Questões sociais

Questões sociais. — Nesta seção publicamos hoje o primeiro artigo de um novo colaborador da “Província”. É um moço de muito talento e de vasta ilustração. Se quiséssemos ser indiscretos, diríamos que o seu nome ainda há pouco andou envolvido no grave incidente da Escola Militar do Rio de Janeiro, que se deu por ocasião da visita que o ministro da Guerra fez àquele estabelecimento.

I

Província de São Paulo, 29 de dezembro de 1888

Revolucionários

O republicano brasileiro deve ser, sobretudo, eminentemente revolucionário.

Expliquemos o paradoxo.

A noção elevada de Pátria despida da feição sentimental que a caracterizava, assume hoje as proporções de uma brilhante concepção cerebral, em que entram como elementos únicos, necessários e claramente correlativos, as concepções do tempo e do espaço.

Mais, talvez, do que filho de uma região, o homem da modernidade é filho do seu tempo.

Vinculado ao território pelas tradições e pela família, a humanidade que é a generalização desta, e a história, que é a síntese racional daquelas, vinculam-no a seu século.

Da perfeita harmonia dessas concepções resulta o homem moderno.

Compreender a Pátria, isolando qualquer desses elementos, é incompatibilizar-se com o movimento evolutivo do progresso; é partir do egoísmo infecundo e criminoso de Bismarck ao altruísmo exagerado — ao cosmopolitismo não menos infecundo de Anarcasis Cloots, declarando-se cidadão do mundo!

A marcha das sociedades traduz-se melhor pelo equilíbrio dinâmico destas duas concepções.

Devemos aos esforços comuns das gerações passadas a altitude prodigiosa de sua individualidade; preso pelas impressões do presente ao território da Pátria — o cidadão moderno, na elevação enorme em que o princípio geral da relatividade o obriga a colocar seu espírito — desde que pense no futuro — elevação a que só atingiu pela ciência — dominado pelo cosmopolitismo desta irmana-se forçosamente a seus coevos.

É uma fraternidade que se estabelece pelo cérebro e pelo coração; é um sentimento orientado pelo raciocínio, cuja existência se demonstra com a mesma frieza, tão positivamente como um princípio de mecânica e do qual a feição mais característica se chama — civilização.

É esta, de fato, a nossa Pátria no tempo.

Negá-la é negar a função mais elevada da ciência; da ciência que além de estabelecer, pelo desenvolvimento filosófico de suas teorias, a vasta solidariedade do espírito humano, sob a sua forma empiricamente útil, como arte subordinada inteiramente a esta solidariedade, às grandes exigências da vida moderna.

Pois bem, a política do século XIX chama-se democracia; de há muito a colaboração de todas as ciências e das tendências naturais de nosso temperamento, despiu-a do frágil caráter de uma opinião partidária, para revesti-la da fortaleza da lógica inquebrantável de uma dedução científica. Em sociologia, eu creio que, observando-se o sistema social, chega-se a ela tão naturalmente como Lagrange à fórmula geral da dinâmica. Assim, não é uma forma de governo que se adota, é um resultado filosófico que se é obrigado a adotar: forma-se um democrata como se faz um geômetra, pela observação e pelo estudo; e, nessa luta acirrada dos partidos, por fim o republicano não vencerá — convencerá; e tendo enfim dominado os adversários, não os enviará à guilhotina, manda-los-á para a escola. A democracia é, pois, uma teoria científica inteiramente desenvolvida, simboliza uma conquista de inteligência, que a atingiu na Sociologia depois de se ter avigorado pela observação metódica da vasta escala da fenomenalidade inferior; síntese final de todas as energias racionais (podemos assim dizer), que impulsionaram as evoluções políticas de todas as nacionalidades, e definindo — na Política — o fastígio da mentalidade humana, é hoje impossível, com abstração dela, uma compreensão exata da civilização.

Pois bem, se tudo isto se dá, se de fato ninguém deve fugir à ação de seu tempo e se a democracia é a forma de governo mais em harmonia com ele — é claro que lutarmos pela sua realização, equivale a lutarmos para que se complete o nosso título de cidadãos — porque ela é, de fato, o complemento moral da Pátria.

Essa luta, porém, é francamente reacionária.

Nem deve, nem pode deixar de ser assim.

Não podendo entregar o seu desenvolvimento à vagarosa evolução do espírito popular; descrente da política do seu país, em que a maioria dos estadistas estuda “para saber errar convenientemente”: agindo, além disto, num Estado que realiza o deplorável fenômeno histórico de possuir sessenta anos de vida política e quase mil de inervação monárquica, porque, importando o trono da dinastia de Bragança, adquiriu todo o velho carrancismo das dinastias portuguesas; por outro lado, impelindo pelas tradições de sua terra — repletas de um majestoso rumor revolucionário — cheia de encantadora magia dos mais belos exemplos, desde o estoicismo heróico de Tiradentes à heróica abnegação de Nunes Machado — o republicano brasileiro deve ser forçosamente revolucionário.

Demais — digamo-lo ousadamente —, a própria orientação filosófica que o dirige, obriga-o a destruir.

Destruir — para construir.

Ora, destruir, no organismo social o tóxico lentamente infiltrado, é aplicar os antídotos violentos dos casos desesperados.

Por mais refletido que seja — ou, melhor, por isso mesmo — o republicano, desde que as suas ideias exerçam assim a função de reagentes — que lhe preparam o terreno próprio à realização dos ideais, que têm unicamente a existência subjetiva de seu espírito — é forçado a revesti-las do máximo vigor e desassombro extremo. Descansem, porém, os que se assustam com este título: Revolucionários — ele, além de exprimir uma louvável tendência a nivelar-se a seu século, realiza o verdadeiro tipo de propagandista, não de uma opinião política, mas de uma necessidade social.

Este epíteto — ele não o adota ad libitum — aceita-o; aceita-o como corolário inevitável do conflito da ação positiva de seu espírito sobre a influência negativa do regímen antigo. Inteligente — se ao estado atual de seu país obriga-o a ser inflexivelmente enérgico — o estado atual de seu tempo obriga-o a ser calmo; é alguma coisa semelhante ao temperamento tempestuoso de Danton dentro da disciplina mental de Condorcet: e quando amanhã de larga expansão à sua vitalidade, ve-lo-ão, rígido e inexorável, despedaçar, com o mesmo golpe, o trono e a guilhotina.

Proudhon

II

Província de São Paulo, 4 de janeiro de 1889

89

Em um de seus livros, Pelletan, ressuscitando — galvanizada pelo seu espírito poderoso — uma sociedade morta, apontou como origem da grande revolução o reinado de Luís XIV.Observador admirável, armado de uma lógica vigorosa, constantemente apoiada nas verdades históricas, demonstra a sua asserção de uma maneira genial, nitidamente — golfando a grande cintilação de sua pena dentro da profunda decomposição da escandalosa corte do “Grande-Rei”…

De fato, não se pode fixar como início da Revolução Francesa a convocação dos “Estados Gerais” em 89.

Como todos os fenômenos históricos de influência geral sobre os destinos das nacionalidades, ela exprime claramente o resultado das ações de todos os povos, em todos os tempos.

Pascal, numa alegoria admirável — em que exprime brilhantemente a lei da continuidade dos esforços humanos — sintetiza a humanidade num indivíduo secular, enorme, eterno — que irrompe através dos séculos e cuja existência se prolonga pela extensão indefinida das idades.

Essa entidade abstrata, que cresce e se avoluma a todo instante — cuja vida é feita das experiências das gerações desaparecidas, traduz uma lei no seu movimento firme, retilíneo e invencível para o futuro.

Como todas as leis naturais — esta é indestrutível.

Modificar esse movimento é infringi-la. Demorá-lo de um segundo ou de um século, é suprir o trabalho que devia ser realizado, por uma acumulação proporcional de energia que afinal o realizará — brutal, enérgica e precipitadamente.

Daí as agitações da história; as revoluções — perturbações impressas no movimento tranquilo do progresso, inteiramente subordinado a uma lei, que é como uma força constante — a Evolução.

O trono de Luís XIV — que é afinal o de Luís XVI — antepôs-se-lhe afrontosamente; a evolução estacou — condensou a sua energia prodigiosa durante dois séculos e afinal, excitada pelo “lirismo revolucionário” dos Enciclopedistas, precipitou-se em 89…

O que o desdobramento natural dos acontecimentos devia fazer em três séculos — a revolução fez em três meses.

Abertos os Estados Gerais em 5 de maio — o presidente do “terceiro Estado” comete a irreverência de não querer falar de joelhos a S.M., segundo a prática tradicional.

No dia 17 de junho — rompendo com as ordens privilegiadas — o “terceiro Estado” assume altivamente o título de Assembleia Nacional.

No dia 20 — jura não se dispersar sem dar Constituição à França.

No dia 22 — à intimativa real de dispersar-se — calmo, altivo e indomável, Sieyès replica:

Parece que a nação reunida não pode receber ordens.
Era uma coisa nova na História.
14 de julho — a revolução inicia a sua ação material.

Finalmente, na noite memorável de 4 de agosto, decreta os seus princípios imortais, no dizer de um escritor ilustre — a Carta da Liberdade do Gênero Humano!… A revolução devia ter parado aí.

Foram demais o assassinato de um rei e o regímen sinistro do Terror.

Em breve, Paris se apresentará ao mundo sob a sua forma mais augusta e mais nobre. Proclamará a vitória mais brilhante desses combates ideais do progresso, que se tornam cada vez mais sérios à proporção que cresce a civilização e cada vez mais sangrentos à proporção que se tornam mais sérios.

Então, colocando num mesmo espaço em comum, os resultados mais elevados da atividade humana, irmanando pelas suas mais brilhantes ações as nacionalidades todas e fazendo talvez de sua Exposição a primeira manifestação real de uma grande utopia: a Federação Universal das Nações — Paris realizará o sonho deslumbrante daqueles revolucionários heróicos e bons, que o povo de Versalhes via comovido, na noite de 20 de junho, correndo as suas ruas em procura de uma sala, pois que não tinham onde prestassem o juramento sublime — de salvar o mundo!…

Proudhon

Como citar
CUNHA, Euclides da. Questões sociais. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/. Acesso em: [data]. Reprod. CUNHA, Euclides da. Crônicas. In: Obra completa. Notas de Olímpio de Sousa Andrade. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 693-7. Artigos originalmente publicados n’ A Província de S. Paulo, em 29 de dezembro de 1888 e 4 de janeiro de 1889.