruísmo mais nobre a vida individual, criam brilhantíssima a noção positiva da Pátria.

E notar, portanto, por eles, a todo transe, ceder-lhes inteira a vitalidade, constitui um dever ao qual não há eximir-se sem abdicar da própria dignidade. É o que temos feito.

Entretanto, como nos pesa esta missão e quão preciso se nos torna o mais notável estoicismo — nesta reação extraordinária de um grupo contra uma sociedade…

De fato, não nos iludamos.

A nossa nacionalidade atravessa de há muito uma quadra em que o mais difícil problema consiste em harmonizar a vida ao dever.

Sem um ideal, uma aspiração comum que ligue e oriente todos os esforços, as energias que agitam-na e abalam têm o valor nulo das forças interiores na translação dos sistemas.

Não marcha, não progride, não civiliza-se, anarquiza-se no conflito assustador de interesses unicamente individuais, de ambições indisciplinadas que se digladiam, e os que arrebatados na expansão das próprias ideias, tentam lutar fora do círculo isolador da individualidade, sem um só ponto de apoio às forças que o revigoram — caem e extinguem-se na desilusão mais profunda.

Foi a ciência deste fato a única inspiradora da forma ditatorial cuja função é evidente, agora, preparar a sociedade — para que a sociedade produza a República.

Em torno aos chefes ilustres, investidos desta missão alevantada, obscuros colaboradores embora, da reconstrução da Pátria, agrupamo-nos — acalentando a arrebatadora ilusão de uma luta impulsionada pelos mais generosos sentimentos e sobre a qual se desdobrasse inteiro o basto deslumbramento dos nossos ideais.

Unicamente assim era possível criar no seio de um povo a mais fecunda e poderosa reação moral; unicamente assim o estabelecimento da República deixaria de ser um sistema de governo imposto para ser o que deve ser — a tradução política de um estado social; unicamente assim ela seria, amanhã — o corolário imediato do caráter nacional, purificado e modelado à feição dos grandes princípios da democracia.

A luta, porém, em que nos empenhamos, luta prodigiosa, subordinada unicamente à ação incruenta da inteligência e na qual é fragilíssima a espada, começa a perder a sua feição entusiástica e a inocular-nos o travor das primeiras desilusões.

A própria inconsistência do meio faz refluir sobre os que proclamam a verdade toda a dureza que elas encerram — e compreendemos afinal que para seguirmos retilineamente, segundo o impulso inicial de nossas ideias, faz-se preciso um constante apelo à pureza de nossas convicções, à rijeza do nosso caráter e a abnegação da mais sólida — ainda que esta nos leve aos maiores sacrifícios pela honra e pela glória da grande existência histórica da Pátria.

Alferes-aluno,
Euclides da Cunha

Como citar
CUNHA, Euclides da. Sejamos francos. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/sejamos-francos. Acesso em: [data]. Reprod. e publicação original de: Democracia: órgão de orientação republicana, Rio de Janeiro, ano 1, n. 14, 18 mar. 1890. p. 2.